Porque importa.

Nos últimos anos, não tem sido algo incomum encontrar diversas ferramentas e práticas de design com foco na acessibilidade em títulos que são lançados. Apenas em 2022, a indústria celebrou o fato de que God of War: Ragnarok possuía quase 70 opções de acessibilidade, as revolucionárias cutscenes com descrição de áudio de The Last of Us Part I e o fato de Forza Horizon 5 contar com intérpretes de linguagem de sinais, tanto em inglês estadunidense quanto britânico. A acessibilidade tem se tornado regra, e não apenas para estúdios AAA. Os desenvolvedores independentes também estão lutando para criar experiências não apenas interessantes, mas também acessíveis para todos os jogadores.

E enquanto algumas desenvolvedoras reclamam dos custos e tempo necessários para o desenvolvimento de jogos acessíveis, pequenas equipes têm provado que mesmo sem os recursos de grandes estúdios, a acessibilidade pode e deve um aspecto integral para todos os jogos.

A distribuidora e desenvolvedora Whitethorn Games é uma velha conhecida no tema, e tem trabalhado com outros estúdios em busca de ampliar a acessibilidade em seus jogos. Britt Dye, especialista em acessibilidade e usabilidade da empresa, entende as complexidades que envolvem fazer isso. Apesar de não contar com os recursos e fundos dos grandes estúdios, ela utiliza ferramentas e recursos que são disponibilizados gratuitamente para pequenas equipes e estúdios independentes. As orientações sobre o tema, fornecidas por sites como o The Game Acessibility Guidelines ou mesmo por empresas como a Microsoft (Xbox Acessibility Guidelines, no original), apresentações da Conferência de Acessibilidade em Jogos (GAC, ou Game Accessibility Conference, no original), e mesmo relatos de jogadores que são pessoas com deficiência, são ferramentas-chave para o desenvolvimento de jogos. E essas ferramentas, segundo a especialista, são profundamente utilizadas no processo de desenvolvimento:

Pelo lado da distribuidora, nós trabalhamos com vários desenvolvedores, que possuem equipes de tamanhos diferentes, bem como o conhecimento ou experiência com acessibilidade (diferente). Vários desses desenvolvedores estão trabalhando com acessibilidade desde a fase do design, mas a acessibilidade é multifacetada. Por vezes, sua experiência é com algumas barreiras específicas, mas falta experiência com outras. E isso quer dizer que tornar o jogo acessível nessas áreas (de pouca experiência) acaba sendo algo que surge mais tarde no desenvolvimento, normalmente após boa parte da base já ter sido desenvolvida, ou ainda mais tarde. Eu não sempre tenho a chance de trabalhar com os desenvolvedores desde o início, mas por sorte, nós trabalhamos com diversas desenvolvedoras que já estão pensando na acessibilidade desde o início, então é algo que eles querem incorporar.

A acessibilidade pode parecer desafiadora, mas apenas escutar os especialistas no campo e as experiências dos usuários permite que os jogadores com deficiência possam ter acesso a alguns dos melhores jogos do ano, e por consequência, torna a experiência melhor para todos. Em março de 2022, o desenvolvedor Andrew Shouldice lançou Tunic, um jogo sobre uma adorável raposinha tentando desvendar um grande mistério. Com mecânicas de exploração e puzzles similares aos primeiros jogos de The Legend of Zelda, combinadas a um combate desafiador no estilo soulslike, Tunic era um jogo difícil, especialmente para pessoas com deficiência. Mas em vez forçar os jogadores a superar barreiras potencialmente inacessíveis, Shoudice queria que todos pudessem jogar seu game.

É verdade que o combate desafiador é uma mecânica central de Tunic. Porém, incluir opções como o modo ‘infalível’ não ‘compromete a integridade’ do jogo ou nada do tipo. Bem no começo, eu pensei que seria desafiador incorporar esse tipo de configuração em um jogo que utiliza a dificuldade como forma de controlar o progresso do jogador, mas no final, foi uma decisão bem fácil e direta. A verdade é que as pessoas que gostam de ser desafiadas no combate apenas não irão ativar essa opção, e aqueles que não gostam do combate irão. No fim, a ideia de Tunic não é excluir jogadores por sua capacidade de apertar botões no momento certo. É sobre ser curioso e disposto a explorar um mundo que você não entende. Adicionar opções que permite a mais pessoas experimentar essa parte do jogo valeu absolutamente a pena.

A criação do modo “infalível” não diminuiu em nada a mecânica central do jogo: exploração. Jogadores são ativamente incentivados a explorar o desconhecido e retornar a áreas já exploradas com novos itens. Encontrar caminhos alternativos e investigar cada cantinho das regiões é o que torna Tunic tão interessante de se jogar. Apesar do sucesso do modo infalível, a ferramenta ainda precisa de ajustes, e isso prova que acessibilidade é um processo contínuo, que não acaba quando um jogo é lançado.

Alguns meses depois do lançamento, nós preparamos um servidor no Discord, para que o pessoal da imprensa pudesse colaborar nos puzzles antes do lançamento do jogo. Um dos reviewers chegou aos créditos, derrotando o chefe final no modo infalível. E não levou muito tempo para eles perceberem que perderam grande parte do jogo – você deve ser derrotado naquela luta para destravar o ato seguinte do jogo. Por causa disso, adicionamos um caso especial, em que mesmo no modo infalível você pode morrer naquela luta. Nosso pensamento foi que se alguém ligou aquela opção simplesmente por preferir os aspectos de puzzle do jogo, não fazia sentido penalizá-los negando acesso a alguns dos melhores desafios do final do jogo.

A opinião dos jogadores é crucial durante o desenvolvimento de ferramentas de acessibilidade e práticas de design inclusivo. Sem a colaboração de jogadores, os desenvolvedores podem ter dificuldades para ajustar opções, ou mesmo deixar passar erros e bugs como aquele que impedia que os jogadores progredissem na história de Tunic no modo infalível. Em Coromon, um RPG de controle de criaturas com puzzles, similar a série Golden Sun, testes públicos foram necessários, especialmente no desenvolvimento de opções de acessibilidade. Os CEOs da TRAGSoft, Marcel van der Made e Jochem Pouwels, debateram a importância de envolver diretamente pessoas com deficiência no desenvolvimento de jogos, independentemente do tamanho da equipe de desenvolvimento.

Sendo uma pequena equipe trabalhando em um jogo enorme, nós inicialmente focamos em liberar o jogo para que as pessoas testassem como uma demonstração. Nós percebemos que o feedback dos jogadores seria de grande valor, e uma forma eficiente de descobrir quais as dificuldades das pessoas utilizando as nossas mecânicas. Nós nunca nos arrependemos dessa decisão, porque isso permitiu que nós encontrássemos muito mais problemas de acessibilidade do que seríamos capazes de fazer por conta própria.

Os resultados dessa decisão são evidentes nas configurações e design de Coromon. Independentemente da plataforma de escolha, os jogadores podem ativar ferramentas que reduzem as luzes piscantes e escolher um dos modos de cores para daltonismo, melhorando a sua experiência. Mas além de entender as necessidades de jogadores com deficiências, os testes forneceram aos desenvolvedores diversas oportunidades para refinar o uso de ferramentas potencialmente complicadas.

A ferramenta de acessibilidade mais difícil para nós foi não forçar o jogador a utilizar um esquema de controles específico. Nós queríamos que o nosso jogo fosse jogável por toque na tela, teclado, mouse, controle ou uma combinação deles. Dessa forma, os jogadores sempre teriam uma maneira alternativa de jogar, caso tivessem dificuldades com um certo tipo de controle. E a razão pela qual isso é tão difícil, é porque todos os menus precisam ser utilizáveis e com a sensação de fluência em qualquer dos métodos de controle. Nós tivemos uma tonelada de iterações e brainstorms em cada uma das telas, para que todas fossem perfeitas.

Mesmo em estúdios independentes maiores, como a Rebellion Developments Limited, entender a importância do design acessível é um processo permanente. A designer sênior de acessibilidade, Cari Watterton, explica a necessidade de orientações e retorno da comunidade. Apesar de isso ser algo importante para estúdios em toda a indústria, eles também são elementos-chave para equipes que desenvolvem jogos em sua engine (plataforma) própria.

Com relação a ferramentas, na Rebellion nós temos nossa engine própria, então precisamos criar todas as nossas ferramentas do zero. Quando eu me juntei a eles, havia algumas coisas que poderíamos usar que acabaram sendo implementadas de uma forma fácil e acessível – por exemplo, nossas configurações para daltônicos. Nós já possuíamos parâmetros expostos para essas cores, e a quantidade de programação necessária para criar esses padrões é mínima. Áreas que são mais especializadas, como mapeamento de controles ou narração, precisaram ser construídas do zero pela nossa equipe de engine. Essas ferramentas e recursos cresceram com a gente. A equipe me avisa quando precisam de apoio para preencher espaços em seu conhecimento, e também enquanto planejamos recursos futuros com a equipe de engine. Nós tentamos implementar ferramentas de acessibilidade com a ideia de que elas podem fazer parte dos próximos jogos – para que tenhamos acesso ao que fizemos anteriormente.

Sem recursos oficiais ou o apoio de usuários com deficiência, estúdios independentes podem acabar de fato se sentindo sobrecarregados com as cobranças por acessibilidade. O trabalho de criar opções que permitam ao máximo de pessoas jogar pode parecer desafiador, especialmente quando pensamos na imensa quantidade de deficiências existentes e na natureza única da experiência de cada pessoa com deficiência. Porém, como Watterton e diversos desenvolvedores afirmam, ferramentas de acessibilidade e práticas de design criam novas experiências para todo o público – e a meta dos desenvolvedores é permitir que o máximo de pessoas o possível possam jogar.

“Acessibilidade pode ser assustadora, especialmente quando você é um desenvolvedor sem qualquer deficiência”, afirma Watterton.

Quando eu comecei, eu fiquei com medo, porque me preocupava com a possibilidade de desenvolver uma ferramenta que não ajudasse ninguém. E através dos testes dos usuários, eu descobri que eu tinha feito exatamente isso. Mas não era algo assustador ou que eu devesse me envergonhar. Foi uma oportunidade de aprendizado.


Texto traduzido e adaptado da Wired.

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