Bater palmas e rir loucamente.

ALERTA DE SPOILER PARA A SEASON FINALE DA 4ª TEMPORADA DE THE HANDMAID’S TALE E PARA GATILHOS SOBRE VIOLÊNCIA SEXUAL.

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Eu acredito no abolicionismo penal. Condeno linchamentos veementemente. Acredito que aquela ladainha bolsonarista sobre “castração química” é, como tudo que vem do bolsonarismo, ignorante, boçal e imbecil. Estupro nunca foi sobre sexo, mas sobre poder. Mulheres já foram estupradas com objetos, e existe, além de tudo, uma ligação psicológica em sentir prazer fazendo mulher sofrer. Também acredito que punições mais severas, leis mais rígidas ou penas de morte para estupradores não servem para nada, por duas razões: o Estado jamais deveria ter tanto poder a ponto de ser capaz de decidir se alguém merece viver ou morrer, e segundo que nenhuma dessas coisas impedem estupros de continuar acontecendo. Na verdade, elas só agravariam outro problema: a desigualdade racial e as injustiças judiciais contra pessoas negras, maioria carcerária no país.

O problema é outro e nós sabemos disso: machismo, patriarcalismo, cultura de estupro. Enquanto essas coisas continuarem existindo, mulheres continuarão sendo estupradas – e culpadas por seus estupros, desmentidas, desprezadas pela lei e pelo senso comum de uma sociedade forjada nesse sistema misógino.

Durante meu tempo assistindo The Handmaid’s Tale, critiquei muito, por exemplo, os fãs que desejavam que Serena Joy se tornasse uma aia. Nas várias vezes que tive contato com o fandom, fiz minha defesa ao direito humano dela de ser julgada devidamente pelos seus crimes e também fiz um longo artigo aqui no site explorando o ponto de vista da série que mostra que os verdadeiros vilões do Conto da Aia são e sempre serão os homens. Discuti sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt… Fui firme nos meus posicionamentos.

Todos os episódios me lembravam de várias citações célebres de Simone de Beauvoir, especialmente esta:

Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.

Para mim, Margareth Atwood fez a obra exatamente embasada nessa afirmação.

Apesar de tudo isso, só senti uma coisa quando assisti o último episódio da 4ª temporada da série.

Prazer.

Ver o maior antagonista da personagem principal ser caçado como um cachorro e morto na porrada me deixou em êxtase. Tem algo visceral e catártico em ver uma boa execução de um plano de vingança que durou quatro longas temporadas, quase 50 episódios, finalmente se concretizar.

Continuo abolicionista, feminista, a favor dos direitos humanos e contra linchamentos. Acho sinceramente que eu só seria hipócrita se não admitisse que senti felicidade em ver alguma forma de justiça acontecendo numa série em que mulheres são constantemente mitigadas, humilhadas e abusadas sem nunca receberem auxílio, misericórdia ou compaixão – nem mesmo de pessoas que deveriam ser consideradas aliadas. Então, não vou mentir: é revigorante ver, numa série fictícia, mulheres com posição de poder o bastante para conseguir passar por cima de tudo que impede o nosso gênero de obter justiça.

June é um símbolo dessa utopia. Ela sobreviveu a eventos extremamente improváveis, conseguiu escapar do mundo que a aprisionava e se reestabeleceu numa sociedade que a via como uma heroína. Mesmo assim, sua dor e seus sacrifícios não valiam de nada para o governo. Como ela mesma disse: “O que Fred está dando a eles é mais valioso do que o que ele tirou de mim”. E então, quando June decide que esperar pela justiça por meios legais não vai funcionar, ela barganha, insiste, então pressiona e convence o representante do Estado Canadense a tomar uma decisão utilitarista – da mesma forma que ela teve que fazer quando estava sob a “supervisão” do Comandante Lawrence – a vida de um homem em troca da vida de vinte e duas mulheres. Vinte e duas mulheres. Vinte e duas. Só assim a vida de um homem valeu menos.

As mensagens principais da série aqui continuam as mesmas desde o princípio: as mulheres sempre serão consideradas inferiores, estejam em sociedades “democráticas” ou não – e as únicas pessoas que June pode confiar são: ela mesma e outras mulheres.

Por isso, ter uma season finale como essa foi algo libertador. São poucas as chances que mulheres têm de ganhar histórias com foco tão exclusivo no que sofremos, na fragilidade dos nossos direitos – e então, receber um desenvolvimento que permita uma justiça kármica, um retorno da violência sofrida, voltada para a figura que mais representava o sistema opressor de Gilead. E The Handmaid’s Tale entregou isso com furor. Em cada cena tensa, em cada expressão facial, na redação, na atuação, na trilha sonora, filmagem, fotografia, tudo.

Passar de aterrorizada com as múltiplas possibilidades desastrosas que a season finale provocava para exultante com uma pequena porção de revide no sistema de Gilead – nem que seja tirar dos Comandantes o direito de decidir como Fred iria morrer – gera um respiro de alívio. E em séries como essa, esses respiros são tão raros e tão breves que vão me desculpar se estou aproveitando cada segundo da oportunidade.

Imagem: Hulu

June nunca foi santa. Gilead tocou nessa ferida da forma mais desumana possível. Mas não ser santa não é exatamente um defeito, somos seres humanos com nuances, não máquinas perfeitas. E o fato é que as últimas temporadas levaram June tão ao extremo que se ainda restava algo próximo de santidade em sua personalidade – como o ideal romântico da maternidade – ela fez a escolha que a faria continuar vivendo. “Uma boa mãe seria capaz de deixar isso para trás” – disse ela. E a expressão que se seguiu dizia “mas eu não sou uma boa mãe”.

Não somos boas mulheres, boas mães, boas feministas. Fazemos sempre o possível dentro do que a nossa realidade nos permite. Mas o que aconteceria se as condições que nos possibilitam ser assim fossem deterioradas? Se nós víssemos muito mais injustiça, sofrêssemos muito mais desrespeito, vivêssemos sob uma condição degradante por anos a fio? Uma reação explosiva assim é impossível, até que seja inevitável.

O próprio Comandante Lawrence afirmou algo semelhante anteriormente. Quando June questiona os motivos dele para ajudar Marthas a se organizarem e Aias a escaparem de Gilead, sua resposta é um soco no estômago: se as engenharias do sistema não tiverem focos de alívio da pressão, toda a máquina explode. Deixar que mulheres escapassem de Gilead era uma mera estratégia pra que as aias que permaneciam presas não se revoltassem, sonhando com a possibilidade da fuga.

Mas não era apenas o Comandante Lawrence que fazia uso dessa estratégia.

Imagem: Hulu
Imagem: Hulu

As Tias “aliviavam a pressão” da máquina permitindo que as aias participassem de execuções de estupradores – dentro do que eles acreditavam não ser a “Cerimônia”.

Levando isso em consideração e adicionando o fato de que os pedidos de desculpas de Fred não fizeram June se sentir melhor, eu compreendo os motivos que a levaram a abrir mão de parte da sua humanidade e finalmente se permitir vingar. Oportunidades não faltaram, especialmente quando ela estava grávida e armada – mas June sempre escolhia não sucumbir ao ódio.

O problema é que esse ódio só aumentou porque ela continuou sendo abusada e em sofrimento excruciante. Nesta temporada, June foi submetida a um nível de violência tão cruel – principalmente ver outras mulheres morrendo na sua frente ou por sua causa – que não é de se admirar que esse ódio tenha corrompido o resto de sanidade que lhe restava.

E quando ser resgatada no Canadá não surtiu o efeito que deveria porque praticamente ninguém parecia perceber o tamanho do trauma que ela estava passando e entender o tamanho da dor que ela estava carregando, ou mesmo porque Luke não foi o parceiro mais eficiente (apesar dele ter tentado ser compreensivo e paciente) – esse ódio a corroeu. E só quando ela o aceitou, seu coração pareceu se acalmar. “Eles podem ter Fred, o Redentor, eu sei o que ele é. E vou colocar ele na porra do muro”.

Tudo que era mundano tinha perdido valor. Ela chegou ao fim da linha. E depois dali, só tinha uma saída: colocar Fred no muro.

E ele acaba no muro, porque June sabe usar o poder que tem.

Foi um final genial. E genioso. De lavar a alma. Digno.

Ainda existem várias pontas soltas e outras vinganças que precisam vir. Mas essa foi terapêutica.

Esse final leva a várias interpretações. Algumas merecem ficar apenas como fantasias, pelo bem dos nossos réus primários. Mas eu escolho ficar com essa: você não é uma pessoa ruim por desejar que pessoas realmente ruins tenham o que merecem pelo mal que fazem.

Genocidas misóginos não merecem simpatia.

A reação do oprimido nunca será igual à violência do opressor.

Nós podemos estar tão furiosas quanto nos sentimos.

Blessed be the fight.

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