Precisão histórica não é desculpa!

ATENÇÃO: O post pode conter spoilers sobre as séries de GoT e Outlander.

Enquanto Game of Thrones recebeu uma enxurrada de críticas por causa da oitava e última temporada – com diversas acusações de machismo e escrita preguiçosa com relação à Dany e outras personagens – uma questão maior vem à tona. A forma como permitimos que as séries nos entreguem roteiros racistas e machistas escondidos por trás do véu da “precisão histórica”, mesmo quando falamos de séries de fantasia.

Sempre que surge a discussão sobre a forma como as mulheres são apresentadas em séries de fantasia, especialmente aquelas que acontecem em um passado fictício (ou em uma versão alterada do nosso passado), várias desculpas acabam sendo aceitas.

“Mulheres não tinham tantos direitos no passado” não é uma justificativa válida para submeter mulheres a violência sexual, utilizar tropos machistas ou para colocá-las sempre em uma posição passiva. Mesmo se você tiver como base a história europeia, há muitos exemplos de rainhas regentes que reinaram sem homens, de consortes que conseguiram consolidar seu próprio poder, mesmo em um sistema machista. A história é recheada de mulheres revolucionárias, em todos os estratos sociais, mas raramente elas acabam recebendo o devido destaque.

Imagem: Sunderland BID

A forma casual como a violência sexual é representada sempre surge com a justificativa da “brutalidade” do passado, quando estupro é uma parte da nossa realidade atual e muitas das mulheres ainda não conseguem receber a justiça.

Outlander é um excelente exemplo desse problema, pois em praticamente todas as temporadas a série utiliza o estupro como uma ferramenta de roteiro para “expor a vulnerabilidade” de certos personagens. E toda vez a série se esconde por trás da “história” como desculpa para fazer o que quer de qualquer jeito. Mesmo quando é claro que se trata de um roteiro preguiçoso e uma forma fácil de construir empatia com alguns personagens (ou antipatia para com outros).

Imagem: Starz

Vamos comentar por alto a cena da imagem acima (horrenda, inclusive, que ainda hoje me causa repulsa e me revira o estômago): Outlander gastou mais de 5 minutos – que sinceramente pareciam infindáveis – de puro pornô de tortura, explicitamente, para demonstrar o quanto Jamie sofreu em seu abuso. E a cena era completamente gratuita. Não existe necessidade, a fins de causar empatia, de uma cena assim para que os telespectadores entendam que o estupro é horrível e traumático. A série poderia simplesmente ter utilizado um flashforward e todos saberiam que ele tinha sido abusado – até porque antes e depois do abuso Jamie foi violentado de outras formas também. As mulheres, principalmente, entenderiam a dor. Todos entenderiam.

Como escritores em qualquer meio de mídia, nós não podemos utilizar a história como uma muleta para sustentar as nossas inclinações mais básicas. A história é uma base excelente para criarmos contos épicos. Olhando livros como As Crônicas de Gelo e Fogo, vocês podem ver com facilidade a inspiração por eventos históricos, mas George R. R. Martin também quis brincar com as imagens e personagens típicos que estamos acostumados a torcer nas histórias de fantasia. O machismo que existia não foi ignorado, e existem consequências na mentalidade das mulheres que cresceram naquela sociedade.

Pessoas de etnias que não a europeia são constantemente deixadas de lado no gênero de fantasia, especialmente se a história se passa em um cenário medieval, porque existe uma ideia equivocada de que as pessoas de outras etnias eram completamente desconhecidas para a sociedade branca daquela época. Ainda que para isso, seja necessário ignorar a existência de comércio.

Naquela época, algo muito interessante denominado de “A Rota da Seda” – que existia desde aproximadamente 114 a.C. até por volta de 1450 d.C. – conectava o leste e o sudeste da Ásia ao leste da África, seguindo então em direção ao sul da Europa. Ainda que você seja obsessivo apenas com a história ocidental, é inegável que existe uma história incrivelmente rica das civilizações não-europeias.

As histórias podem ser muito mais interessantes quando se lida com o conhecimento que temos hoje do mundo do que quando se tenta imaginar um mundo por uma mente racista e machista.

E antes que digam que “ah, então não pode fazer a história como era realmente no passado” e etc:

ISSO NÃO QUER DIZER QUE VOCÊ NÃO POSSA LIDAR COM QUESTÕES COMO MACHISMO, RACISMO E ESCRAVIDÃO NO PASSADO, MAS É IMPORTANTE QUE VOCÊ TENHA ALGO A DIZER SOBRE ISSO.

Outlander constantemente tenta apresentar senhores de escravos “complexos”, e tenta se situar dentro daquele período para tornar a história mais “complexa”. Mas ainda assim, por que os criadores de uma série neste século precisam agir como se não tivéssemos registros acadêmicos e históricos que demonstram que não existe algo como um “escravista do bem”? Soa até insano em voz alta. Se as pessoas escravistas tivessem o mínimo de decência humana e empatia com raças diversas das próprias, elas não só LIBERTARIAM os escravos como lutariam pelo fim do regime escravista. Ser “bondoso” enquanto você mantém uma pessoa em cativeiro NÃO é algo a se congratular. É realmente insano ter que afirmar isso em pleno século 21. A série precisa parar e refletir o quão afundada no complexo de salvador branco ela está.

Por que existe esse comprometimento tão grande com a “precisão histórica” quando falamos sobre violência contra minorias ou sexual, mas ao mesmo tempo não podemos julgar o quão cruéis são as realidades dos lugares que estão sendo escritos?

Isso é um problema porque, constantemente, os fãs das séries entram na defensiva quanto à fantasia. Eles agem como se apontar esses problemas fosse uma tentativa de forçar uma agenda, quando na verdade estamos apenas apontando que os escritores podem fazer muito mais em seus trabalhos do que um “mais do mesmo”. A desculpa de que certos períodos “não são para qualquer um” não faz sentido, especialmente quando temos diversos sites como a Medieval POC, que são dedicados a demonstrar a presença de pessoas de diferentes etnias na própria arte europeia.

Imagem: Medieval POC

Essas ideias são limitadas, e o pior é que criam essa crença absurda de que o mundo era desse jeito, e essa crença acaba sendo compartilhada mesmo por essas minorias excluídas.

Peguemos o exemplo de Game of Thrones, que propositalmente afastou os personagens de outras etnias da história, depois convertendo um personagem branco em negro (depois matando o personagem, que ainda está vivo nos livros). As pessoas dizem coisas do tipo “e o que você deveria esperar?”. Eu deveria esperar que uma vez que estas séries estão sendo produzidas hoje, que o material não fosse tão branco, já que o próprio público-alvo é uma audiência internacional.

Existem diversas histórias de fantasia não-brancas que mereciam ser mais conhecidas. Nós sempre fomos capazes de criar tudo que queríamos quando tivemos que fazer, mas isso não significa que as séries deveriam passar sem críticas por conta de sua brutalidade sexista e escrita racista.

Afinal, se você deixar isso acontecer, você acaba tendo coisas como… Essa oitava temporada de Game of Thrones. ¯\_(ツ)_/¯

Dito isso, talvez vocês devessem tentar assistir Harlots, Killjoys e outras séries de ficção científica que realmente parecem se preocupar um pouco com personagens femininas, LGBT e pessoas das mais diversas etnias.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

Leia mais: Por que precisão histórica é uma desculpa ruim para o estupro desenfreado nas séries de fantasia?

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