Será que você sabe mesmo como escrever uma personagem feminina?

Rebeca Puig
Rebeca Puig

Recentemente a roteirista Rebeca Puig, do Collant Sem Decote, e a nossa garota geek, Alice Monstrinho (Rebel Hound) ministraram o workshop  Quebrando estereótipos: Aprenda a criar personagens para games na Campus Party Brasil 9. Como o workshop não foi transmitido via streaming acabei perdendo, mas corri atrás do prejuízo através dessa entrevista com a Rebeca para saber mais como escrever personagens femininas. As dicas dela servem para qualquer área independente se você quer criar uma personagem feminina para game, quadrinho, mangá, cinema, RPG ou livro. Se você tem dificuldade para criar personagens femininas, ou simplesmente se interessa pelo assunto, dá uma conferida na entrevista 🙂

GG: Quais são as suas experiências como roteirista?

RP: Eu sou formada em Roteiro para televisão e cinema pela Vancouver Film School, onde eu também estudei Roteiro para Games. Venho trabalhando com desenvolvimento de séries para televisão com uma produtora paulista e o meu primeiro longa-metragem está em pré-produção, uma comédia de ação sobre o cenário de desenvolvimento e de jornalismo de games no Brasil.

Mirror's Edge 2
Faith (Mirror’s Edge 2)

GG: O que é necessário para escrever sobre personagens femininas e que dicas você pode dar?

RP: O que se deve manter em mente quando se escreve uma personagem feminina é que mulheres são seres humanos tão complexos quanto homens. É comum que o escritor caia na figura idealizada da mulher, esquecendo que mulheres tem medos, anseios, força, problemas que vão além do vestuário ou de relacionamentos. Se o escritor for homem, a dica é conversar com as mulheres que estão à volta dele. Criar um esboço do personagem e discuti-lo com essas mulheres, porque na maioria das vezes, mesmo que inconscientemente, o homem tende a escrever personagens femininas como ele acha que mulheres são, e isso acaba resultando em personagens rasos, desinteressantes e estereotipados. Se a sua personagem é uma lutadora, faça pesquisa, veja os movimentos corporais dela, as roupas que elas usam, quais são as dificuldades que elas passam no esporte e como isso as atinge num nível pessoal. O importante é lembrar que a qualidade de um personagem anda de mãos dadas com o quão complexo você consegue construí-la. Então se a personagem é uma pirata, antes de cair pro sexy, procure saber sobre piratas mulheres, a história delas, vestimentas. Pense em como ser pirata, um ambiente dominado por homens, quais eram os desafios para as mulheres piratas e, a partir disso, procure definir qual a história da sua personagem. Ela nasceu num navio pirata? Ela era uma princesa que foge para ser pirata? Ela era uma mãe que foge em busca de liberdade? Uma plebeia pobre que não teve outra opção na vida? Existem muitas possibilidades, o importante é escutar mulheres, estudar e ficar longe dos estereótipos, ou desconstruí-los.

Ellie (The Last of Us)
Ellie (The Last of Us)

GG: Qual a importância da diversidade de personagens femininas?

RP: Mulheres são uma parcela de mercado que é constantemente esquecida pela cultura pop. Nós lemos quadrinhos, jogamos video games, RPG e assistimos filmes há tanto tempo quanto os homens, mas o mercado parece ou se esquecer disso ou fazer questão de nos alienar. Há uma mudança acontecendo, ela é bastante visível nos quadrinhos principalmente, mas de um ponto de vista mercadológico, diversidade significa alcançar um público maior. Do ponto de vista social, colocar mais mulheres como personagens centrais, personagens mais complexas e principalmente não estereotipadas, de diferentes etnias e com diferentes constituições físicas significa alcançar essa parcela maior do público não só no que tange o ganho financeiro, mas no que tange o envolvimento também. Quando você cria um jogo/filme/quadrinho você quer passa a sua mensagem, quer que o máximo de pessoas possíveis escute e se identifique com a sua história. E não é que mulheres não se identifiquem com personagens masculinos, nós fazemos isso há séculos, mas abordar essa outra parcela é aumentar o escopo do seu trabalho, é fazer com que mais fãs se reconheçam e queiram acompanhar a sua trajetória profissional. Eu vou jogar Uncharted 4, mas eu estou muito mais ansiosa por Mirror’s Edge 2. Se ver refletida numa personagem inteligente, divertida, fisicamente forte e ágil é incrível. Além disso tudo, para o desenvolvedor, é um desafio a mais. Muita gente diz que falar sobre diversidade é censurar os criadores, mas é exatamente o contrário. Por que manter a sua cartela de personagens fechada no modelo homem branco hetero cis quando você tem um milhão de outras possibilidades?

Lara Croft TR
Lara Croft (The Rise of Tomb Raider)

GG: Em sua opinião quais são as personagens femininas mais bem escritas nos games e por quê?

RP: Eu adoro a Faith, de Mirror’s Edge. O legal dela é que é fisicamente forte e ágil, é inteligente, o seu desenvolvimento de personagem é interessante e ela não é sexualizada em nenhum momento durante o jogo. Ela ainda é cercada por outras duas personagens femininas interessantes, seu objetivo é ajudar a irmã e isso é muito difícil de ver. É sobre sonoridade, sobre traição, sobre perda e sobre superação. Além de tudo isso a jogabilidade de Mirror’s Edge ainda é incrível. Gosto bastante também da Lara Croft dos últimos dois jogos, além de ser uma personagem com um desenvolvimento muito interessante durante o jogo, ela deixou pra trás a hiper-sexualização que fazia dela quase um objeto. Além delas a Ellie, de The Last of Us, é um ótimo exemplo de personagem feminina que foge do padrão, ela é adolescente, é lésbica e tem um desenvolvimento emocional muito legal ao longo do jogo e das DLCs.

Quiet (Metal Gear Solid V: The Phantom Pain)
Quiet (Metal Gear Solid V: The Phantom Pain)

GG: E quais as personagens femininas que você acha menos bem escritas nos games e o que você mudaria nelas?

RP: O grande problema das personagens femininas nos games é a hiper-sexualização. Os primeiros Tomb Raiders tinham esse problema, apesar da Lara até ser uma personagem interessante, os movimentos de câmera, o figurino e as poses dela tornavam a experiência do jogo um tanto alienante. Jogos de lutas são quase uma vitrine para esse tipo de problema. Apesar de todas as personagens, masculinas e femininas, serem estereótipos com pouco ou nenhum desenvolvimento, as personagens femininas são as que mais sofrem com isso. Laura, Cami e Mika são o ápice da sexualização desnecessária e sem sentido. Se você conversar com qualquer lutadora de qualquer tipo de luta elas vão te dizer que com aquele tipo de figurino lutar é impraticável. Outra personagem recente também é a Quiet, do Metal Gear. A personagem é muda e está praticamente pelada o jogo inteiro, o “sonho molhado” do adolescente machista, ela é o ápice de como alguns criadores de jogos se esforçam para diminuir uma personagem a sexo em prol de uma audiência masculina. Além de ser uma escolha pra lá de pouco criativa, já que personagens hiper-sexulizadas são o status quo dos video games, ainda reduz o público do jogo a um bando de homens incapazes de ir além dos pensamentos pubescestes. A Quiet precisava apenas de roupas que fossem práticas e um comportamento que fizesse sentido dentro do seu papel de guerreira dentro de uma guerra, ao invés de cenas em que ela fica empinando a bunda no helicóptero. Não é difícil, mas é preciso querer ir além do já batido clichê.

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