E de quebra, é um filme fantástico que merece todo o hype e o sucesso que está recebendo em retorno.

*** ALERTA DE SPOILERS PARA O FILME SHANG-CHI ***

Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis foi lançado no Brasil na semana passada e desde então tem recebido uma avalanche de boas avaliações na internet, rapidamente assumindo o topo da bilheteria nacional e arrecadando quase 10 milhões logo na estreia. No resto do mundo, a contragosto da peste de nerdolice que assola o universo da cultura pop, Shang-Chi recebeu excelentes críticas dos especialistas de cinema e é o filme de quadrinhos com maior avaliação de todos os tempos em termos de pontuação de público, de acordo com o Rotten Tomatoes.

Aliás, o Rotten Tomatoes sintetiza bem as críticas tanto do público quanto dos especialistas: Shang-Chi não é totalmente livre da fórmula familiar da Marvel, mas tem uma história emocionante que expande o MCU, provendo ótimas cenas de ação e comédia, oferecendo aos fãs da Marvel o mesmo sentimento de animação e adrenalina que os filmes da empresa são conhecidos por causar.

Para quem ainda não conhecia a história do herói, fica aqui um breve resumo:

Também chamado de Mestre do Kung Fu, Shang-Chi é um personagem criado por Steve Englehart e Jim Starlin, aparecendo pela primeira vez na Special Marvel Edition #15, publicada em dezembro de 1973, durante a Era de Bronze das histórias em quadrinhos. Os anos 70 eram também o período de ouro dos filmes de artes marciais e da série de televisão Kung Fu (1972), então a Marvel quis aproveitar o momento. Para começar a HQ com um certo impacto, a empresa adquiriu a licença de Fu Manchu – um vilão chinês da literatura pulp, criado pelo romancista Sax Rohmer – e o incorporou na origem do novo herói.

Nascido na China, filho de Fu Manchu – um criminoso que repetidamente tentou conquistar o mundo e tinha sede de sangue – Shang-Chi foi criado e treinado nas artes marciais por seu pai e seus instrutores e só se desassocia deles quando conhece Sir. Denis Nayland Smith, arqui-inimigo de Fu Manchu, que mostra para o jovem herói que as ações do pai eram na verdade más. Após se rebelar, Shang-Chi junta aliados e enfrenta assassinos e vilões em sua jornada. Apesar de muitas vezes entrar em conflito, o espírito pacifista e o desejo de fazer justiça de Shang-Chi o faz entender que, às vezes, é necessário usar a força para salvar vidas.

Shang-Chi entrou para o rol de personagens da Marvel que praticavam artes marciais (como Punho de Ferro, Filhos do Tigre, Colleen Wing e Misty Knight) e foi desenvolvido para ser um mestre extraordinário de todos os estilos de wushu (kung-fu, na tradução para o português), tanto em combates desarmados quanto armados. Mais tarde, ao ingressar nos Vingadores, Shang-Chi ganha novas habilidades, que usa para combater o mal e em particular seu pai, agora Zheng Zu (a troca do nome foi necessária porque a Marvel perdeu os direitos dos personagens de Sax Rohmer).

Após várias alterações no design do personagem, Shang-Chi ganhou as feições de Bruce Lee por iniciativa do desenhista Paul Gulacy.

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Agora podemos então falar dos problemas que o filme de Shang-Chi conseguiu trabalhar, tornando a obra muito mais culturalmente sensível.

Resolvendo o problema com o Fu Manchu e o Mandarim

O Doutor Fu Manchu é um personagem ficcional que aparece em uma série de novelas do escritor inglês Sax Rohmer, produzidas durante a primeira metade do século XX. O personagem foi adaptado para o cinema, televisão, rádio e quadrinhos. Ele é o arquétipo do “Gênio do Crime” da ficção, embora em sua composição haja vários estereótipos ocidentais sobre os chineses: misteriosos, traiçoeiros, ardilosos, com um gosto particular por ciências obscuras, torturas e venenos. A face de Fu Manchu descrita pelo autor se tornou muito conhecida, com os longos bigodes que se tornaram sua marca registrada.

As controvérsias que seguem Fu Manchu são bem longas. As histórias do personagem geraram inúmeras acusações de racismo e orientalismo, desde sua concepção maligna até seu absurdo nome chinês (no Brasil, é quase equivalente a nomear pessoas com traços asiáticos de “xingling” ou semelhantes). Por exemplo, após o lançamento da adaptação cinematográfica da Metro-Goldwyn-Mayer de The Mask of Fu Manchu (1932), que apresentava o vilão chinês dizendo a seus seguidores que eles deveriam “matar o homem branco e levar suas mulheres”, a embaixada chinesa em Washington, nos EUA, entrou com uma queixa formal contra a produção do filme. Anos após isso, a reedição do livro em 1972 foi recebida com protestos da Liga dos Cidadãos Nipo-Americanos, que declarava que “o livro era ofensivo e humilhante para os asiático-americanos”. Na verdade, a comunidade asiática-americana precisou protestar inúmeras vezes contra adaptações e reedições da obra.

Quanto mais se pesquisa sobre esse assunto e sobre os posicionamentos do autor, menos restam dúvidas: Sax era racista e contribuiu em grande escala para a propagação e naturalização de estereótipos extremamente prejudiciais, em especial o do “perigo amarelo“, que favoreceu casos de racismo e xenofobia. A decisão da Marvel de nem mesmo acenar para essa origem ou apresentar qualquer coisa relacionada a isso no filme, divergindo do que houve nas HQs, foi acertadíssima. 

Em relação ao Mandarim, temos problemas de whitewashing e de estereotipação. Foi Homem de Ferro 3 (2013) que apresentou duas versões do clássico vilão da Marvel: uma versão falsa interpretada por Trevor Slattery (Ben Kingsley), e a versão real criada por Aldrich Killian (Guy Pearce). Nenhuma dessas versões satisfez os fãs, especialmente os fãs asiáticos ou descendentes – e é daqui que vieram as principais reclamações de whitewashing. Felizmente, Shang-Chi consertou ambos os problemas com uma versão muito superior do personagem: Wenwu, que não usa o nome de Mandarim. Na verdade, ele zomba disso no filme e a cena é genial. 

Nesse sentido, foi também muito importante dar mais nuance ao personagem de Wenwu. No longa, ele é uma figura bastante poderosa, mas que apesar de ser ainda mais poderoso e perigoso que nas HQs, não é o típico vilão desprovido de coração ou moral. Na verdade, o filme cria empatia pelo personagem e deixa perceptível que ele tem uma capacidade profunda de amar. Seu jeito arrogante e egocêntrico realmente muda quando ele conhece o amor de sua vida – e é o seu luto por ela que o motiva, não mais a ganância pelo poder.

Subvertendo o tropo das mulheres na geladeira

Logo no início do filme eu já sentia que a mãe do Shang-Chi serviria de base para todo o trauma que a família seria submetida e para a origem da história do herói. Jiang Li foi uma personagem cativante desde sua primeira aparição e eu torci pra que meus instintos estivessem errados. Infelizmente, não estavam.

Mais próximo para o final do filme, quando Xialing quase morre, eu quase surtei pensando que iam matá-la. Fiquei revoltada pensando que seria absurdo se a Marvel resolvesse matar outra parenta do herói para usá-la de combustível para a jornada dele, em pleno 2021. Mas dei um voto de confiança, porque não acho que a Marvel tenha essa capacidade. Felizmente ela não morre e então fiquei aliviada. Obrigada, Marvel, por não pisar feião na bola. Uma personagem morta assim a gente até suporta, duas não rola.

No entanto, quando saí do cinema, parei pra realmente analisar se Jiang Li teria sido de fato um caso de mulher na geladeira. Antes de entrar em detalhes, é importante revisar o conceito do termo. De acordo com o Nó de Oito, Mulher na Geladeira (Woman in Refrigerator) refere-se a prática de matar, estuprar, mutilar, desempoderar, etc., uma personagem feminina, única e exclusivamente para motivar e colocar em andamento a história de um personagem masculino com quem ela se relaciona. O texto diz:

O termo veio do mundo das HQs e refere-se à história do Lanterna Verde #54 (1994), escrita por Ron Marz. Na história, Kyle Rayner (o Lanterna pós-Hal Jordan) volta para casa um belo dia e encontra a namorada, Alexandra Dewitt, morta e enfiada dentro da geladeira. Ele surta de dor e ódio, vai atrás do responsável, o Major Força, tortura e quase mata o cara. Claro que a morte da Alex tem todo um papel importante no desenvolvimento dele como super-herói…Porque, né? De que outra maneira um personagem poderia se desenvolver, que não tendo a namorada brutalmente assassinada?

Pois é, em 1999 a escritora de HQs Gail Simone se fez a mesma pergunta, e notou que existia uma tendência no mundo das HQs de matar ou violentar personagens femininas para causar o desenvolvimento de personagens masculinos. Foi então que ela e alguns colegas começaram a usar o termo Mulheres na Geladeira (Women in Refrigerators) e criaram um site com esse nome, contendo uma compilação de todas as personagens femininas importantes de HQ (veja bem, não contaram personagem pequeno) que eles conseguiam lembrar e que se encaixavam nessa descrição. Logo de cara ficou claro que: (1) personagens femininos morriam mais e sofriam mais violência, às vezes apenas para servir de impulso para a história de um personagem masculino; (2) personagens femininos não se recuperavam como seus “equivalentes-heróis-homens”.

Como é possível perceber, o Mulheres na Geladeira é um tropo baixo, desprezível e inadmissível. E não senti que Jiang Li se encaixou na descrição dele. A personagem é tratada com dignidade, sua morte não é um recurso barato e realmente causa um impacto no resto do filme. Sua memória continua viva durante toda a narrativa. Diferente das HQs, a mãe de Shang-Chi ganhou respeito, agência, profundidade e, acreditem, um nome. Ela não morre de forma desumanizante, mas usando sua força e habilidade para proteger sua família. Ela não foi uma donzela em perigo e sim quem garantiu que Shang-Chi e Xialing sobrevivessem.

Mesmo após a morte, Jiang Li é uma influência forte no caráter do protagonista, em suas decisões, no estilo de luta que o permite triunfar. Ele se torna forte por causa dela. Normalmente, o tropo seria usado para fomentar ódio no personagem e gerar um desejo cego por vingança, mas tanto Shang-Chi quanto Xialing processaram bem o luto e não deixaram a morte da mãe controlar suas ações – e foi exatamente isso que permitiu que eles não se deixassem levar pela influência venenosa do pai.

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Perceber isso foi fundamental e me deixou bastante satisfeita.

Outros pontos fortes e fracos do filme

Shang-Chi trouxe representatividade em frente e por trás das câmeras, e pelo que vimos até aqui, é visível o impacto que isso trouxe para a história. Mas um dos maiores privilégios do filme é observar a atuação primorosa de Michelle Yeoh e Fala Chenque aliás aplaudiu o filme por suas escolhas autênticas de linguagem, permitindo que os atores tivessem falas em mandarim. Tony Leung também acrescenta em peso ao elenco e parece ter nascido para dar vida ao principal antagonista do filme, tamanha é a naturalidade que ele interpreta o personagem. A participação do humorista Ronny Chieng como Jon Jon foi super divertida, e fico feliz que ele tenha ganhado espaço num personagem que faz jus à sua personalidade (aliás, o especial de stand-up dele na Netflix, Ronny Chieng: Asian Comedian Destroys America, é um brinco).

Quem não conhecia o trabalho de Meng’er Zhang e Simu Liu pôde notar como a escolha do elenco foi muito bem feita – o combo de Awkwafina e Simu Liu também é perfeito, te deixa desejando ser amigo deles, ter amigos como eles. Rever o Benedict Wong é sempre um prazer e, como um bônus, a participação de Ben Kingsley foi super construtiva para o humor do enredo.

As referências para a cultura pop inundam e colorem o filme, e foi bem engraçado ver cenas como aquela em que Awkwafina se refere aos poderes de Shang-Chi como um kamehameha. Mas, sem dúvidas, a referência que mais colaborou para tornar o filme singular, ainda mais carismático e com cenas belíssimas foi a inspiração no gênero cinematográfico wuxia, que mistura fantasia e artes marciais – gênero presente em filmes como O Clã das Adagas Voadoras (2004), A Maldição da Flor Dourada (2006), mas iniciado em Hollywood pelo diretor Ang Lee com O Tigre e o Dragão (2000). Além disso, as referências para os filmes de Bruce Lee também são bem evidentes.

Friso aqui que a graciosidade das coreografias nas cenas de luta de Tony Leung com Fala Chen ou de Michelle Yeoh com Simu Liu são de encher os olhos.

A trilha sonora do filme é impecável. Joel P West mesclou orquestração ocidental e temas culturais da música chinesa com perfeição, tanto em estilo como instrumentação (os tambores tanggu dão um toque extra de sabor no resultado final), contribuindo pra uma ambientação ainda mais rica e fantástica – em todos os sentidos da palavra. Sem exotizar a coisa, o que foi essencial. Aliás, talvez este seja o maior trabalho da carreira do compositor. Seu site mostra detalhes sobre a produção musical do filme, que contou com a participação de músicos e musicistas asiáticos. E neste ponto eu simplesmente preciso fazer um comentário à parte: adoro viver num mundo moderno onde posso sair do cinema e já poder ouvir a trilha sonora no meu celular mesmo e pesquisar sobre detalhes que inspiraram a habilidade criativa da OST! Esta é com certeza uma das maiores satisfações da atualidade. A tecnologia nos abençoa muito mais do que temos ciência.

Na minha humilde opinião, o filme peca um pouco no exagero dos efeitos especiais. E aqui estou falando especificamente na luta final do filme, onde o cenário fica bem poluído – as demais cenas são muito boas. Mas foi difícil não lembrar dos pecados das cenas finais de Aquaman (2018), que gerou críticas como a da Forbes, apontando que a DC trazia um espetáculo visual às custas de todo o resto. Menos é mais. A Marvel sabe disso, os filmes da empresa costumam ter grandes sequências de ação, mas eles também sabem como é importante equilibrar grandes cenas de ação com momentos de menor impacto visual e maior impacto narrativo. Felizmente, diferente de Aquaman, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis teve um enredo muito mais amarrado e emotivo, então pode ser que nem todo mundo se incomode com isso.

Senti falta de um flashback no filme que mostrasse como Shang-Chi percebeu que a vingança não era o bastante e como isso o fez fugir da organização de seu pai. Acho que isso proporcionaria uma identificação mais forte com o personagem, seria uma explicação mais visual e mais efetiva que uma pequena conversa de menos de 5 minutos. O enredo tem algumas pontas soltas, mas neste caso resta esperar para ver se a já confirmada sequência conseguirá preencher os vazios.

O fato de que a Marvel não transmitiu o filme na Disney+ também é um ponto positivo! Fico feliz que todos os envolvidos na produção receberão o valor justo por seus trabalhos, evitando o problema de Viúva Negra. É super interessante pesquisar a respeito e perceber como um blog sobre cultura pop asiática contribuiu muito para que isso acontecesse. Ver que pessoas asiáticas e descendentes estão se tornando cada vez mais vocais, algo que parece ser uma batalha geracional, é incrível.

A cena pós-créditos me deixou super feliz! Senti que foi um aceno da Marvel para as fãs, uma forma de reafirmar o compromisso de aumentar a igualdade de gênero nas telas e promover mais personagens femininas fortes – personagens com agência, com um amplo potencial a ser explorado. E é uma sensação extremamente acalentadora perceber que a empresa está se enchendo de pessoas sensíveis, que se preocupam com as vozes que até então nunca tinham sido ouvidas.

Por fim, que feliz momento para a comunidade asiática, asiática-americana e descendente asiática de todo o mundo! O MCU tem se arriscado mais na Fase Quatro com heróis menores e menos conhecidos, especialmente aqueles de comunidades que não costumam ser representadas em Hollywood. E nós precisamos celebrar isso sempre.

Shang-Chi é um presente! Super recomendo o filme.


Imagem de capa: John Lee | Crédito de Imagens: Marvel

Leia mais sobre Shang-Chi aqui no site!

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