A representação feminina deve ser justa em todos os gêneros do cinema!

** O texto a seguir contém spoilers do filme Midsommar – O Mal Não Espera a Noite **

A imagem de uma garota apavorada gritando enquanto corre aterrorizada de um monstro ou de algum outro tipo de criatura é praticamente uma marca registrada dos filmes de terror. E enquanto você lia a frase acima, várias cenas de filmes do gênero devem ter vindo a mente, de diversas gerações de obras, se você for um fã mais ávido. Mulheres sempre estiveram conectadas aos filmes de terror. A “Última Garota” é algo essencial para se completar a checklist de tropos dos filmes de terror.

Os papéis das mulheres continuam sendo a alma dos filmes de terror, mas esse tropo especificamente está sendo deixado de lado. Estamos trocando as vítimas gritando em nossas telas por guerreiras endurecidas pela batalha e anjos da vingança.

Historicamente, filmes de terror têm servido como ferramenta para medir as nossas ansiedades sociais. E é igualmente verdade que a cultura pop (de todos os tipos e meios) tem apresentado um interesse especial em reforçar os padrões de “decência”, especialmente com relação a mulheres. Filmes de criaturas, como “O Monstro da Lagoa Negra” (1954), e outros clássicos do terror como “Zumbi Branco” (1932) falam sobre medos antigos, ligados fundamentalmente ao racismo.

O “monstro” que caça as donzelas virgens dos anos 1930, 40 e 50, possuem origens tropicais e são “exóticos” e primitivos, refletindo atitudes horrivelmente racistas. No caso de Zumbi Branco, o uso de vudu cria uma conexão étnica muito explícita. Essas donzelas assustadas de outras épocas gritavam as ansiedades sociais enraizadas no racismo da época, e utilizavam o medo de que mulheres brancas se tornassem “vítimas” de homens negros.

Todos nós já vimos isso nos filmes. A primeira pessoa a ficar nua ou fazer sexo é a primeira a morrer. O vilão retalhador surgiu da incorporação do mal social ao papel de punir aqueles que ameaçam a moralidade, da caça aos adolescentes sexualmente ativos em “Halloween” (1978) até o jovem homossexual reprimido em “A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy” (1985).

A prevalência de mulheres no gênero como “donzelas apavoradas” e vítimas falam muito sobre a nossa preocupação social com as “virtudes femininas” e com o fardo da moralidade e decência ser desproporcional sobre as mulheres.

Porém, muito recentemente, isso tem mudado.

Mulheres continuam sendo o epicentro dos filmes de terror, mas não apenas como vítimas. As mulheres dos filmes atuais de terror são sobreviventes. O exemplo mais óbvio é o arco de Laurie Strode (interpretada por Jamie Lee Curtis) na franquia Halloween. A Laurie de 1978 é a típica “Última Garota”, sem por nem tirar. Já a Laurie do filme de 2018 é o produto desse trauma. Sua vida foi sacudida, ela foi punida por uma sociedade que não entendia pelo que ela tinha passado, e ela decidiu que lutaria contra isso, independente de como os outros imaginariam que ela havia enlouquecido.

Essa evolução de Laurie Strode é crucial na nova era das mulheres no terror. A próxima geração de “donzelas” é mais forte, empoderada e não apenas capaz de superar as expectativas colocadas sobre elas, mas de enfrentar de igual para igual o bicho-papão que as assombra.

Por vezes, essa mudança é representada por mulheres abraçando seu bicho-papão para encontrar uma versão empoderada de si mesmas. “A Bruxa” (2015) talvez seja o exemplo mais puro e direto acerca da dominação de gênero e controle rígido sobre a sexualidade feminina, apresentando a decisão de uma jovem de se rebelar contra sua família opressora ao se unir ao monstro que trouxe a desgraça a eles.

Filmes como “O Babadook” (2014) têm uma pegada mais sutil. O monstro que do título representa a doença mental e o luto de uma mãe em dificuldades. Em vez de defender seu ofensor, ela aprende a coabitar, e ao final, a lidar com ele. “Nós” (2019) de Jordan Peele leva esse conceito ainda mais longe, ao fazer com que sua protagonista confronte tanto seus demônios interiores quanto os males da sociedade enquanto também os incorpora. A dinâmica do mal em “Nós” solidifica essa noção de que a meta das donzelas contemporâneas é mais do que apenas fugir, mas se rebelar e enfrentar.

Em geral, as mulheres estão se tornando donas do gênero como um todo, e levando a discussão para novos e diferentes caminhos. Há uma ênfase em mulheres sendo responsáveis por suas próprias vinganças e reconhecendo os terrores únicos da experiência feminina.

Filmes como “Cam” (2018) e “Natal Sangrento” (2019) falam diretamente sobre vulnerabilidade sexual e os perigos únicos enfrentados por mulheres sexualmente empoderadas. As mulheres desses filmes são alvos porque não aceitam ser sufocadas como propriedades da sociedade. Essa distinção ganha um significado muito maior quando levamos em consideração como esses filmes foram recebidos pela crítica, especialmente por certos grupos demográficos se posicionando contra esses temas nas redes sociais.

O terror mede a temperatura da nossa cultura, encontra a infecção e leva a outro nível, como uma febre que tenta queimar aquele medo abertamente. O movimento #MeToo em Hollywood e uma narrativa cultural feminina maior sobre mulheres se levantando e falando sobre seus problemas é o que está sendo explorado.

Como sociedade, as mulheres do terror não estão mais ilustrando medos da sociedade “em defesa delas”, mas sim trazendo os medos particulares das mulheres para a luz, enquanto buscam um acerto de contas.

E talvez Midsommar (2019) seja um marco dessa nova onda de donzelas vingativas. No filme, a personagem de Florence Pugh está lutando sob o peso de um namorado que não consegue oferecer o apoio emocional de que ela tanto precisa. Enquanto ela sobrevive aos rituais bizarros do culto do filme, ela lentamente encontra essa sensação de comunidade nas mulheres ao seu redor.

No clímax do filme, ela finalmente é capaz de liberar tudo isso, gritando não de medo, mas por estar cansada de ser forçada a engolir tudo isso. Enquanto isso, seu namorado, o portador da masculinidade tóxica do filme, é o alvo do sacrifício. E a Rainha de Maio sorri.

Lançamentos próximos como “O Homem Invisível” e “Promising Young Woman” estão trazendo o tema de vingança e confronto para fora do subtexto, para a superfície de forma clara e direta. E de maneira ainda mais importante, eles firmam essas raízes no cenário mainstream. Essa é a nova donzela, e dessa vez, ela é a coisa que caça na noite.

Alguns podem achar difícil reconhecer o terror como o primeiro marco de progresso e revolução feminista no cinema. Mas o que todas podemos entender sobre filmes de terror é que eles falam sobre coisas importantes para nós, na nossa época. E é por isso que eles são tão populares. O terror é a voz dos sentimentos que guardamos no fundo das nossas entranhas.

E nesse momento, no cinema, as mulheres estão segurando os microfones, e gritando o mais alto que podem.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

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