Em estúdios e grandes premiações, diretoras continuam sub-representadas

Em seus noventa e cinco anos de história, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, responsável pela premiação do Oscar, concedeu a estatueta de Melhor Direção a apenas três mulheres.

Três mulheres. 

Em quase um século de existência.

Número de indicações ao Oscar para Melhor Diretor de 1929 até 2020

Até o ano de 2020, apenas cinco mulheres haviam sido indicadas na categoria, e somente uma delas levou a estatueta. Imagem: ON Women

Em 2023, diretoras representavam apenas 14% daqueles que trabalharam nos 100 filmes de maior bilheteria dos EUA. Embora sua presença tenha crescido nas últimas décadas, o aumento tem sido tão lento que observadores mais atentos podem se perguntar onde estão as cineastas mulheres. 

Comparação de percentuais de diretoras mulheres trabalhando nos 100 e 250 filmes da maior bilheteria dos EUA de 2015 a 2023

Gráfico: The Celluloid Ceiling: Employment of Behind-the-Scenes Women on Top Grossing U.S. Films in 2023

A desigualdade de gênero no cinema se deu por um processo histórico e é perpetuado ainda nos dias de hoje. É só observar a ausência de mulheres diretoras nas principais premiações do meio, e na relutância, embora velada, por parte de estúdios e produtores de entregar projetos que não possuam temas ditos “femininos” para diretoras. Também é fácil notar como os filmes épicos, caracterizados por suas narrativas grandiosas, personagens heroicos e muitas vezes têm como pano de fundo eventos relevantes para a história mundial (além de serem tão queridos pela Academia), são em grande parte dirigidos por homens. Quer conferir? Dá uma olhada nesta lista da revista Bula que traz 10 dos melhores filmes épicos do século.

Kathryn Bigelow (centro), dirigindo Guerra ao Terror (2008). O épico foi o primeiro filme dirigido por uma mulher a ganhar a categoria de Melhor Filme no Oscar.

É como se a indústria temesse colocar suas ideias milionárias nas mãos de uma mulher. Como se, ao inclui-las em um sistema amplamente dominado pelo sexo oposto, isso significasse correr um risco. E esse “risco” precisa valer a pena 100% das vezes, porque para uma diretora, errar uma única vez é fatal. 

Enquanto homens podem se dar ao luxo de fazer filmes medíocres e ainda assim encontrar oportunidades que os permitam aprimorar e caminhar rumo ao sucesso, mulheres cineastas não têm a mesma chance. Além disso, basta uma mulher dirigir um filme considerado ruim ou que não atinja os números esperados de bilheteria para que tal fato respingue em todas as profissionais da área, como se esse erro representasse todas as mulheres, corroborando a ideia de que a direção cinematográfica está, de fato, mais segura nas mãos dos homens.

Nia DaCosta, diretora de As Marvels, nos bastidores do longa. O filme, protagonizado por três super-heroínas e marcado como o primeiro da Marvel dirigido por uma mulher negra, já enfrentava ataques misóginos do público antes mesmo de seu lançamento. Imagem: Entertainment Weekly

Claudia Raschke, diretora de fotografia indicada cinco vezes ao Oscar pelo seu trabalho em documentários, ilustra esse ponto em uma entrevista para a Canon: “Você não pode cometer erros, pois está representando as mulheres na indústria. Você precisa ter cuidado para dar um bom exemplo. Porque se você falhar, isso repercute e potencialmente fecha a porta atrás de você.

Mas nem sempre foi assim. Nos primórdios do cinema, eram as mulheres as protagonistas do meio.

Pioneirismo das Mulheres na Direção

Em 1896, logo quando o cinema surgiu, a francesa Alice Guy-Blaché (1873-1968) se tornou a primeira diretora mulher pelo seu trabalho em A Fada dos Repolhos, que mais tarde foi considerado um dos primeiros filmes narrativos do cinema. 

Alice Guy-Blaché, primeira diretora de cinema da história. Imagem: reprodução.

Ainda durante a época do cinema mudo, Lois Weber (1879-1939) foi a diretora mais bem paga do período, se distinguindo não só por dirigir, mas também escrever, produzir e estrelar O Mercador de Veneza, de 1914.

Lois Weber em 1925. Imagem: Reprodução.

Outras diversas mulheres marcaram o período, mas quando a produção cinematográfica se mostrou rentável, atraindo investidores e pessoas interessadas naquele novo formato, mulheres pouco a pouco foram substituídas por homens nos cargos técnicos principais. Conforme o cinema foi se tornando mais comercial, a produção passou a ser segmentada e as funções de marketing, figurino e maquiagem, por exemplo, eram consideradas mais adequadas às mulheres.

Durante a segunda metade do século XX, diretoras e roteiristas estavam presentes na indústria, embora em menor número. A soviética Yuliya Solntseva fez história em 1961 ao se tornar a primeira mulher a ganhar o Palma de Ouro na categoria de  Melhor Direção no Festival de Cinema de Cannes, pelo seu filme A Epopéia dos Anos de Fogo (Chronicle of Flaming Years, no original. O filme é um drama de guerra que aborda a vida de civis e soldados durante os horrores da Segunda Guerra Mundial.

A Epopéia dos Anos de Fogo (1961), de Yuliya Solntseva. Imagem: Reprodução.

Já em 1977, Lina Wertmüller (1928-2021) foi a primeira mulher indicada à estatueta de Melhor Direção no Oscar, pelo seu filme Pasqualino Sete Belezas. Infelizmente, ela não levou o prêmio. Apenas 34 anos depois, em 2010, Kathryn Bigelow se tornou a primeira mulher a vencer a categoria, na 82ª cerimônia do Oscar, por Guerra ao Terror (The Hurt Locker, no original), um filme que acompanha uma equipe antibombas enviada ao Iraque. O longa ainda ganhou a categoria de Melhor Filme, sendo a primeira vez que uma produção dirigida por uma mulher levava o prêmio.

Kathryn Bigelow, Oscar 2010, durante seu discurso pelo prêmio de Melhor Dieção. Imagem: Getty Images

A Desigualdade no Mercado de Trabalho

The Celluloid Ceiling é uma pesquisa conduzida pelo  Centro para o Estudo da Mulher na Televisão e no Cinema,  realizada há 26 anos e que analisa a representação de mulheres em diversos cargos da indústria cinematográfica. De acordo com o relatório mais recente, mulheres representavam 16% dos diretores nos 250 filmes de maior bilheteria dos Estados Unidos. O gráfico produzido para a pesquisa ilustra o aumento lento dessa porcentagem ao longo dos últimos anos em diversos cargos técnicos.

Comparação histórica dos percentuais de mulheres empregadas nos bastidores dos 250 filmes de maior bilheteria dos EUA, por cargo

Gráfico: The Celluloid Ceiling: Employment of Behind-the-Scenes Women on Top Grossing U.S. Films in 2023

É comum se perguntar se essa sub-representação se dá por um número menor de mulheres nas faculdades de cinema em relação aos homens. No entanto, esse está longe de ser o problema central. Uma pesquisa realizada pela European Women’s Audiovisual Network (EWA)  indica que a presença feminina é de 44% em escolas de cinema da Europa, contudo, apenas 24% das diretoras conseguem se inserir na indústria, em comparação com os 76% dos diretores homens. Apesar da quase paridade em números na sala de aula, no mercado de trabalho as mulheres não recebem tantas oportunidades quanto seus colegas do sexo oposto.

Participação de diretoras mulheres formadas em escolas de cinema (2006-2013)

Gráfico: EWA Report Database – Survey

Diferença da participação de diretoras de cinema em escolas de cinema e na indústria cinematográfica em comparação aos homens:

Imagem: EPRS | European Parliamentary Research Service. Fonte: European Women’s Audiovisual Network, Where are the Women Directors in European films?, 2015.

Voltando ao relatório da The Celluloid Ceiling, levando em conta os 250 filmes de maior bilheteria de 2023, produções em que há pelo menos uma diretora, mais mulheres são contratadas para trabalhos atrás das câmeras, como roteiristas (61%) e editoras (35%). Já em filmes com homens na direção, esse número cai para 9% no cargo de roteiristas e 18% no de editoras. A partir desses dados, observamos que mulheres são mais propensas a dar oportunidades para outras mulheres, mas com uma presença tão reduzida em um mercado dominado por homens, não é de se admirar que entre 1998 e 2023, o percentual de mulheres trabalhando nos bastidores tenha crescido tão pouco.

Invisibilidade nas Premiações

Apesar de ser fato de que há mais homens do que mulheres dirigindo filmes (por todas as razões listadas), ainda sim é possível ver um descarado favoritismo dos membros da Academia e de outros comitês de grandes premiações para com diretores homens.

Diretores indicados ao Oscar de Melhor Direção em 2022. Não houve mulheres indicadas ao prêmio naquele ano. Imagem: Getty Images.

No Globo de Ouro, uma das premiações mais importantes de Hollywood que antecede o Oscar e já acontece há oitenta anos, apenas três mulheres levaram o prêmio de melhor direção: Barbra Streisand, Chloé Zhao e Jane Campion.

No BAFTA, o principal prêmio britânico de artes visuais, Kathryn Bigelow, Zhao e Campion foram as únicas vencedoras, assim como no Critics’ Choice Movie Award, por seus filmes Guerra ao Terror (2008), Nomadland (2020) e Ataque dos Cães (2021), respectivamente. Zhao é a única mulher de cor a levar todos esse prêmios.

Chloe Zhao após ganhar o Oscar de Melhor Direção em 2021 por Nomadland. Imagem: Getty Images.

No Oscar, a disparidade de gênero na categoria fica ainda mais visível. Já contando com a indicação de Justine Triet em 2024, a Academia conta com apenas oito mulheres indicadas à categoria de Melhor Direção. Jane Campion é a única destas a ser indicada mais de uma vez, em 1993 e 2022, enquanto diretores como William Wyler, Steven Spielberg e Martin Scorsese estão sempre presentes na cerimônia, acumulando 12, 9 e 9 indicações cada. Somando apenas as vitórias desses três diretores tão valorizados pela Academia, temos o dobro de estatuetas que todas as diretoras da história da premiação já ganharam.

Justine Triet, diretora de Anatomia de uma queda e única mulher indicada ao Oscar 2024 na categoria de Melhor Direção. Imagem: Marc Piasecki/FilmMagic

Uma vez que Hollywood esnoba tanto cineastas femininas, esquecendo (ou fingindo esquecer) que as mulheres estavam fazendo filmes desde os primórdios do cinema e pavimentaram o caminho para a construção dessa indústria bilionária, é preciso conhecer e valorizar tantas premiações e projetos ao redor do mundo que de fato valorizam essas diretoras. Como o Cairo International Women’s Film Festival no Egito, a China Women’s Film Festival em Hong Kong e o Seoul International Women’s Film Festival na Coreia do Sul, por exemplo. 

Seoul International Women’s Film Festival. Imagem: Asian Film Festivals

A mudança ocorre aos poucos, isso é fato. É preciso debater sobre a presença de mulheres no cinema, é preciso exigir mudança, mais diversidade e mais reconhecimento. Ainda não é o suficiente. Não enquanto não tivermos mais do que apenas uma única indicação em anos esparsos de mulheres nas categorias de direção, não enquanto mesmo entre essas poucas mulheres, não existirem pessoas de cor. 

A operadora de câmeras de diversas séries de TV, Laela Kilbourn disse, também na entrevista para Canon:

“Quando as mulheres não são reconhecidas e quando o trabalho delas não é valorizado da mesma forma [nas premiações], isso importa – tanto para as mulheres que estão se destacando e não veem modelos a seguir, quanto para a sociedade em geral, reafirmando a ideia de que as mulheres não podem desempenhar esse trabalho, ou a ideia de que podem fazê-lo, mas não podem ser as melhores.”

Laela Kilbourn gravando o documentário Swim Team. Imagem: MovieMaker

Laela ainda diz que a sub-representação feminina é um problema social, que ocorre em vários setores e não apenas na indústria cinematográfica. Não é possível mudar uma parte do mundo sem que haja mudanças significativas no corpo social. E nós sabemos que não é fácil provocar mudanças na sociedade.

Mas isso não significa que não vamos continuar lutando.

Se você quer ler mais sobre esse assunto, confira nosso artigo sobre cinco diretoras incríveis que você precisa conhecer! Também temos uma lista com 15 filmes dirigidos por mulheres que precisam entrar na sua lista de assistidos <3

Fontes:

Farout Magazine

Indie Wire

Movie Web

The Guardian

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