Oda, você me paga!
One Piece é um dos meus mangás favoritos de todos os tempos. Já falei anteriormente aqui no site sobre como ele é o melhor shounen já criado ou sobre episódios que marcaram muito minha experiência assistindo o anime. Dito isso, sempre fui imensamente crítica à forma que o autor retrata mulheres na obra, desde o design e desenvolvimento das personagens até a escolha das Akuma no Mi de cada uma. O centro deste texto é em relação a isso e, honestamente, serve também como um desabafo sobre como acompanhar One Piece sendo mulher foi, até hoje, um exercício contínuo de tolerância.
Não existem dúvidas quanto a capacidade criativa, o talento ou a qualificação do Oda enquanto mangaká, e o número de vendas de One Piece fala por si só: muito recentemente o mangá bateu novamente o recorde mundial do Guinness Book referente ao “maior número de cópias publicadas para a mesma série de quadrinhos por um único autor”. Não é minha intenção criticar esse aspecto – muito pelo contrário, acredito que é exatamente por ele ser um mangaká extremamente habilidoso é que acredito que posso (e devo) criticar pontos de sua obra que seriam facilmente resolvidos, caso o autor tivesse essa disposição. Mas vamos por partes.
As mulheres X8O de One Piece
Não faltam personagens femininas de destaque em todos os cantos de One Piece: na Marinha, nas tripulações de piratas… no céu, na terra e no mar. Não faltam mulheres aqui. Muitas delas são memoráveis e com histórias que geram impacto nos espectadores. A grande maioria, no entanto, compartilha de um mesmo problema: o design simplista, reduzido literalmente a “três bolas e um x”. É o que o próprio Oda comentou lá em 2016:
Segundo matéria da Kotaku, Oda recebeu uma pergunta sobre como ele desenhava as mulheres de One Piece, ao que ele respondeu: “As proporções das mulheres são três círculos e um X. Por favor, pense e desenhe desta forma”. Oda, no entanto, acrescentou palavras de “cautela”, dizendo que “se você desenhar muitos desses tipos de corpo, é necessário estar preparado para receber cartas críticas de leitoras”.
Então o cara sempre soube do problema, assim como da insatisfação de parte do público? É. Ele só decide deliberadamente que vai fazer daquela forma mesmo assim. Infelizmente essa questão não é assunto novo e qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade consegue entender de onde vem o desconforto do público feminino com isso, mas não se preocupe, pretendo desenhar esse desconforto logo abaixo no texto.
Basicamente, é um problema porque isso não só cria personagens que são extremamente genéricas e estranhamente parecidas, como também abre margem para sexualização e objetificação feminina, o que acaba acontecendo com força total quando a obra passa pelo processo de animação nos estúdios da Toei – o que piora a partir do timeskip. Então sim, o problema não é tanto o mangá, mas ele de fato começa com o mangá e termina com a autorização do mangaká para que o estúdio de animação piore ainda mais a situação enfiando um fanservice exagerado goela abaixo de todo mundo. Daí, não dá outra. Os “três círculos e o x” viram as coisas mais detestáveis da objetificação feminina do universo geek: ausência de órgãos internos, coluna vertebral elástica, seios antigravitacionais e hiperlordose lombar. Já ouviu falar da síndrome da mesma face (vindo do inglês “same face syndrome“)? Tem isso, só que inclui também a “síndrome do mesmo corpo” no pacote.
As poses toscas das HQs de super heroínas podem ser alteradas nesse caso por inúmeras cenas no anime com zoom desnecessário em peito e bunda, mas volta e meia surgem também as malditas poses ginecológicas entre cenas de ação.
Pra quem quiser entender mais sobre isso, este artigo da Superinteressante com dicas de como não sexualizar uma personagem é bem esclarecedor. Já vamos adiantando as reclamações e argumentos contra a sexualização com este artigo da Legião dos Heróis. Leiam, faz bem.
E não, não são literalmente todas as mulheres do mangá que têm esse design. Mas é bom destacar que, apesar disso, ainda é a grande maioria das personagens dentro desse padrão. As que fogem dele geralmente são mulheres mais velhas, que de repente também parecem ter outro padrão: a da velha ‘gorda e feia’. De Dadan, mãe de criação de Luffy e Ace; à Linlin dos piratas da Big Mom; à Jora dos piratas do Don Quixote até a Kokoro de Ennies Lobby, por exemplo.

Enfim, o destino da maior parte das mulheres de One Piece é bem binário mesmo: de jovem sexy e peituda a velha e gorda – ou o contrário, se você considerar personagens como Alvida. Esse trânsito entre corpos extremamente magros para corpos muito gordos desconsidera muito do que a gente entende por biotipo corporal e atrapalha muito na suspensão de descrença. Além disso, a retratação de mulheres gordas com aspectos que geram estranheza para a então repentina beleza extrema de quando elas se tornam magras podia gerar todo um debate sobre gordofobia, mas isso vai ficar pra outro dia.
Akuma no Mi “de mulher”
Fora o problema da sexualização, as personagens femininas de One Piece ainda passam por outra bateria de controvérsias: a forma estereotipada que seus poderes são escolhidos. Para ilustrar, na planilha abaixo listo frutas do diabo de algumas das personagens femininas mais proeminentes do mangá, com informações retiradas diretamente da wiki de One Piece, e peço que observem se existe alguma ligação entre elas:
Não notaram? Explico: todos esses poderes são estereotipadamente definidos como “funções femininas”, como atividades domésticas (lavar/ensaboar) ou expectativas historicamente impostas ao gênero feminino, como curar/cuidar/incentivar ou alterar peso/idade.

Nos piores casos, prender/enjaular entram naquela perspectiva batida de como mulheres são vistas dentro de relacionamentos cis-hétero: capazes de acabar com a liberdade do homem, “game over” e todo aquele papo que nós mulheres somos obrigadas a lidar constantemente.

E é desnecessário dizer que ver isso durante mais de cem volumes do mangá e mil episódios do anime é um negócio super cansativo, né? Pois é.
Claro, temos frutas do diabo super bacanas e menos convencionais, como a Hana Hana no Mi de Robin, a Horo Horo de Perona, a Hobi Hobi de Sugar, a Giro Giro no Mi de Viola… Mas elas são, novamente, minoria.
Não quer dizer que odeio as personagens que têm essas frutas estereotipadas, mas sinto que os potenciais delas são bastante reduzidos por causa disso. Quer dizer também que personagens masculinos só têm habilidades consideradas “masculinas”? Não. Temos a Fuku Fuku no Mi de Kin’emon que altera vestimentas, a Nui Nui no Mi de Leo de costurar coisas, por exemplo, mas o ponto aqui é que boa parte dos personagens masculinos recebem frutas do diabo que engrandecem suas personalidades, os tornam mais temíveis ou mais legais – e não mais ridículos, com resultados toscos ou engraçadinhos.
A título de exemplo, o efeito da Awa Awa no Mi que deixa a pele lisa se chama “hora dourada”… Por favor, né? Tudo aqui é sugestivo demais.
Queria também a energia para discutir como o gênero shounen quase nunca permite que mulheres sejam igualadas em poder e força com homens, mas isso também vai ficar pra outro dia.
Por que essa representação é ruim?
Como já foi afirmado, essa caracterização tira personalidade das personagens quando as reduz ao “apelo sexual”, generaliza biotipo corporal feminino, mas gera outros efeitos igualmente detestáveis.
O primeiro é o fã babaca mal acostumado. Aquela parte minoritária, barulhenta e bem nerdola do fandom que não acha nada errado em como a Nami e a Robin simplesmente tiveram os peitos misteriosamente inflados depois do timeskip, que assiste ou lê a história pelo fetiche e e que está constantemente incomodando mulheres que reclamam desse tipo de coisa. Infelizmente Oda faz essa caracterização degradante para esse tipo de público mesmo, que lhe dá dinheiro com gosto e o endeusa, eximindo-o de qualquer crítica. Essa parte do fandom vai sempre existir como uma motivação para o mangá nunca melhorar nesse sentido, e o male gaze ali acaba influenciando opiniões de pessoas novas e menos extremistas que essa galera, o que perpetua uma toxicidade no fandom e faz o autor continuar ignorando os apelos das mulheres que são igualmente fãs. E quando o autor faz isso, ele tanto permite quanto autoriza essa parte tóxica no fandom da obra, mesmo que sua história combata em vários níveis esse comportamento tóxico.
O segundo efeito é, na verdade, os efeitos comuns da sexualização e da objetificação feminina: mesmo que se trate de “personagens fictícias”, nenhuma leitura ou consumo de mídia existe alheia à sociedade. Isso quer fizer que, como afirmado nessa matéria da Politize, a objetificação do corpo feminino tem várias consequências danosas, sendo a primeira delas a estereotipação da mulher e o estabelecimento de padrões estéticos irreais:
Uma vez que o julgamento inicial de uma pessoa se dá pela aparência, existe uma expectativa do que é bom ou ruim, certo ou errado e, consequentemente, a exclusão e depreciação de mulheres que não atendem a esses padrões.
Já chegou no inferno da internet onde nerdola diz que “mulheres 2D são melhores que as 3D”?? É por aí. E isso faz com que mulheres sejam hostilizadas pelo seu peso, altura, cabelo, depilação, formato de corpo e demais atributos físicos. A matéria continua:
Outra consequência danosa desse fenômeno é a auto-objetificação da mulher. Mulheres que vivem em ambientes de objetificação tendem a se auto-objetificar e também a objetificar outras mulheres, sofrendo, assim, danos de autoestima e de socialização.
Bastava ouvir as fãs e entregar um pouquinho de consideração, já que nós somos também parte do público que fez do mangá um best-seller.
Onde entra o live-action na conversa?
Podemos começar com a reação peçonhenta de parte do fandom com a escalação das atrizes do live-action. De homens reclamando do tamanho dos seios da Emily Rudd, que interpreta Nami; ou homens ofendendo Ilia Isorelýs Paulino, intérprete de Alvida, por causa do seu peso; ou homens sendo racistas por causa da cor da pele de Chioma Antoinette Umeala, intérprete de Nojiko; ou homens sendo transfóbicos com Morgan Davies, homem trans que interpreta Koby. Enfim, nada de novo no fronte: mulheres e minorias sempre são alvo de ataque gratuito.
Mas o que me intriga mesmo é a forma que a Netflix corrigiu alguns dos defeitos do mangá durante a adaptação para live-action, como o fato do Sanji não ser um pervertido e assediador nojento travestido de “cavalheiro defensor de mulheres” (leia mais sobre isso aqui no Garotas Geeks) ou, claro, não fazendo Emily alterar nada em seu tipo físico, incluindo o tamanho dos seios e vestimenta para poder interpretar Nami.
E é isso que confirma mais uma vez que o que vale é quem paga mais. Oda autoriza certas modificações na sua obra, para bem ou para mal, dependendo de quem seja. Toei para piorar e Netflix para melhorar. No caso da Netflix, porque sabe que incluir assédio e sexualização num filme de uma plataforma mundial geraria críticas duras e talvez boicotes. No caso da Toei, talvez porque o machismo e a discriminação de gênero no Japão seja uma discussão ainda muito leve na indústria de animes – mas parte de mim desacredita nisso porque existem pessoas como Hayao Miyazaki, Mamoru Hosoda e o saudoso Satoshi Kon, que sempre demonstraram respeito por suas personagens femininas.
De toda forma, sinceramente, é triste esta situação. One Piece é um mangá com um nível altíssimo de discussão social e política. A história defende abertamente os direitos, o respeito e a existência de pessoas LGBTQIA, cria narrativas de tritões e sereias e as conecta com racismo, condena abuso de poder e a escravidão, mas não se importa com o machismo?
Meu desapontamento com toda essa questão diminui um pouco meu amor pela obra sim, e com certeza abate minha vontade de continuar acompanhando. Larguei o anime diversas vezes por causa disso.
E, no final das contas, é simples, na verdade: ou Oda é um aliado de todos, ou não é aliado de ninguém. Se sua obra ignora como mulheres se sentem com sua retratação do nosso gênero enquanto abraça outras questões sociais, ela é hipócrita.
Leia mais sobre One Piece no GG!
Débora é musicista, professora de artes, pesquisadora de sociologia de gênero. Autoproclamada otaku-não-fedida e gamer casual. A alcunha de Liao veio de um site aleatório de geração de nomes japoneses (Liao é chinês, mas tudo bem).