Essa crítica PRECISA ser feita.

**O texto a seguir contém spoilers do episódio final da quinta temporada de Outlander**

**Alerta de gatilho: O texto a seguir discute cenas de estupro e violência**

No episódio final da quinta temporada de Outlander, a protagonista e heroína, Claire, é estuprada por um grupo de homens e torturada por causa de seus conhecimentos médicos, que permitiram às esposas deles a autonomia sobre os próprios corpos e a oportunidade de rejeitar sexo.

Na primeira temporada da série, Jamie, um dos protagonistas da trama, também foi estuprado. Na segunda temporada, Claire foi forçada a fazer sexo com Louis XIV para ajudar seu marido. Seu sobrinho e outra personagem foram estuprados na mesma temporada. Mais tarde, Jamie foi forçado a transar com outra mulher, e na última temporada, a filha dos protagonistas também foi estuprada. Isso é assustador, e ainda que muita gente aponte essa brutalidade, a série tem se livrado de críticas sob o argumento de que fazer um personagem ser vítima de violência pelo menos uma vez por temporada torna a trama “historicamente precisa” e dramática. E nós já falamos aqui no site como essa desculpa é esfarrapada.

Um artigo intitulado “Precisamos conversar sobre estupro em Outlander”, publicado pela Entertainment Weekly, cita uma entrevista anterior com a produtora-executiva da série, Maril Davis, em que o assunto foi abordado:

Há um monte de estupros nos livros de Diana. Obviamente, nós vimos alguns deles e sempre tentamos descobrir o que é melhor para a história. Nós certamente queremos ser sensíveis aos personagens que estão passando por essa situação.

Desde a cena na primeira temporada em que Jamie bateu em Claire como “punição” por colocar pessoas em perigo, a série se apoia nessa ideia de que isso é normal por causa da época em que a história se passa.

Como afirmou o produtor-executivo e showrunner Matthew B. Roberts:

Quando um público moderno assiste a Outlander por lentes modernas, aí sim, você tem problemas com isso. Mas se você se colocar naquele período… E não estamos dizendo que estupro era certo naquela época também… Mas a forma que os personagens viam é a forma como estamos mostrando. Nós não estamos mostrando como nós vemos a questão, e isso faz a diferença.

E isso não passa de uma desculpa preguiçosa.

É uma desculpa porque a série de livros começou no início dos anos 1990. Não é um documento histórico. O conceito central da série é uma mulher que pode viajar pelo tempo através de pedras. Mulheres – cis ou trans, hétero, homo ou bi, não importa – sabem muito bem que vivem sob a ameaça de violência sexual.

A violência doméstica é uma realidade que é subnotificada e subestimada, e nós vivemos em 2020. Como pode ser “informativo” sobre uma realidade passada Jamie bater em sua mulher por pressão dos amigos e então prometer que nunca mais faria isso? Como isso é “preciso” ou “algo bom”? Sabe o que ele poderia ter feito em vez de bater em Claire? Fingir que fez e conversar sobre isso.

É claro… Ter um marido compreensivo e carinhoso naquela época seria algo “pouco realista”.

Às vezes discutir Outlander parece ser como dar soco em ponta de faca. Apesar da imensa quantidade de problemas da série, ela continua sendo querida em vários círculos feministas porque ela aborda questões que são admitidamente interessantes sobre gênero… Desde que sejam sobre Claire ou sobre pessoas que Claire veja como dignas de sua atenção.

As cenas de sexo entre Claire e Jamie são bem filmadas e cheias de amor, mas isso parece fazer com que as pessoas se tornem incapazes de abordar o fato de que Outlander, tanto os livros quanto a série, utiliza estupro como ferramenta de enredo desde o início, e que isso é exaustivo.

Especialmente porque, como disse Claire nesse episódio, ela já passou por tanto – e em dois períodos diferentes de tempo. Segunda Guerra Mundial, Direitos Civis, o início da Revolução Americana e a Batalha de Culloden? Sem falar sobre o trauma emocional de passar por abortos e a perda de seu marido. Será que seria demais pedir para não adicionar um estupro coletivo na trama?

Em uma entrevista para o jornal The New York Times, Caitriona Balfe, Diana Gabaldon e Matthew B. Roberts discutiram o episódio e a cena. E toda a entrevista foi meio… estranha, e com algumas coisas que chamaram a atenção como…

Diana Gabaldon dizendo que o ponto do estupro é a série mostrar “a resistência do espírito humano”, para que possamos ver que as pessoas melhoram depois, ou nas palavras dela:

Eu tinha um ponto, e tem muito a ver com a resistência do espírito humano. Nós não tratamos o estupro como apenas uma coisa destrutiva que arruíne a vida inteira de uma pessoa.

Roberts ainda disse que ele sente que a não inclusão de certas cenas gráficas de estupro “diminuiria a obra”, ou em suas palavras:

Certo, vamos tirar o estupro de Jamie. Vamos apenas fazer ele dizer ‘eu fui estuprado’. Pra mim, o impacto seria massivamente reduzido. Nós temos que fazer: ‘Esse é Jamie sendo estuprado. Esse é Roger sendo espancado.’

Nesse ponto, Gabaldon adiciona o elemento mais bizarro da entrevista, ao dizer que a cena da série era mais violenta do que a dos livros porque “Claire era penetrada por apenas um homem nos livros, [e] que [o livro] não é violento com relação a isso”. E ela ainda resolveu falar sobre o retorno que teve de sobreviventes de violência sexual:

Alguns anos atrás, eu questionei pessoas que haviam sido vítimas de violência sexual sobre o que elas pensavam sobre a forma como as pessoas lidam com esses incidentes. Eu coloquei uma nota no meu perfil do Facebook, e em menos de 24 horas, recebi uma quantidade imensa de retornos das pessoas. E todas elas diziam coisas como ‘sua história me deu esperança de que posso me recuperar, de que posso superar isso’. E isso me fez me sentir melhor.

Nós sabemos que existem sobreviventes que se veem em Outlander, e isso não é nenhuma vergonha, assim como não é gostar da série. O que é ridículo é o fato de que isso parece incomodar muito mais em outras séries, como em Game of Thrones, mas Outlander tenha passe livre para usar estupro como “precisão histórica da brutalidade”.

Esse é um recurso pobre de roteiro utilizado especialmente para atrair empatia para um personagem ou para demonstrar a vulnerabilidade de personagens fortes. E Outlander explora esse recurso de forma desnecessariamente detalhada e apelativa.

Algo pode dialogar diretamente com a sua experiência e te tocar, então é importante discutirmos sobre a forma como isso acontece.

Durante a New York Comic-Con de 2018, uma pessoa resolveu levantar o assunto de estupro e política, e sobre a forma como eram explorados na série, e o público reagiu muito mal. Uma mulher gritou de forma bem clara que “A série não é política! Não é sobre isso!”.

Ou seja, muita gente não entendeu nada sobre o que assistiu.

Existem muitos romances históricos conscientes para Outlander se inspirar, em vez de agarrar essa narrativa com a desculpa de “precisão histórica”.

Todos nós sabemos que estupro é algo comum, mas ainda assim somos críticos ao uso excessivo dele em histórias fictícias, porque isso normalmente vem muito mais de uma necessidade de melodrama moralista e falta de recursos intelectuais do que de realidades psicológicas de eventos do tipo.

Outlander é brilhantemente interpretado, com figurinos e cenários maravilhosos, além de possuir um elenco maravilhoso. Tudo isso é verdade. Mas a série se apoia demais em estupros para “desenvolver personagens”, e sempre pelas razões mais estapafúrdias possíveis. Isso é nojento e não deveria acontecer em nenhuma série.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

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