Um debate importantíssimo que deveria estar sendo muito mais difundido.

Dificuldade nos jogos é um tópico que gera muito debate de tempos em tempos. Esse tipo de discussão começou nos tempos do fliperama, mas ainda é um dos temas centrais sobre esse nosso hobby. E quando falamos sobre dificuldade, naturalmente a questão da acessibilidade vai fazer parte da conversa, mas a adição de um modo fácil não é um bilhete dourado capaz de resolver os problemas relativos à inclusão nos jogos.

Por mais que muita gente acredite que a discussão sobre acessibilidade seja somente sobre a inclusão de “modos fáceis”, em momento nenhum ela se resumiu a isso. É de importância vital que conversemos sobre como as configurações de dificuldade contribuem para tornar um jogo acessível, mas a conversa não pode acabar por aí. Existe uma relação, mas defensores da acessibilidade sempre disseram que os jogos devem ir muito além da adição de um “god mode” (modo deus) ou dificuldades reduzidas, ainda que essa possa ser uma ferramenta útil.

E de todas as opções possíveis que os desenvolvedores podem incluir em seu jogo, alterações nos modos de dificuldade parecem ser os que mais causam incômodo. Quando jogadores com deficiência e defensores da acessibilidade falam sobre como jogos podem se tornar mais inclusivos, sempre existe um grito de guerra por parte de certas comunidades. Seus argumentos tendem a ser bastante específicos com relação aos níveis de dificuldade, inclusive como a adição de modos diferentes poderia afetar a experiência dos jogadores, remover o desafio e “destruir a visão e identidade de um jogo”.

Mas as conversas sobre acessibilidade nunca foram sobre tirar nada disso dos jogos – e sim apenas sobre adicionar opções. O foco deveria ser em dar oportunidades iguais e uma experiência justa, e é isso que boa parte dos defensores irredutíveis dos jogos difíceis parecem não entender.

Steven Spohn, da AbleGamers (uma organização cujo foco é tornar jogos mais acessíveis para jogadores com deficiências), criou uma thread excelente no Twitter sobre esse problema.

Em qualquer jogo, seja Sekiro, Dark Souls, ou qualquer jogo baseado em habilidade, deveria haver opções que permitissem a modificação dos seus pontos de saúde, dos pontos dos inimigos e o ajuste da velocidade do jogo. Isso não torna o jogo fácil. Isso permite que pessoas joguem de forma igualitária.

Ninguém está defendendo pegar o seu jogo favorito, que é famoso por ser frustrantemente difícil e torná-lo tão fácil que ninguém vai ligar. O pedido que colocamos na mesa é que as pessoas que não conseguem melhorar pela frustração possam ter opções para tornar o jogo jogável.

“Igualitário” é a palavra importante aqui, e Spohn sugere que o próprio termo “Modo Igualitário” seja adotado, para deixar claro que ninguém está querendo impedir que os jogos sejam difíceis.

Quando reconhecemos isso, o desafio que os desenvolvedores enfrentam é sobre como criar um jogo com ferramentas de acessibilidade que permitam a jogadores com deficiência terem a mesma experiência que outros jogadores têm. E isso pode incluir diferentes modos de acessibilidade, mas também há uma longa lista de forma que os jogos podem se tornar mais acessíveis, de interfaces cujos elementos podem ser ampliados até esquemas de cores favoráveis para daltônicos.

Nós precisamos fazer perguntas mais amplas sobre como os jogos podem ser desenvolvidos para reduzir as demandas dos jogadores – e é neste ponto que as conversas sobre acessibilidade deveriam começar. Como podemos tornar os jogos mais amigáveis para jogadores com deficiências motoras, visuais ou auditivas? Como podemos utilizar o design inteligente para que todos os jogadores tenham uma experiência semelhante, independente das configurações por eles escolhidas? Os jogadores que estão pedindo por acessibilidade também querem jogos desafiadores, e soluções criativas são necessárias para encontrar esse equilíbrio.

Alguns jogos conseguiram ajustar suas configurações e ainda oferecem a mesma experiência para todos. Um artigo sobre o papel da dificuldade em um jogo, de autoria de Ruth Cassidy apontou como desenvolvedores conseguiram fazer isso com sucesso em Celeste, Control e Pathologic 2. A jogabilidade dinâmica e acelerada de Control não desaparece após alguns ajustes no menu de assistência, e os 15 diferentes modificadores de dificuldade de Pathologic 2 possuem explicações claras sobre como e quando elas afetam a jogabilidade, permitindo que os jogadores construam a experiência da forma como preferirem.

Celeste, por sua vez, é um jogo difícil de plataforma. Um dos mais difíceis que estão por aí. Mas seu modo de assistência traz um grande número de modificadores de dificuldades, fazendo com que os jogadores possam mudar as regras e mecânicas da forma que preferirem. E isso foi algo altamente comemorado pelos fãs, e mesmo com as alterações na jogabilidade, isso não mudou em nada a visão dos desenvolvedores.

O jogo continua exigindo atenção ao tempo e momento, o que é o coração dos jogos de plataforma. Escritor e designer de Celeste, Maddy Thorson chegou a publicar um tweet sobre suas sugestões de “modo de assistência estilo Celeste” para o jogo Sekiro, da FromSoft.

Tradução: [Se Sekiro tivesse um modo de assistência estilo Celeste:
– Velocidade de Combate (50-100%, modifica a velocidade do jogo quando inimigos estão em modo agressivo)
– Ressurreições (+1, ou infinitas)
– Invisibilidade no modo furtivo
– Postura infinita
– Invencibilidade (enquanto bebe da cabaça ou infinita)

Falando nisso, estou amando Sekiro 🙂 talvez seja meu jogo preferido da From. Elementos importantes do modo de Assistência para jogos difíceis, na minha opinião:

– Ativação apenas pelo menu principal, ligado ao save, para que seja invisível para pessoas jogando sem usar
– Precisa ter uma explicação clara e direta do seu funcionamento
– Uma vez ativado, você pode ajustar nas opções durante o jogo

Eu também acho que as opções mais importantes de assistência são as intermediárias, como diminuir a velocidade do jogo em 20%, ou ganhar um dash extra em Celeste. Coisas que permitem aos jogadores refinarem os aspectos da dificuldade, sem necessariamente tornar o jogo trivial.]

A filosofia de design por trás de Sekiro e dos trabalhos da FromSoft não é apenas de criar jogos difíceis. Ian Hamilton, consultor especialista em acessibilidade que trabalhou com desenvolvedores AAA e independentes, explicou no Twitter que a meta da FromSoftware em criar uma série de jogos que exigem alto nível de habilidade está bem longe do que o seu criador deseja.

Muitos assumem que a meta da FromSoft é fazer jogos que exigem um alto nível de habilidade; isso não é verdade. Como Hidetaki Miyazaki já disse em entrevistas, sua meta não é fazer jogos para pessoas habilidosas. Sua meta é fazer jogos para pessoas que sentem prazer em ter sucesso através da persistência, o que é uma coisa fundamentalmente diferente. (…) É uma distinção importante. Isso significa que se alguém gosta do sentimento de sucesso pela persistência, mas não consegue ter sucesso independentemente de quanto tenta, o jogo está indo completamente contra a visão dos designers.

É uma infelicidade que a dificuldade esteja ligada às identidades de alguns jogadores, mas conforme os jogos foram mudando de placares e quadros de melhores jogadores, isso também mudou a forma como os jogadores interagem com eles. Em seu painel “Deixem a Discussão sobre Dificuldades” no festival Ludicious X, de 2020, a designer chefe da Blackbird Interactive, Jennifer Scheurle, falou sobre essa mudança.

A maior parte das equipes vai identificar um grupo de motivações centrais dos jogadores, que eles buscam cumprir durante a experiência, e é assim que as discussões sobre o desafio surgem em contexto. A maior parte dos jogadores interagem com os jogos de múltiplas formas e com motivações diversas. Poucos são os tipos de jogadores que só se importam com uma das motivações.

Sekiro e os jogos Soulsborne em geral são excelentes exemplos. Os jogos da FromSoft possuem mundos incríveis e recheados de histórias, mistérios e lore. Adicionar mais configurações para qualquer um deles não tiraria nada dessas categorias. A ideia de que adicionar mais opções ameaçaria a visão artística dos desenvolvedores é simplesmente uma mentira, e vários desenvolvedores já afirmaram isso, inclusive Cory Balrog (diretor de God of War) e as produtoras Double Fine e Insomniac Games. As pessoas não jogam esses jogos apenas pela dificuldade, e ver os trabalhos da FromSoft apenas como coisas a serem conquistadas desvaloriza muito o trabalho feito em seu desenvolvimento.

Trad.: [Explorar e aprender sobre acessibilidade no desenvolvimento de jogos foi uma das mais recompensadoras e satisfatórias partes da minha carreira. Fazer parte de uma equipe que continuamente deseja derrubar barreiras para que mais e mais pessoas possam jogar é uma honra para mim. Feliz Dia Mundial do Reconhecimento da Acessibilidade]

Em resumo, não existe ponto negativo em implementar mais opções para uma variedade de jogadores. E isso inclusive é uma boa prática comercial, se os desenvolvedores e distribuidoras ligam para a quantidade de consumidores em potencial. Pode dar trabalho, mas o resultado final é o seu jogo alcançando um público muito maior.

Assim é necessário adicionar um remapeamento completo de teclas e botões, auto assistência, formatação clara de texto, ajustes no tamanho das fontes, salvamento manual, dicas visuais e auditivas mais claras – e isso é apenas parte do que vários jogos podem fazer para se tornar mais acessíveis.

Acabar com os mitos sobre acessibilidade e desenvolvimento de jogos é importante, mas não são apenas os criadores de jogos que devem mudar as coisas. Nós, como jogadores, também temos a nossa responsabilidade.

Nós precisamos reconhecer a acessibilidade como algo muito maior do que apenas mudar a dificuldade dos jogos, e que incluir mais opções não muda o núcleo da experiência de forma alguma. Quanto mais rápido conseguirmos separar as ideias de acessibilidade e dificuldade como opostos irreconciliáveis, mais inclusivas as nossas comunidades podem se tornar. A meta é criar uma indústria que respeite e reconheça jogadores com deficiência, e isso inclui o respeito dos demais jogadores.

E se você está procurando por mais recursos sobre acessibilidade, sites internacionais como Can I Play That e Dager System tem como objetivo ajudar jogadores com deficiência por meio de jornalismo baseado unicamente na questão da acessibilidade. Também não podemos esquecer da AbleGamers, uma organização que atua no apoio de pessoas com deficiência que desejam jogar. Para os desenvolvedores que buscam formas de melhorar a inclusão em seus jogos, Ian Hamilton criou um guia muito legal que pode ser verificado aqui.


Post traduzido e adaptado da PC Gamer.

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