Você já assistiu algum filme de “terror feminista”?

Quando o remake de Natal Sangrento (2019) foi lançado, uma das formas que o filme foi divulgado foi como um “filme de terror feminista”. Ao lado do maldito rótulo de “terror de alto nível”, existe uma tendência na forma como as pessoas falam sobre filmes de terror que ignora completamente a complicada história do gênero, e também reduz a linguagem acadêmica e criativa das histórias de terror a algo que supostamente só existe depois do lançamento de Corra! (2017), apesar de isso já existir há muito tempo.

Em 1986, Constance Penley escreveu que “os filmes de ficção científica como gênero – ao lado de seus irmãos gêmeos do mal, os filmes de terror – hoje são mais hiperbolicamente preocupados do que nunca com a questão das diferenças”.

Nesse sentido, os filmes de terror sempre foram conectados com os relacionamentos entre grupos marginalizados e o terror. A principal diferença “de alto nível” é sobre quem é capaz de contar essas histórias, e sob qual lente essas histórias estão sendo experimentadas.

Assim como a autora Robin Wood – que tem sido tão influente na definição de termos pelos quais entendemos os filmes de terror – afirmou, “o verdadeiro assunto do gênero de terror é o esforço pelo reconhecimento de tudo que a nossa civilização reprime e oprime”.

Então vamos falar sobre feminismo e terror: o que isso quer dizer e como tem evoluído. As mulheres como vítimas em filmes de terror tem sido um tropo desde o surgimento do gênero. Uma donzela virgem sendo assombrada por uma criatura sombria. Mulheres e crianças são ótimas vítimas em filmes de terror gótico, por causa da ideia penetrante de que elas são mais vulneráveis.

Olhemos A Volta do Parafuso, de Henry James, em que temos uma protagonista inominada, que tenta salvar essas duas crianças inocentes e etéreas dos “fantasmas”. Desde que as histórias de terror gótico e de vampiros se tornaram parte do gênero “slasher”, nós podemos reconhecer o tropo da “Garota Final”, muitas vezes também chamado de “Última Garota”.

Algo que tem sido muito debatido é se esse tropo é ou não algo feminista, e eu acredito que nos debates sobre filmes feministas, existe tanto um excesso de simplificação quanto um completo desentendimento sobre o que significa ser feminista, e por consequência, sobre como deve ser um filme feminista.

O feminismo é um movimento político, e, portanto, salvo se a protagonista for uma personagem do tipo militante, é difícil colocar esse rótulo de maneira uniforme em qualquer obra.

O que estamos realmente questionando é algo como “Esse filme abusa de personagens femininas de forma voyeurista, ou está utilizando o terror para falar sobre uma espécie de tormento único, conectado à existência feminina?”. Eu acredito que esse seja um questionamento melhor.

Em muitos filmes no estilo Slasher, existem elementos de pânico sexual, em que jovens mulheres são punidas e mortas depois de fazerem sexo. Halloween (1978) tem um exemplo notório na cena em que Michael mata sua irmã mais nova logo após ela transar com seu namorado, e seu cadáver é deixado com os seios expostos. Essa cena expõe um enorme contraste com a nossa “Garota Final”, Laurie, que é a perfeita imagem da inocência de classe média, colocada para enfrentar um serial killer silencioso.

Em O Massacre da Serra Elétrica 2 (1987), temos uma cena em que a serra elétrica de Leatherface perde o torque. Enquanto Stretch está encolhida na sua frente, ele pressiona a serra contra suas coxas, deslizando-a até a sua virilha onde ele a mantém balançando, enquanto treme e se sacode, imitando um orgasmo.

Então é bem claro que essas histórias recorrem ao elemento do voyeur.

Além disso, personagens homossexuais e transsexuais são frequentemente marcados de forma explícita para serem mortos, como aponta a autora Carol J. Clover em seu artigo “Her Body, Himself: Gender in the Slasher Film” (O Corpo Dela, Ele mMsmo: Gênero nos Filmes Slasher, em tradução livre), publicado na obra “The Dread of Difference: Gender and the Horror Film” (O Medo da Diferença: Gênero e os Filmes de Terror, em tradução livre):

Matar aqueles que buscam ou se envolvem em situações sexuais não autorizadas remete a um imperativo genérico dos filmes slasher. É um imperativo que cruza as linhas de gênero, afetando tanto homens quanto mulheres. Os números não são iguais, e as cenas não são igualmente carregadas; mas permanece um fato que na maioria dos filmes slasher posteriores a 1978 (seguintes a Halloween), homens e garotos que vão atrás de ‘sexo errado’ também morrem. Essa não é a única forma que homens morrem; eles também morrem incidentalmente, como as garotas, quando entram no caminho do assassino […] Algumas garotas morrem pelos mesmos erros. Outras, porém, e sempre a principal, morrem – e roteiro após roteiro desenvolvem os motivos – por serem mulheres.

Mas isso quer dizer que não podemos nos sentir empoderadas pela jornada de Laurie ou mesmo encontrarmos feminismo nela e em outras personagens do mesmo tipo? Não. Mas empoderamento é uma conversa; pode ser pessoal, e o empoderamento de uma pessoa não cancela o ponto de vista de outra, ou os aspectos decididamente não feministas de uma obra.

Para mim, um dos primeiros filmes slasher que posso chamar de feminista é Natal Sangrento – o original. E o motivo por que afirmo isso é que, em termos de narrativa, a heroína Jess queria fazer um aborto, e isso não faz parte do enredo de terror. Ela é um pouco mais simpática por isso, e o filme mostra tanto que Jess é uma personagem com sexualidade quanto que ela possui controle sobre seu corpo. Isso, para mim, é feminista. Feminista por sua mensagem, contexto, e pelo fato de que apesar de haver um homem serial killer, ele não é o foco da história, como no caso de Freddy. Na verdade, o foco é nessas mulheres.

Pânico (1996) de Wes Craven, é um filme que embora não tão feminista quanto Natal Sangrento, é tão surreal que dá vontade de ver de novo. A experiência de Sidney, sendo vítima de gaslighting por seu ex-namorado abusivo, que acaba sendo um serial killer é algo tão… profundamente perturbador. Ele diz que ela é louca por achar que ele possa ser o assassino, e a condena por não querer transar com ele por conta do trauma – trauma este causado por ele próprio.

Em Sidney e sua sobrevivência, vemos alguém que realmente está lutando para superar o abuso sofrido. Então, cada parte de sua jornada é apenas mais um passo para nós, que podemos vê-la não se deixar transformar em uma pessoa sombria pelo que aconteceu. Clover explica, novamente:

A vasta maioria dos aterrorizantes contemporâneos, seja no molde machista ou não, apresentam clímax em que a mulher enfrenta os seus agressores – os errantes psicopatas sem senso de humor que habitam esses filmes. Elas comumente apresentam mais coragem e equilíbrio do que seus vergonhosos pares masculinos.

O feminismo de hoje é inclusivo. O padrão está sendo constantemente elevado, e o que podemos ver é a constante tentativa de se refazer filmes que eram imperfeitos, em vez de seguirmos em frente para explorar o que está sendo feito agora – especialmente quando falamos de mulheres em slasher.

Vale uma última citação de Clover:

Mas por que, se os espectadores conseguem identificar através das linhas de gênero, e se a raiz da experiência de terror é cega em relação a gênero, que os sexos nas telonas não são intercambiáveis? Por que não mais e melhores assassinas mulheres, e por que (sob a luz da masculinidade da maior parte do público) não temos tantos Pauls quanto Paulines? O fato de que os filmes de terror tão teimosamente generifica o assassino como homem e a principal vítima como mulher deveria sugerir que essa representação é parte do problema – que a sensação da insegurança corporal deriva não exclusivamente de conteúdo reprimido, como Freud insistia, mas também das representações corpóreas daquele conteúdo.

O futuro do terror feminista não consiste na recriação de filmes antigos com um pouco mais de melanina que os originais. Ele virá de um entendimento que o gênero tem uma enorme falta de personagens femininas assustadoras. Precisamos de mais Garota Infernal, e não de uma nova versão de Jovens Bruxas.

Se o terror supostamente deve se preocupar com “as questões de diferenças”, então como o atual “terror feminista” está de fato tentando falar pelas mulheres progressistas que amam o gênero? Ou essa é uma questão tão pequena, que só colocar a palavra “feminista” na frente do gênero já é muito mais do que deveria ser?

Durante as filmagens de Os Pássaros (1963), o diretor Alfred Hitchcock afirmou de maneira infame e grotesca “Eu sempre acreditei em seguir o conselho do dramaturgo Sardou. Ele disse, ‘torture as mulheres!’. O problema hoje é que não torturamos as mulheres o suficiente”.

Bom, acho que chegou a hora das mulheres serem as torturadoras.


Post traduzido e adaptado do TheMarySue.

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