Argh.

No último dia 20, Casey Bloys e Miguel Sapochnik – dois dos produtores executivos de House of the Dragon – deram entrevista para o The Hollywood Reporter falando sobre vários aspectos da série, desde informações básicas da história até… sobre como eles pretendem “lançar uma luz” sobre estupros em épocas medievais.

Segura na mão de deus…

Para contextualizar, vale dizer que House of the Dragon (A Casa do Dragão, no Brasil) é uma futura série de televisão de fantasia medieval norte-americana criada por Ryan J. Condal e George R. R. Martin para o canal HBO. A série é uma prequel de Game of Thrones  e é baseada em uma parte específica do livro Fogo & Sangue (Fire & Blood, no orginal), de 2018, escrito por Martin. Situada 200 anos antes de Game of Thrones, House of the Dragon apresentará a disputa dos meios-irmãos Rhaenyra Targaryen e Aegon II pela posse do Trono de Ferro dos Sete Reinos de Westeros.

Mas vamos ao que interessa. Traduzi abaixo a parte da entrevista onde o assunto “violência sexual” foi abordado:

Arya, Brienne, Cersei, Daenerys, Sansa — Game of Thrones teve algumas das melhores personagens femininas da cultura pop; cada um forte, única e diferente uma da outra ou de qualquer outra pessoa na TV. No entanto, o programa também foi criticado por lidar com esses personagens, bem como por retratar a violência sexual inerente ao mundo de Martin (que é um reino de fantasia, mas diretamente inspirado na Europa medieval e seus horrores associados). A equipe Dragon está muito ciente de tais críticas e pretendia abordar seu material de forma um pouco diferente.

“Os programas são um produto de seu tempo, e há muito mais consciência agora sobre o que estamos retratando e por quê – e quem está conversando sobre isso”, diz Bloys.

[…]

Sapochnik diz que a produção também “recua” a quantidade de sexo na série enquanto adiciona vislumbres de como o sexo é um aspecto indiferente da vida dos Targaryen. A agressão sexual ainda faz parte do mundo. Sapochnik diz que a abordagem da dupla é feita “com cuidado, ponderação e [nós] não nos esquivamos disso. Se alguma coisa, vamos lançar uma luz esse aspecto. Você não pode ignorar a violência que foi perpetrada contra as mulheres pelos homens naquela época. Não deve ser minimizado e não deve ser glorificado”.

Os espectadores de GOT criticaram especialmente uma cena gráfica de agressão sexual que ocorreu na quinta temporada. No episódio, Sansa Stark (Sophie Turner) é estuprada por seu marido sádico, Ramsay Bolton (Iwan Rheon). O episódio foi tão grotesco que me fez desistir de continuar acompanhando a série. O próprio Iwan disse em uma entrevista posterior que filmar a cena brutal foi “o pior dia” de sua carreira, e Sophie revelou que os múltiplos episódios de agressão e crueldade que sua personagem enfrentou na série a inspiraram a se tornar uma defensora dos direitos das mulheres na vida real.

Game of Thrones tinha de fato ótimas personagens femininas, porém falhou terrivelmente na adaptação de quase todas elas.

+ Como Game of Thrones falhou na adaptação de Arya, Sansa e Catelyn Stark

+ Como Game of Thrones falhou na adaptação de Cersei, Daenerys e Shae

Que bom que os novos produtores conseguiram perceber os erros dos Dumb & Dumber, mas o quão diferente eles pretendem fazer isso, se já estão falando como se estupros necessitassem de mais “luz”? Qual o sentido de diminuir cenas de sexo consensual, mas continuar mostrando cenas de abuso?

A ideia de diminuir cenas de sexo, de acordo com Sapochnik, vem de querer trabalhar uma abordagem com “mais nuances” – e isso pode uma coisa positiva pra série, mas o problema não é esse.

Para ilustrar, coloco a seguir a reação do público quando a matéria foi postada no Twitter:

Tradução: [“Menos sexo, mas não se preocupe, haverá estupro” não é o ponto de venda que você pensa que é.]

Tradução: [Eu amo a ideia de que eles *tiveram* que incluir isso porque é “medieval”, como se nosso mundo moderno não estivesse repleto de violência sexual, incluindo [verifica as notas] programas de TV que preferem “lançar uma luz” na violência sexual do que retratar sexo consensual.]

Tradução: [Quero que os showrunners saibam que existem muitas ferramentas de narrativa que você pode usar para fazer o público entender que a violência sexual aconteceu com um personagem sem nos mostrar cada nanossegundo das agressões em nossas telas. Tipo… eu realmente quero que eles saibam disso.]

Como uma das muitas telespectadoras que não conseguiu chegar ao fim de Game of Thrones exatamente por causa das inúmeras cenas de estupro e abuso que se transformaram em pornô de tortura, ler esse tipo de declaração vaga me deixa com ânimo negativo e uma dúvida imensa se eles vão realmente tratar essas cenas com “cuidado e ponderação”. Explico os motivos.

1. Ninguém aguenta mais ver cenas de estupro sendo usadas como muleta para roteiro ruim

Sério. Dá pra fazer uma lista gigante de séries que contém cenas assim e o IMDB inclusive tem uma. Mas nos últimos anos tivemos que suportar séries tratando do tema com uma irresponsabilidade enorme: Outlander (falamos especificamente da série aqui), Scandal, True Blood, American Horror Show, Downton Abbey, Reign, e claro, Game of Thrones. E tem de se levar em consideração que o contrário também acontece. Nos últimos anos tivemos séries incríveis tratando do tema de forma sensibilizada (I May Destroy You, Unbelievable, Sex Education, Big Little Lies), então não tem mais desculpas.

+ Alguns showrunners estão banindo o estupro como um dispositivo de enredo em suas séries [texto em inglês]

Se a cena de estupro existe apenas como um dispositivo de enredo ou apenas para justificar os traços de caráter de um personagem x ou y, é muleta e resultado de roteiro mal feito. Se a experiência de uma mulher abusada nunca é abordada de forma crítica ou pensativa, é muleta. Se no resultado final a cena dá a entender que as mulheres não importam tanto quanto o objetivo do estupro, é MULETA.

Ninguém aguenta mais ver mulheres na geladeira, ver estereótipos batidos de mulheres que precisam ser salvas. Não tem nada de inovador nisso, é um recurso preguiçoso. É usar um crime hediondo, violento e deplorável como elemento para justificar um dos seguintes: dar ao herói uma causa pela qual lutar, ou eliminar um personagem da trama já que a vítima quase sempre comete suicídio, ou para estabelecer o caráter do vilão.

Estupros acontecem. Verdade. Mas usar o estupro apenas como um dispositivo de enredo não apenas contribui para sua sensacionalização, mas também funciona para dessensibilizar o público para a questão da violência contra as mulheres. Estupro é um assunto sério. Não é igual a um roubo/sequestro/contrabando ou qualquer outro crime que você possa usar para mostrar o traço maligno de um personagem ou a raiva sentida por um bom personagem.

Retratar o estupro dessa maneira nos dessensibiliza também porque apaga a experiência da vítima, faz dela o pano de fundo da história “mais importante” do herói e, portanto, ignora a grave realidade do estupro. Ficamos ainda mais insensíveis porque o estupro e a agressão sexual são usados repetidamente ​​desse jeito no cinema, na televisão e na literatura. Quando usamos o estupro e a violência sexual apenas como um dispositivo de contar histórias, e deixamos de nos envolver com a experiência do personagem, negamos as experiências de milhares de pessoas para quem o estupro é uma realidade e não apenas algo que acontece no fundo da história de outra pessoa na tela, no palco e nos livros. É uma praga na indústria de séries e filmes, uma escrita preguiçosa que promove a cultura do estupro, a opressão, objetificação e degradação das mulheres. Além de tudo, fornece mais forragem para nossa configuração patriarcal existente. E eu nem vou entrar em como isso alimenta a fantasia do estupro e fetiche aqui.

É perigoso, inclusive, porque está ‘mudando’ a simpatia da vítima para o agressor, de acordo com alerta acadêmico (vale muito a pena a leitura).

Aquela cena da Sansa sendo estuprada, por exemplo, novamente: é claro que a cena não era necessária, vimos bastante violência e comportamento sádico em Game of Thrones, e sabemos que os showrunners só adicionaram ela para chocar e aumentar a audiência da série. Mas a cena ficou ainda pior porque no momento do estupro, a câmera passou do rosto assustado e chocado de Sansa para focar no de Theon Greyjoy. Então, fomos obrigados a ver o que Theon passou e não o que aconteceu com Sansa. Mais uma vez, o estupro foi apenas uma ferramenta de enredo na história do Theon – algo completamente diferente de quando ele estava sendo torturado e castrado por Bolton: ali ele tinha o tempo de tela inteiramente só pra ele, logo, os espectadores viam aquele sofrimento na perspectiva dele.

Para contextualizar: uma blogueira que se autodenomina “Tafkar” assistiu e registrou o número de estupros e tentativas de estupro que viu em GOT. Ela contou pouco mais de 50 em 2015. Ela também observa, no entanto, que nos primeiros cinco livros de Martin, há mais de 200 retratos de estupro e tentativa de estupro. Ou seja, Game of Thrones e ASOIAF exploraram o recurso do estupro como ponto narrativo de forma desnecessariamente detalhada e apelativa até o limite do exaustivo. Já chega.

2. Precisão histórica é uma péssima desculpa pra estupros em histórias de fantasia

Não é um documento histórico. Não vão lançar luz em porcaria nenhuma. Mulheres – cis ou trans, hétero, homo ou bi, não importa – sabem muito bem que vivem sob a ameaça de violência sexual e que sempre estiveram. Ninguém quer “luz” disso. Todos nós sabemos que estupro é algo comum, mas ainda assim somos críticos ao uso excessivo dele em histórias fictícias, porque isso normalmente vem muito mais de uma necessidade de melodrama moralista e falta de recursos intelectuais do que de realidades psicológicas de eventos do tipo.

A agressão sexual que permeia a vida das personagens femininas na série não está tão distante das experiências das espectadoras.

Segundo estatísticas recentes, cerca de uma em cada três mulheres sofrerá algum tipo de agressão sexual. Se isso não aconteceu com você, você quase certamente conhece alguém que foi vítima. Este não é um problema novo; pessoas foram estupradas ao longo de toda a história humana, na maioria das vezes vitimizadas por homens. George R.R. Martin explicou seu uso frequente do estupro em seus livros ao adotar o conceito vago da “precisão histórica” – mulheres foram agredidas ao longo da história humana, então excluir essa realidade de seus livros (e, por associação, da série de TV) seria apresentar uma “realidade artificial”, ou assim diz a suposta lógica dele. Claro, Game of Thrones não é um drama de época muito tradicional. Obviamente, os eventos da série nunca aconteceram na história humana (dragões, zumbis de gelo, sombras assassinas e assim vai), e defender seu uso de estupro com base na precisão histórica é desconsiderar, bem, a história real.

Por que “precisão histórica” é uma desculpa ruim para o estupro desenfreado nas séries de fantasia

A verdade é que a precisão histórica não existe na ficção, nem podemos saber como seria o futuro após um cataclisma. Tudo em uma história fictícia foi fabricado pelo contador de histórias, e a precisão nunca é a maior prioridade de um contador de histórias. Com que frequência os heróis jogam o conteúdo de seus penicos na rua? Com que frequência fazemos com que nossos lindos atores pareçam ter dentes podres? Quando um personagem está doente, com que frequência o herói convoca um médico para sangrá-lo? Não vemos essas coisas porque o objetivo real dos contadores de histórias é criar a impressão de que sua história é realista ou histórica enquanto cria uma experiência agradável. Assim, os cenários históricos são sempre higienizados para um público moderno, e os cenários futuristas são sempre projetados para serem atraentes para as pessoas de hoje. Um contador de histórias que defende a violência sexual em seu cenário com a falácia do mundo real está tentando esconder que eles usaram o estupro para criar uma atmosfera.

Essa defesa nos diz o quão prejudicial é a prática. Colocar o estupro em uma história para tornar o mundo “corajoso” e defender essa prática como a única escolha realista, comunica que o estupro é uma parte inevitável da existência humana, não uma escolha específica feita por uma pessoa que poderia ter escolhido de outra forma. Pessoas reais usam essa ideia para argumentar contra a responsabilização de estupradores por suas ações. Com a responsabilidade pelo estupro retirada do perpetrador, as vítimas são responsabilizadas por não impedi-lo.

É triste ver autores que são capazes de criar um mundo cheio de magia, dragões, personagens poderosas e complexas em histórias épicas, mas incapazes de imaginar um mundo onde as mulheres são respeitadas, em vez de usar estupro como fator de manutenção de status quo.

3. Só por que tem “medieval” no meio não quer dizer que tudo se resume a brutalidade

Foram os italianos durante os anos 14 mil e o florescimento do Renascimento na Itália quem pintaram a ideia de que a Idade Média era um período sombrio da história. Eles usaram o nome Idade Média para descrever o longo período entre a antiguidade dourada que terminou com a queda de Roma por volta do ano 500 e seu próprio Renascimento (que literalmente significa renascimento). Hoje, ainda estamos contando as mesmas histórias que eles contaram sobre um período sombrio de mil anos. Parte dessa imagem sombria da Idade Média é a ideia de que ela estava cheia de abusos sexuais.

Mas historiadores afirmam que “se olharmos para a Escandinávia, não há evidências de que o estupro tenha sido mais comum na Idade Média do que nos dois séculos que se seguiram, os anos 1500 e 1600” – quem diz isso é Fredrik Charpentier Ljungqvist, historiador da Universidade de Estocolmo que realizou dois estudos separados sobre estupro durante a Idade Média. Hans Jacob Orning, especialista em Idade Média pela Universidade de Oslo, ressalta que os pesquisadores teriam encontrado muito mais evidências de estupro na extensa literatura que temos da Idade Média, se fosse comum naquela época. “A cultura dos vikings e da Idade Média era uma cultura de honra”, disse ele. “As mulheres eram parte integrante dessa cultura. Estuprar uma mulher não seria apenas um ataque contra ela, mas também contra a comunidade ao seu redor”.

Na verdade, os estupradores estavam sujeitos à punição mais estrita possível sob a lei da época. Estupradores eram criminosos procurados.

“Se você tivesse estuprado uma mulher, qualquer um poderia matá-lo sem correr o risco de ser punido”, diz Orning.

Imagine só…

Para Paul B. Sturvenant, historiador e pesquisador acadêmico, “Descrever a Idade Média como sangrenta e brutal serve a um propósito em nossas memórias coletivas”.

Estamos condicionados a nos ver como participantes de uma era pós-moderna supostamente iluminada. As narrativas estruturais de nossa época promovem a ideia de progresso – que é tão óbvia em nossa tecnologia quanto em nossos ideais sociais. As mulheres conquistaram o direito ao voto há cem anos, o movimento pelos direitos civis está completando 50 anos, o movimento pelos direitos dos homossexuais alcançou sucessos a um ritmo que confunde até mesmo os juízes da Suprema Corte. Nossos direitos estão ficando mais certos – e nossos erros estão sendo empurrados para o passado.

Deixe-me ser claro: não estou dizendo que o estupro não aconteceu na Idade Média. O que estou dizendo é que tem sido uma das grandes constantes horríveis em nossa sociedade ao longo de todas as épocas, e que, de muitas maneiras, não estamos tão longe de nossos antepassados medievais em nossa percepção disso. Uma das questões que decorre disso não é se o estupro ocorreu, mas quão comum era, quão aceitável era visto e se uma pessoa hipotética medieval assistindo Game of Thrones reagiria da mesma maneira que nós. A história de Sansa era normal? Toda noiva na Idade Média esperava que ela fosse condenada a uma vida de estupro pelo marido? Ou seria esta a exceção à regra?

Muito a se pensar, certo? Certo. Espero com uma ansiedade ruim o lançamento de House of the Dragon. E espero também estar errada sobre ela. Espero muito, mas não me surpreenderia se estivesse certa.


REFERÊNCIAS:

Bård Amundsen. “Was rape common in the Middle Ages?” Science Norway, 2017.

Chris Winkle. “Six Rape Tropes and How to Replace Them”. Mythcreants, 2019.

Libby Torres. “House of the Dragon’ will have less sex than ‘Game of Thrones,’ according to the showrunners”. Insider, 2022.

Paul B. Stuvenant. “Was Sexual Abuse Normal in the Middle Ages?”. The Public Medievalist, 2015.

Sweta Pal.  Can We Stop Using Rape As A Plot Device? Women’s Web, 2016.


LEIA TAMBÉM:

+ Os perigos de permitir que a “fantasia medieval” seja racista e sexista por “razões históricas”

+ Um “olhar feminino” é capaz de tornar a violência sexual em filmes menos repugnante?

+ As mulheres medievais que se manifestaram contra abusos sexuais [texto em inglês]

Compartilhe: