Não falamos do Bruno, mas vamos falar da Abuela.

Encanto, o filme da Disney mais recente, conquistou o coração das pessoas desde que foi lançado. A história da família Madrigal foi tão amada que a música We Don’t Talk About Bruno (Não Falamos do Bruno, em inglês) ficou no top do hot 100 da Billboard.

Não é para menos que as pessoas estão debatendo todos os elementos do filme possíveis. Entre eles, sobre quem realmente seria o vilão de Encanto. Não existe uma personificação do mal no filme, como acontece em muitos longas da Disney. Mas existe uma personagem que acaba sendo apontada como vilã: a Abuela.

Este texto é para falar que a Abuela não é necessariamente a vilã do filme, que na verdade Encanto não precisa de um vilão para ser uma história completa e que consegue falar de trauma geracional. Inclusive, sua mensagem funciona tão bem exatamente por ser assim (aviso: isso não é uma tentativa de passar pano para os erros da Abuela).

Este texto contém spoilers de Encanto!

Encanto e a mensagem sobre trauma geracional

Depois de perder a casa e o marido, Abuela constrói um novo lar com o “milagre”, onde seus descendentes recebem poderes mágicos a cada nova geração.

Além de cuidar da própria casa mágica, Abuela e sua família também ajudam a comunidade que mora ao redor deles. Toda essa dinâmica é central para definir o convívio na casa Madrigal.

Este contexto é o que faz Mirabel enfrentar vários problemas em sua vida: a sensação de que não é o suficiente, falta de pertencimento, achar que está atrapalhando, que não está orgulhando seus familiares, que não corresponde às suas expectativas… E como o milagre é, ao que tudo indica, passado através da família, essa cobrança também acaba sendo.

Não é à toa que Antônio tem muito medo na hora de receber seu dom. Ele percebe que Mirabel é tratada diferente, ele vê em seus irmãos e primas um modelo que deve ser seguido. Mas até mesmo as crianças com poderes têm seus próprios pesos para carregar, como dá para ver com Luísa e Isabela.

Não dá para negar que essa pressão, e consequentemente as inseguranças e atritos que vem dela, podem ser relacionados com a Abuela.

Por que Abuela é vista como vilã?

Vendo parte do conteúdo que os fãs fizeram, muitos apontam como a Abuela é a real vilã da história, mesmo que Mirabel não lute com ninguém no final. O que não seria impeditivo, já que um vilão não necessariamente é derrotado em uma luta física.

Existe uma diferença entre vilão e antagonista, e é aqui que eu acredito que acontece a confusão com a Abuela. O antagonista é aquela força que vai contra os objetivos do protagonista, e dificulta sua vida dessa forma, independente de ser visto como bom ou mau. Tanto que existem histórias em que o vilão é o protagonista e o antagonista seria o herói, como é o caso de Death Note.

Ser vilão ou herói é definido pelo contexto da história. As atitudes de Abuela antagonizam Mirabel e outros personagens, mas podem ser consideradas vilanias? Isso nos faz pensar na cena final. Abuela estava tentando manter a família segura, e é óbvio que existem vilões com boas intenções, mas essas ações costumam ser mais cruéis ou frias do que as de Abuela.

Mas é lógico ver Abuela como vilã, afinal é ela que está perpetuando o trauma geracional. Parte dos problemas da casa acontecem por conta dela. Ela foi uma vítima de eventos horríveis e está cuidando da família da forma que acredita ser a melhor, e nem por isso suas ações deixam de causar consequências ou deixam de magoar outros personagens. Mesmo que tenha as melhores das intenções, as ações de Abuela têm consequências.

Toda a história precisa da personificação do vilão?

A resposta curta é não, mas existe uma conversa mais interessante que podemos ter aqui.

Nós estamos muito acostumados a procurar pelo vilão da história, aquela pessoa que devemos odiar e torcer contra. A maioria das histórias da Disney tem um vilão que deve ser derrotado pelo mocinho. O “perigo” que muitas estruturas de histórias mencionam, como a própria Jornada do Herói, é personificada em um personagem, ou um grupo de pessoas. Uma vez derrotada, a história encontra paz (na medida do possível).

Mas histórias não precisam de vilões personificados propriamente ditos. Elas precisam de conflitos, que podem ser de vários tipos diferentes, porque é isso que dá movimento para uma narrativa. Mas nosso olhar está acostumado a procurar pelo vilão.

Quando existe um conflito em nossas vidas, nos perguntamos quem está errado. Quem deve ser punido? Quem é a pessoa que devemos odiar no reality show? Quem é o vilão da treta?

Nada errado em ter vilões nas histórias, inclusive eu amo. Um vilão bem construído rouba a cena. Mas nem toda a história precisa de um, e é o caso de Encanto, que trás os conflitos de outra forma. Moana mesmo segue por essa linha.

Encanto pode ir além

Há inúmeras formas de construir uma história sobre traumas geracionais. Encanto escolheu uma opção que fala não só com o público de maneira geral, mas que chega de um jeito especial nos brasileiros. A Colômbia e o Brasil são muito diferentes, mas também há semelhanças que fizeram tantos de nós vermos partes das nossas famílias no filme.

Falar de trauma geracional vai muito além de identificar um culpado, ou o vilão, e excluí-lo do convívio. Pessoas boas e com as melhores intenções podem fazer mal para outras. Isso não torna ninguém em um grande vilão.

A família toda de Mirabel se junta para a foto da família e esquece de incluí-la. Isso a magoa, mas faz com que todos da família sejam vilões? Muitas vezes, conflitos dentro de famílias e relacionamentos em geral não tem um certo e errado, um vilão e uma vítima. Às vezes conflitos são mais complexos que isso.

Isso não significa que o trauma geracional não seja real, que não cause sequelas, que não deva ser levado a sério e não precise ter o ciclo quebrado. Nesse caso, quem quebrou foi Mirabel. As pessoas são mais complexas do que algumas histórias representam, e esse é um dos maiores acertos de Encanto. Abuela tem a chance de parar e as novas gerações não vão viver pela mesma pressão que outros familiares passaram.

Tanto que, uma vez que a família compreende o que eles estão vivendo, e decidem reestruturar a casa juntos, os dons voltam. Abuela é antagonista por muito tempo, e comete erros durante a história, mas acredito que classificá-la como vilã não é a melhor forma de definir o que acontece em Encanto.

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