Parece óbvio, mas vivemos numa cultura que normaliza a culpabilização da mulher e precisamos conversar sobre isso.

The Handmaid’s Tale, a adaptação da Hulu do livro de Margaret Atwood, foi um ótimo exercício demonstrativo de como mulheres podem ser cruéis, tirânicas e abusivas. Que, por exemplo, por um ideal romantizado da maternidade, elas podem planejar regimes ditatoriais e manipular as pessoas em situações absurdas e desumanas pra conseguir o que querem, ignorando o sofrimento alheio desde que seus próprios desejos sejam realizados.

A série chocou muita gente porque ela é bem categórica nesse sentido: sua história é sobre relações femininas, sobre o sofrimento feminino e sobre como as mulheres podem estar envolvidas diretamente como infligidoras desse sofrimento. No entanto, apesar disso ser uma parte significativa da série (afinal é um dos maiores fatores de choque), a narrativa trabalha um ponto que muitos fãs falham em perceber. Não propositalmente, mas porque a série de fato é cheia de nuances e personagens complexos e bastantes complicados de se entender. E esse ponto é um detalhe que inclusive o diretor e a produção da série têm trabalhado vagarosamente e com muito cuidado: mesmo que mulheres sejam cruéis e tenham influência para exercer crueldade, não são elas as opressoras de Gilead, uma vez que não são elas que detém o poder. Reproduzir a opressão não faz de você opressor, especialmente se você é parte de uma minoria.

Opressão não é algo pontual. É algo sistêmico.

O machismo e a misoginia, principais fatores para que um sistema ditatorial teocrático (literalmente patriarcalista) como Gilead passe a existir, são históricos e estruturantes. Esse é o ‘x’ da questão. O patriarcado de Gilead não é muito distante do patriarcado do nosso cotidiano: ele é basicamente um arranjo sistêmico que engloba a totalidade das interações entre os seres humanos – um sistema em que homens adultos mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. É uma estrutura sistêmica, um imaginário social global, e não pode ser confundida com situações “incidentais”. É algo que influencia o consciente individual e coletivo.

Levando isso em consideração, as mulheres “santas” de Gilead podem reproduzir a opressão e o machismo, mas não ser categorizadas como opressoras porque isso depende de um sistema estrutural.

Atwood inclusive trabalha de uma forma muito interessante no livro como o patriarcalismo desencadeou em algo sombrio e fascista como Gilead. A série, até o presente momento, deixou um detalhe ainda mais claro: nas castas de Gilead, mesmo mulheres em posições hierárquicas altas não têm poder. Mesmo as Esposas de castas mais altas não têm liberdade (de ir e vir, de expressão, de se trajar, de estudar e de ler – nem mesmo o livro mais sagrado de Gilead). Tudo que elas fazem é passível a julgamento e qualquer deslize pode levá-las a castigos físicos (amputação, por exemplo) ou, no pior dos casos, a uma viagem sem volta para as Colônias – da mesma forma que as Aias e demais “pecadoras” são enviadas. Elas não recebem benefícios ou privilégios por estarem em castas mais elevadas – só as mais ricas (ou as casadas com Comandantes de relevância política) desfrutam de privilégios que pessoas da alta classe desfrutariam de qualquer forma.

As mulheres de Gilead que vivem em conformidade com o sistema vivem sob a ilusão de que são livres, mas são tão oprimidas quanto quaisquer outras. A diferença é que as mulheres que não se conformam ou se encaixam no sistema são diariamente torturadas e estupradas por isso. Algumas escravas, outras escravas sexuais.

Pra entender melhor essa lógica, deixarei aqui alguns questionamentos a serem feitos sobre os poderes das mulheres no sistema da série. Para isso, primeiramente observem o gráfico abaixo, que demonstra de forma simplificada a hierarquia de Gilead:

Agora, se perguntem o seguinte: o poder que as mulheres da parte alta da hierarquia têm é natural ou concedido? Quem define e atribui esse poder a elas? Esse poder é amplo ou limitado? Esse poder é estável ou pode ser retirado a qualquer momento? Elas podem outorgar poder a outras mulheres ou apenas agir dentro do ordenado?

Pensando nisso, fiz esse post comparativo dos quatro personagens considerados como os maiores vilões da série até agora: Serena Joy (Yvonne Strahovski) em contraste com Fred Waterford (Joseph Fiennes) e Tia Lidya (Ann Dowd) em contraste com o Comandante Lawrence (Bradley Whitford).

Pretendo demonstrar com essas comparações como a diferença de poder altera a perspectiva do personagem e sua influência no sistema como um todo.

SERENA JOY X FRED WATERFORD

Serena Joy é a personificação do antifeminismo conservador, que demonstrou de uma forma bem clara como alguém do sexo feminino pode ser capaz de ideias cheias de requintes de crueldade para com outras pessoas de seu gênero. A série vai e volta numa ambivalência “bipolar” da personagem, o que comumente causa muito ódio e vez ou outra algumas sensações estranhas de empatia por ela – normalmente superadas por sensações de ódio ainda mais fortes. Não há muito o que se discutir à respeito: ela é, indubitavelmente, uma pessoa má que sempre acaba fazendo as piores escolhas possíveis. É difícil simpatizar, mesmo que a série demonstre que ela também sofre. Ela expressa raiva por ter um papel limitado, mas nunca demonstrou remorso – uma emoção que até o Comandante Waterford e a Tia Lydia externaram. No entanto, nas palavras do diretor da série: “Serena é um personagem complicado, mas ela – em sua mente – não tem motivos maléficos”.

Então, eis um primeiro porém. Por ser a idealizadora do planejamento reprodutivo de Gilead, o que resultou nos Centros Vermelhos, Serena é muito comumente lida como a maior vilã da série. Quando isso acontece, sua competência é superestimada: Serena não foi quem fundou Gilead. Ela não é o maior nome por trás da criação de Gilead, o Comandante Lawrence é (falamos mais sobre isso a seguir). Sim, ela teve um papel primordial pra que Gilead desses seus primeiros passos, até porque nenhum sistema opressor se sobrepõe a um governo já estabelecido sem considerável apoio de boa parte da população – e as mulheres são a esmagadora maioria da população norte-americana. Mas a função de Serena foi aos poucos reduzida a conseguir convencer outras mulheres sobre seus papeis na nova sociedade que deveria surgir – basicamente sendo garota propaganda de Gilead. Obviamente, uma propaganda enganosa. Nem mesmo Serena esperava que assim que os homens de Gilead obtivessem o poder, ele seria absoluto. E definitivamente não esperava que eles tornassem todas as mulheres – ela inclusa – totalmente submissas e sem voz, de uma forma muito mais generalizada que a submissão religiosa que ela pregava que as mulheres deveriam ter. O episódio 6 da primeira temporada, denominado “A Women’s Place”, exemplifica isso magistralmente: após ter participação ativa no movimento de criação de Gilead com Fred (inclusive na parte legislativa), Serena é completamente excluída do planejamento do governo e é obrigada a aceitar um novo papel ultra limitado na sociedade que ela mesma ajudou a criar. O episódio termina com uma cópia de seu livro, também chamado “A Women’s Place”, sendo jogada no lixo. Livro que a própria autora no futuro seria proibida de ler.

Mas vamos ao básico desse novo papel que Serena recebeu: a principal responsabilidade de Esposas em Gilead é o de administradora de uma casa. Elas dão ordens para Marthas e contribuem na “Cerimônia” das Aias. No patriarcado, o papel principal de uma mulher é de ser esposa e mãe. Em Gilead, Esposas anseiam ardentemente pelo papel da maternidade, mas boa parte delas é infértil (boa parte é acusada de ser, quando na verdade seus maridos são os responsáveis pela infertilidade na relação: o declínio da taxa mundial de natalidade na história é sempre atribuído às mulheres, apesar de sugestões científicas de que a questão poderia estar relacionada com os homens). Graças à esse anseio, Esposas em geral parecem compartilhar uma característica de Serena: a obsessão doentia por filhos. Elas acreditam piamente que são as mães de filhos paridos ou roubados de Aias, mesmo que não haja nenhuma biologia envolvida diretamente com elas. Em uma sociedade comum, filhos nascidos dessa forma seriam considerados bastardos, mas dentro de uma sociedade com sérios riscos de extinção por infertilidade, qualquer criança ganha legitimidade na família. No primeiro episódio da terceira temporada, denominado “Night”, June percebe isso quando ela confronta a Esposa na casa do Comandante Mackenzie. Elas “confraternizam”, trocando comentários comoventes sobre Hannah, numa pequena violação das regras de Gilead. As falas emotivas escondem ressentimento e terminam em farpas – uma sente raiva pela ligação natural que a outra tem com a menina e a outra sente raiva por ter sido privada de momentos do crescimento da criança. Todos assistindo o episódio sabem quem é a mãe ali, mas ele gera um conflito moral: Gilead faz as Esposas pensarem que mãe é quem cuida, de uma forma distorcida e desumana, pois ao mesmo tempo tenta convencer Aias que seus filhos estão melhores com outras mulheres, já que elas são “menos dignas”. Mas um ponto aqui é indiscutível: todas as Esposas parecem nutrir real carinho pelas crianças, todas têm motivos minimamente compreensíveis para os crimes que cometem. Não deixa de ser um crime, não deixa de ser abominável, no entanto é de certa forma compreensível que uma mulher infértil ou sem filhos, numa sociedade retrógrada como Gilead, deseje tão ardentemente ter uma criança, pois só sendo mãe a mulher bíblica é validada – as mulheres de Gilead só são completas e felizes se são mães. As Esposas fecham seus olhos para a dor de outras mulheres, mas acreditam firmemente que estão fazendo o melhor para as crianças sob seus cuidados. E aqui incide novamente a ilusão que Gilead cria em mulheres em alta hierarquia – e essa ilusão é muito próxima à ilusão das mulheres antifeministas da nossa realidade: muitas são iludidas a pensar que serão recompensadas de alguma forma se forem “melhores” ou reprimirem outras mulheres “menores”.

Serena também é assim. Ela é obviamente menos influenciável que as demais em diversos sentidos, mas isso não faz dela menos obcecada com conseguir uma criança – e quando ela consegue uma, sua obsessão se torna manter essa criança dentro de Gilead, perto dela. E isso acontece desta forma porque ela faz parte das mulheres que foram ensinadas e condicionadas dentro do patriarcalismo religioso, que impõe esse papel a uma mulher. Muitas das ações ambíguas de Serena podem ser contextualizadas nesse mesmo fim: ela existe entre o conflito complexo de sua fé e de suas ambições. 

Um adendo, para que entendam que este texto não é uma justificativa para as personagens abusivas ou suas crueldades em The Handmaid’s Tale: compreender não é justificar e tampouco perdoar.

Vamos incluir nessa discussão o Fred. A primeira coisa que sinto a necessidade de comentar é a respeito do ódio discrepante que vejo pela Serena em comparação com ele. Os dois são quase igualmente desprezíveis e ambos cometeram atos muitos similares de absurda maldade. Dignas de um vilão.

Porém, a diferença entre os dois é crucial: Serena é quem segura, mas é Fred quem estupra. E esse ciclo se repete em todas as atitudes de ambos. Um é cruel eventualmente, outro é cruel de forma sistêmica.

Serena criou as leis de fertilização compulsória, mas quem as apresentou e validou foi Fred. Serena tem um temperamento perigoso e ideias de uma genialidade maléfica, mas o fato é que ela é uma manipuladora que tem muito pouco para manipular além de seu ambiente imediato. As únicas pessoas que ela tem capacidade de prejudicar são ela própria, sua Martha e sua Aia, em teoria. Fred, enquanto Comandante, tem poder de ir muito além disso. Em Gilead, as mulheres podem ser cruéis, mas quem mantém o sistema de opressão funcionando são os homens.

No entanto, em uma grande parte dos fãs da série, o ódio pela Serena parece muito mais latente – e a verdade é que é muito mais fácil odiar e vilanizar uma mulher, mesmo que a série também mostre homens fazendo muito pior que ela por debaixo dos panos ou que deixe claro que as motivações dela eram, em grande parte, culpa do sistema patriarcal em que ela foi educada. Em todas as vezes que ela tenta fazer algo na direção da redenção – seja de forma autêntica ou não – ela é colocada de volta no lugar e iludida novamente. Por exemplo, no final da segunda temporada, Serena tenta recuperar alguns dos direitos que Gilead removeu das mulheres, incluindo o direito das mulheres de ler e escrever. Seu dedo é parcialmente amputado como punição. Quando Serena percebe que nem ela e sua “filha” estão protegidas das restrições impostas às mulheres em Gilead, ela opta por revidar. Quando vê que é muito difícil se separar da criança que sempre quis, ela é levada pelas promessas doces de Fred que pode tê-la de volta. Por isso, precisamos falar um pouco do Fred.

“Os homens temem que as mulheres riam deles. As mulheres temem que os homens as matem. ”

Lembram desse momento? June usa uma metáfora ali, mas ela reflete um ponto importantíssimo em The Handmaid’s Tale: nenhum inferno tem fúria maior do que aquele com um homem que se sente impotente. Principal antagonista masculino das primeiras temporadas, o Comandante Waterford é um exemplo perfeito para essa frase. Fred estupra June continuamente na “Cerimônia” de concepção mensal – mas ele tenta passar a imagem de um cara “legal”, com promessas (como a de ver sua filha de novo) e joguinhos que deixam a protagonista com um pouco de esperança, que tentam tornar June complacente. Ele e os outros homens de Gilead tomaram todas as formas de poder das Esposas de alto escalão, e fazem o mesmo ou bem parecido com todas as mulheres dentro do sistema.

Apesar do estupro e das enganações que Waterford e outros homens em Gilead usam para manter o controle sobre as mulheres, talvez a arma mais poderosa seja colocar as mulheres umas contra as outras, uma tática usada repetidas vezes.

Waterford faz isso várias vezes em sua própria casa com a relação entre June e Serena. Por exemplo, ele nunca se sentiu tão ameaçado como quando vê a caixa de música presenteada por Serena a June no episódio oito da segunda temporada, “A Women’s Work”. Ele percebe, naquele momento, que Serena e June estão começando a formar um relacionamento e, no auge de sua fragilidade masculina, ele literalmente espanca Serena em uma demonstração de domínio, o que também serviu para humilhá-la na frente de June, a quem ele obriga ficar para assistir. Ele é mais ameaçado pela amizade potencial de mulheres do que quando Serena demonstra abertamente para ele sua impotência, e isso quer dizer algo.

Não são eles a cometerem a maior parte das violências físicas, mas isso não quer dizer que essa é a única forma de violência possível. Nem toda violência é só espancamento. Existe violência moral, patrimonial, emocional, psicológica e o gaslighting (abuso mental que faz a mulher acreditar que está ficando louca) – que são tipos de violência que homens não reconhecem e banalizam.

Fred representa a casta de oficiais mais influentes dentro da hierarquia mais alta de Gilead. Em toda a série, ele aparece sempre em companhia de outro Comandante, conversando de forma suspeita sobre seus planos e sempre tentando “diluir” suas intenções em expressões mais suaves. Talvez por isso seja mais fácil odiar as mulheres da série: as atitudes grotescas que homens cometem nesta série já são, de certo modo, esperadas de um homem com aquele tipo de mentalidade. E ainda que saibamos que elas são grotescas, vemos todas as atitudes dos homens legitimadas dentro do sistema.

Os homens são quem coordenam e controlam as maldades, mas mantém a postura de “cavalheiros”. Não vemos homens dando choques em mulheres, torturando mulheres, só vimos estupros transformados em uma cena romantizada da bíblia. O trabalho sujo geralmente fica com as mulheres. Porque assim fica mais difícil ver que são eles os culpados. Não sujar suas mãos facilita que suas consciências continuem tranquilas.

Vamos relembrar do que eles são de fato responsáveis. Primeiro, quando os EUA sofreram o golpe de estado na “Cruzada” de Gilead, os homens foram responsáveis pela morte de incontáveis civis. Eles fizeram a guerra acontecer. Eles seguraram as armas. Segundo, toda vez que um “unmen” ou uma “unwomen” são pegos, são os Guardiões e Comandantes os responsáveis por torturá-los até a morte e dependurá-los nos muros. A morte da Éden foi um ótimo exemplo da desumanidade desse tipo de atitude. Terceiro e não menos importante, vamos repetir: são os homens que obtém o controle de tudo no sistema. São eles que, como mencionado anteriormente, mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. As mulheres são meros instrumentos. Se existe tortura, é porque homens legalizaram o ato no sistema. Se mulheres são estupradas e punidas por qualquer ato de revolta, é porque homens assim o decidiram.

Há uma lição repetida que podemos tirar dessas cenas difíceis de assistir de The Handmaid’s Tale: as mulheres precisam ser as maiores aliadas entre si. Ajudaria se as mulheres deixassem de ficar aterrorizadas com a temida palavra ‘f’: feminista.

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