A série teve diversas adaptações problemáticas de personagens femininas.

Sejam muito bem-vindos a segunda parte do nosso desabafo sobre as diferenças entre as personagens de “Game of Thrones” e as suas contrapartes nos livros. Na primeira parte, você leu sobre Arya, Sansa e Catelyn Stark, o foco agora serão as personagens Cersei, Dany e Shae – e talvez, no caso das duas primeiras, a diferença seja apenas de gosto pessoal. Shae por sua vez, é um caso mais complicado. Enquanto Dany e Cersei possuem boas características nas duas versões, não deixa de ser interessante perceber as alterações feitas para a série. Shae por sua vez é a prova de que é possível realmente estragar uma personagem.

O TEXTO A SEGUIR CONTÉM SPOILERS.

Cersei Lannister

cersei-lannister-wine-e1533704369620

Lena Headey deveria ter ganhado um Emmy por “Game of Thrones”, e continuo na torcida que isso aconteça até o final da série. Apesar de seu desempenho como Cersei ter sido ótimo, a forma como Cersei é adaptada para a série sempre foi muito mais “mole” do que nos livros, o que pode até soar estranho, já que ela é uma baita vilã, mas é verdade. Nas primeiras temporadas, algumas das coisas terríveis que ela fez foram transferidas para Joffrey, além do fato da série ter feito ela realmente se preocupar com o quão maluco Joffrey era.

A Cersei de Game of Thrones é aquela que solta monólogos tristes para criar empatia em Cat sobre seus filhos mortos, enquanto a Cersei do livro alegremente abortou todos os filhos de Robert por nojo e ódio do homem que a estuprou durante todo o casamento. Game of Thrones cria cenas em que Cersei e Robert riem juntos, comentando como seu casamento manteve o reino unido, quando nos livros ela é a responsável por sua morte e envenenamento.

Apesar de Cersei nos livros ser a responsável pelo assassinato de todos os bastardos de Robert e as surras a trabalhadoras sexuais (Alayaya nos livros, Ros na série) e endossar o comportamento de Joffrey, na série ele é responsabilizado por ambos, como forma de torná-lo mais malvado aos olhos do público. Cersei, por sua vez, acaba sendo representada como “ciente” do comportamento ruim dele, mas incapaz de fazer algo que possa destruir suas memórias como um “doce garotinho”.

Essas mudanças foram para melhor? Honestamente isso depende da sua preferência por uma Cersei mais complexa ou mais extrema.
Alguns elementos da escrita da personagem na série podem até ser considerados melhores que os do livro, já que a personagem decepciona bastante os leitores em “O Festim dos Corvos”. Durante boa parte da história, você acha que Cersei é uma pessoa inteligente, capaz, e então descobre que ela vem falhando feio, e isso é algo difícil de esquecer. Vamos lá, ela queimou a Torre da Mão com fogo vivo só porque Tywin morreu lá. Isso nos dá uma visão da paranoia de Cersei que a torna tão tediosa como personagem, mas que depois de algum tempo, você até começa a achar engraçado.

Além disso, uma das maiores diferenças é que a série acha que Cersei ama Jaime, de alguma forma pelo menos, quando na verdade Cersei apenas “amou” romanticamente uma pessoa: Rhaegar Targaryen. Cacete, ela até fez um desenho dos dois sentados juntos em um dragão e teve de mentir pra Jaime quando ele ficou com ciúmes. Ela anseia poder. Porém, talvez a característica mais interessante da personagem, em qualquer uma das versões, é que ela é um fantástico exemplo de misoginia internalizada. Essa passagem no ponto de vista de Jaime, sobre sua irmã, resume bem a ideia:

Sua irmã gostava de se imaginar como Lorde Tywin com tetas, mas ela estava errada. O seu pai era inflexível e implacável como uma geleira, enquanto Cersei era como fogo vivo, especialmente quando frustrada. Ela ficou bobinha como uma donzela quando achou que Stannis havia abandonado Pedra do Dragão, certa de que ele havia desistido da luta e velejado para o exílio. Quando a notícia veio do norte que ele havia reaparecido na muralha, sua fúria foi assustadora. A ela não falta inteligência, mas ela não tem razão nem paciência.

Cersei quer ser uma governante por sua própria lei – ela quer ser rainha, não rainha regente – e ela quer ser a verdadeira herdeira de seu pai, não ficar a sombra do irmão por ele ser homem. Ela é a mais velha e quer ser todas as coisas que Jaime e Tyrion não foram para Tywin. Porém, Tywin é um babaca sexista que não vê nenhum valor em sua filha além de sua vagina. Especialmente na série, Tywin é representado como dolorosamente conservador, lembrando a Cersei sobre seu dever de “reproduzir” para a Casa Lannister. Cersei, como resultado, não ressente os homens; ela ressente as mulheres. Ela não quer empoderar outras mulheres, quer se empoderar para poder abusar dos outros. Por isso, ela se senta ao lado de homens poderosos e violenta qualquer mulher que possa ameaçá-la: Sansa, Margaery e Dany.

A personagem de “Game of Thrones” é uma versão fascinante como personagem, mas tão esvaziada de qualquer característica redentora que você não consegue sequer torcer para ela. Só sobrou uma ambição cega. A Cersei dos livros não é tão “fodona” quanto a da série, que se vinga dos Martells com veneno. Essa Cersei você consegue aproveitar.

Daenerys ‘Dany’ Targaryen

Emilia-Clarke_Dany_GOT

Dany, como personagem, é sempre algo a ser debatido. Ela é uma boa governante? Ela é uma egomaníaca? Ela é a princesa prometida ou será uma nova versão do Rei Louco? Uma das coisas sobre a personagem da Dany na série é que suas mudanças foram pequenas, mas somadas fazem diferença, começando por seu estupro por Khal Drogo na série.

Não vamos fingir que o relacionamento entre Drogo e Dany nos livros é “mais saudável”, porque, de qualquer forma, não é um casamento consensual e Dany tem apenas quatorze anos quando é forçada a se casar com um cara adulto. Seja como for que Dany se sinta a respeito de Drogo, temos de aceitar e respeitar. Mas através dos livros, Dany passa por diversos conflitos sobre o que fazer em seguida. Ela é muito nova, sem experiência, e normalmente sexualizada pelos homens em sua vida, que dizem querer ajudá-la.
Dany e Tyrion são similares na “responsabilidade” pela morte de suas mães em seu nascimento, e tem de lidar com a ira de seus irmãos mais velhos por isso. Enquanto Viserys é representado como cruel e perverso na série, uma das coisas que podemos lembrar dos primeiros livros é que ele não apenas retirava a roupa de Dany, mas torcia seus mamilos como uma ameaça caso ela o decepcionasse.

Ela tinha treze anos de idade, e ser vendida em um casamento político deveria iniciar o reinado de Viserys, mas na verdade começa a sua história. Durante o primeiro livro, nós vemos Dany crescer por dentro e, apesar de ser bem vendida com Emilia Clarke como Dany, a série teve de retirar muitos elementos visuais, substituindo-os por cenas mais óbvias e bombásticas como Dany saindo nua do meio do fogo, o que é endêmico nas mudanças da linha de história de Dany.

Para a pergunta “ela é uma boa governante?”, em nenhum dos dois cenários ela é uma líder perfeita, e desde o início seus maiores defeitos têm sido a empatia, ausência de conhecimento cultural e um monte de conselheiros merda. Dany tem bom coração, intenções nobres e, apesar de seus dragões, é normalmente a única mulher que pode comandar o poder naqueles espaços. Ela é super azarada da porra – mais nos livros do que na série, por causa de sua idade – e o maior desserviço que a série pode fazer é afastar suas emoções.
Dany é solitária, isolada, e de alguma forma aprendeu algo sobre amor com vários caras horrorosos em sua vida. Um dos momentos que mais fala sobre Dany acontece no capítulo 23 de “A Tormenta de Espadas”, quando ela pega sua criada, Irri, como amante, mas se sente culpada por isso, uma vez que não quer que Irri seja sua escrava sexual. Comparando isso com o relacionamento sexual entre Cersei e Taena de Myr, em que ela é apenas um brinquedo de Cersei e gosta disso. A diferença é grande.

Durante sua jornada, Dany está sempre com medo de não ser boa o bastante, ou sábia o suficiente para reinar, constantemente se comparando com os governantes que ela conheceu: Drogo e Viserys, dois brutos. Dany não quer ser como eles. Ela quer ser boa e ela quer inspirar real lealdade, mas não se sente pronta para governar. Ela percebe isso em “A Tormenta de Espadas”, quando o conselho que havia instalado em Astapor é morto. Ela decide ficar em Meereen por um senso de responsabilidade, mas também porque ela precisa saber quem ela é como governante, antes de querer tomar os Sete Reinos.

Em “A Dança dos Dragões”, as coisas começam a ficar realmente… Soltas na linha de história de Dany, muito porque Martin não terminou de contar a história. Então a série decidiu que o conflito de Dany seria “ela é a rainha louca ou não?”… E por enquanto a resposta é não.

Dany, apesar de todos seus defeitos em ambas as séries, ao menos não é sanguinária. Ela até pode querer vingança as vezes, assim como todo mundo, mas possui uma consciência muito incômoda. Ainda que ela queira matar todos os Filhos da Harpia, ela não aceita matar os reféns. Mesmo quando Xaro Xhoan Daxos (que não morre nos livros) vem e oferece seus treze navios caso ela parta imediatamente para Westeros, ela percebe que todos os homens que havia libertado ficariam para trás em Meereen ou seriam mortos ou escravizados novamente.

Por não ser capaz de levar a todos para Westeros com apenas treze navios, Daenerys rejeita a oferta e Xaro declara guerra contra Meereen. Seja por bem ou por mal, Dany se sente responsável pelas pessoas e não quer causar dor intencionalmente. Ela aceita até se casar com Hizdahr zo Lorag por causa de seu povo, uma vez que ele afirma ser capaz de parar os assassinatos.

A série quer assim explorar muito mais escuridão dentro da personagem do que realmente há. Ela é inocente, não cruel, e goste ou não dela, chega a incomodar como a série quer torná-la uma vilã por utilizar dragões na guerra. Ainda que eles sejam sua principal arma e ela não os utilize para matar civis, como faz Cersei. Ninguém questiona o quão má ela pode ser mais do que ela mesma, e retirar sua autonomia para torná-la incompetente e sangrenta é apenas uma desculpa para que Tyrion possa soltar um mansplaining pra cima dela, ensinando-a como agir.

Shae

Sibel-Kekilli-and-Esmé-Bianco-in-Game-of-Thrones-2011

Tudo que envolve Shae é endêmico sobre o que acontece quando você quer criar personagens femininas “empoderadas” em uma adaptação sem, porém, mudar o final de sua história – e ao mesmo tempo resolve embranquecer os seus relacionamentos com outros personagens. Quando Shae é introduzida na série, ela é misteriosa, sarcástica mas doce, e com um verdadeiro amor por Tyrion e Sansa Stark. Ela era a garota legal de Westeros naquele momento, e apesar de seguir na onda, minhas suspeitas acerca dessa reescrita positiva da personagem é que tudo acabaria errado caso a narrativa seguisse a história original de Shae. E foi exatamente isso que aconteceu.

Nos livros, Shae é uma jovem prostituta que foi abusada sexualmente por seu pai, e que acaba topando com Tyrion e Bronn em seu caminho para Porto Real. Tyrion, nos três primeiros livros, se apaixona por ela e faz joguinhos para convencê-la que sua posição de afeto está sob ataque, porque é esse o nível de insegurança do personagem com as mulheres.

Há muita coisa sobre Shae que acaba esbarrando em Tyrion e as mudanças causadas por ela nele (o que fica para a próxima), mas para simplificar, eu posso dizer que ele não é um personagem em preto e branco. Ele é alguém brilhante, mas inseguro. Ele é marginalizado por seu nanismo, mas devido a sua riqueza e sexo, ele possui privilégios e usa isso com as mulheres. Há uma amarga necessidade de sexo que sobrepuja Tyrion por vezes, e parte de seus joguinhos com Shae é uma tentativa de mantê-la em seu lugar, mas também sem afastá-la.

Diferentemente da série, a Shae do livro não dá a mínima para Tyrion. Ela é uma adolescente e trabalhadora sexual, que acabou de fugir de uma vida abusiva. Ela apenas está tentando sobreviver. Seu relacionamento com Sansa é mínimo. Ela certamente não a protegeria ou diria que morreria por ela. Ela é uma serva de homens nobres, que a veem como descartável. Tyrion não pode protegê-la de Tywin, e ao final do dia, Tyrion a colocou em perigo ao levá-la para Porto Real, mesmo sabendo que sua família poderia feri-la. Nos livros, há duas mulheres negras das Ilhas de Verão: Chataya e sua filha Alayaya. Chataya é dona de um bordel em Porto Real, e Alayaya finge ser a prostituta que Tyrion estaria visitando quando na verdade ele visita Shae. Como resultado disso, quando Tyrion está se recuperando da batalha de Água Negra, Alayaya é sequestrada por Cersei e açoitada antes de ser enviada nua e sangrando para caminhar da Fortaleza Vermelha até a Rua da Seda. Oberyn posteriormente descreve Alayaya como sendo “requintada, apesar das listras nas costas”.

É por isso que quando Cersei oferece a ela um cavaleiro para se casar, ela aceita. Porque o poder de Tyrion não é estável. Ele não pode protegê-la de sua família. Tyrion quer controlar Shae e traí-lo não é apenas um ataque pessoal, mas uma perda de controle sobre outra mulher.

É possível entender o apelo de querer tornar a trágica história de Shae e Tyrion em uma história de amor. Porém, isso não apenas fere Shae. Assim que Sansa e Tyrion se casam, Tyrion começa a tratá-la de forma estranha, e aquele jeito apoiador dela acaba se tornando vingativo. Seu ato de traição não era mais apenas elemento de sobrevivência. Era sobre se vingar de duas pessoas que ela amava, mas que a traíram. Como isso torna Shae uma personagem melhor, especialmente com as mudanças de contexto dela dormindo com Tywin no final?

Nos livros, isso é apenas outra forma de mostrar como o corpo de Shae é passado de mão em mão, ressaltando a hipocrisia de Tywin. Na série, é apenas a traição do amor de Tyrion.


Texto traduzido e adaptado do The Mary Sue.

Compartilhe: