Uma resenha que tenta sair um pouco da superfície!

O filme sul-coreano Parasita (기생충 Gisaengchung em coreano – 2019), dirigido e co-roteirizado por Bong Joon-ho é recheado de camadas, detalhes e mensagens que surpreendem a cada novo olhar, sendo digno de tantos reconhecimentos internacionais que recebeu a ponto de marcar a cinematografia, especialmente a sul-coreana, que celebrou em 2019 os seus 100 anos de história. A resenha a seguir possui SPOILER!

Com uma fotografia envolvente, montagens hitchcockianas editadas por Yang Jin-Mo, indicado ao Oscar de Melhor Edição, e uma trilha sonora composta por Jung Jae-il, que te embala em cada cena como uma dança de balé, Parasita mescla gêneros e transita com a maestria de Bong em momentos de drama, humor pungente e um intenso suspense.

Em uma falsa ilusão de que encontraremos no filme um monstro escondido nos labirintos da casa da família Park, como em outro filme consagrado de Bong e de nome similar, O Hospedeiro (2006), Parasita consegue nos assombrar ainda mais em uma trama sem vilões e apresentando um “monstro” invisível, o parasitismo de uma sociedade neoliberal.

E essa é a principal temática roteirizada no filme: como as camadas ricas da sociedade desigual retratada suga tudo o que pode das minorias para manter seu status “superior”, a ponto de as animalizar e gerar violência e desentendimentos entre pessoas de sua mesma classe social, afinal, como diria o ditado popular “em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Ao ganhar popularidade ao redor do mundo, percebe-se que apesar da trama se passar em Seul, capital da Coréia do Sul, a realidade é bem similar em qualquer sociedade neoliberal rica em desigualdades.

Leia mais: O que a música final do filme Parasita desvenda sobre a trama?

Sobe e desce nas escadas

Um dos principais “personagens” do filme é a arquitetura das casas e ruas cheias de descidas, subidas e significados. Por exemplo, se subirmos todas as escadas e morros pela cidade, chegamos ao lar da família abastada Park. Se seguirmos o sentido contrário, encontramos abaixo do térreo em um semi-porão a família pobre Kim.

diretor do filme e o ator que interpreta Kim Ki-woo (Choi Woo-shik) comentaram para o Vanity Fair que além dos apartamentos de semi-porão serem habitações comuns entre a população mais pobre da Coréia do Sul, essa habitação traz a simbologia de esperança. Ou seja, apesar ser uma família que não está totalmente escondida no subterrâneo, ela ainda tem uma meia-visão da luz solar, da esperança de ter uma vida melhor, mesmo que se perceba espacialmente que para se chegar até a casa dos Kim é necessário descer. Descer a ponto de ficarmos abaixo da encanação, abaixo do nível da privada do banheiro.

Ki-taek recebendo a luz solar na janela do semi-porão

E em uma situação mais precária e abaixo da família Kim, que vive em um semi-porão, se descermos as escadas da casa da família rica Park encontraremos Oh Geun-sae (Park Myung-hoon), o marido da ex-governanta Gook Moon-gwang (Lee Jung-eun) que se esconde no bunker a fim de fugir da morte por agiotas. Lá, ele já está totalmente subterrâneo, sem janelas ou luz solar, sem esperanças de que uma vida melhor possa se desenvolver e gerando asco da família Kim.

Na mão contrária, quando subimos todas as escadas e a ladeiras das ruas, encontramos no topo da sociedade a família rica Park, cheia de esperanças e oportunidades e alheia a tudo que acontece ao seu redor, sem nunca olhar para baixo, nem mesmo para sua própria casa, a menos que surja algum incômodo para esse esforço.

A família Park não percebe, por exemplo, a família Kim escondida embaixo das mesa central da sala, mesmo quando estão transando e sendo observados. A família Park não desce o olhar para a própria cidade e ignora a destruição das chuvas que tanto agradecem. A família Park está tão acostumada a olhar por cima de todas as situações que desconhece a existência de um ser humano vivendo e servindo à casa ao acender e apagar suas luzes.

De forma visual, Parasita delimita didaticamente os estratos sociais na sociedade desigual.

Mesmo no mundo das aparências há um limite

A esperança da família pobre Kim parece se concretizar na forma de uma oportunidade oferecida por um amigo de Ki-woo, que oferece uma pedra simbólica e um emprego temporário como tutor de inglês para uma adolescente rica chamada Park Da-hye (Jung Ji-so) enquanto ele faz seu intercâmbio. Esse é um trabalho comum entre universitários coreanos, o problema é que mesmo que Ki-woo domine o idioma inglês melhor que todos os seus colegas, ele não é um universitário, portanto, não tem nem direito à oportunidade oferecida.

A teia de mentiras do filme se inicia e Ki-woo falsifica com a ajuda de sua irmã Ki-jung (Park So-dam) seus documentos universitários e assume a identidade de Kevin, mesmo sem precisar deles para ser contratado porque, por mais competente que ele fosse, o que pesou em sua contratação foi apenas a indicação de seu amigo, reforçando a ideia de promoções e contratações pelo simples mérito de se conhecer alguém.

ki-woo pensa

Ciente da dinâmica do mercado, Ki-Woo visualiza as oportunidades de “infiltrar” e empregar com diversos golpes toda a sua família pobre dentro da casa da família rica, escondendo os laços familiares para manter seus papéis.

A família Kim não tem muitos empecilhos em seus golpes porque a família rica Park é colocada como ingênua e presa apenas às aparências, especialmente a esposa Yeon-gyo (Cho Yeo-jeong) que é americanofílica. Por exemplo, não se pesquisou as qualificações de “Jessica”, a personalidade assumida por Ki-jung, ou existência da empresa fictícia do cartão elegante que ofereceria os serviços da mãe Kim Chung-sook (Jang Hye-jin) como nova governanta.

Enquadrando-se nas aparências desejadas, o que importava para a família rica Park era apenas que seus subordinados aparentem serem qualificados e nunca ultrapassem a linha de diferença entre eles, retratada fisicamente em diversas nas cenas, como explica este vídeo de Thomas Flight:

Linha entre empregados e patroa em parasita

jessica nas escadas com a linha da parede separando ela dos patrões

Linha separando o motorista do patrão

Observe que quando a patroa acredita que a ex-governanta está com tuberculose, o enquadramento da câmera muda e a ex-empregada aparece ultrapassando fisicamente a linha do vidro e do aceitável:

a governanta ultrapassa o limite, a linha no enquadramento

Esses detalhes deixam subentendido que sempre existirá uma divisão entre essas camadas, mesmo que invisível. Ou seja, a família Kim pode se vestir e assumir as personalidades que quiser, o limite entre as classes sempre existirá, no filme exaltado como o cheiro comum entre pessoas que andam de metrô, que andam nos subterrâneos das camadas sociais: “Aquele cheiro ultrapassa a linha”, ojeriza Park Dong-ik (Lee Sun-kyun).

Quem são os parasitas do filme?

Em uma análise superficial, pode-se entender claramente quando a família Kim é apontada como parasitas da família rica. Desde o início do filme, eles se aproveitam da dedetização pública para limpar suas casas, roubam o sinal de wi-fi, moram em lugares insalubres com insetos e aplicam golpes. Há até cenas em que eles rastejam e fogem como baratas. De mesmo modo, a governanta e seu marido parasitam a casa, roubam a comida, moram escondidos e Geun-sae até aparece para o caçula Park Da-song (Jung Hyeon-jun) como um monstro ou fantasma e se rastejando.

expulsando inseto da mesa

Mas, como analisado pelo ArteCines, a família rica Park também é parasita e talvez a mais cruel, porque ela usufrui de todas as energias e mão de obra de seus funcionários, sem se preocupar com eles e os descarta como hospedeiros sem valor nutritivo para seu status quo.

Por exemplo, a família Park explorou a mão de obra da ex-governanta, que aparentava não ter folga ao morar na casa, e a descartou sem auxílio ou justificativa ao cogitaram que ela estaria doente, também não se preocuparam com a “querida” arteterapeuta esfaqueada, assim como um parasita que apenas descarta seu hospedeiro em busca de uma nova “pessoa” que possa lhe sustentar melhor.

O mesmo acontece na cena da chuva, que para a família rica ela é o símbolo da bênção que limpa os céus e revitaliza seus jardins para uma festa de aniversário agradável. Ignora-se a destruição que essa mesma chuva causou nos bairros vizinhos por onde a água escoou levando toda a sujeira das casas ricas para baixo. Segundo a revista Jacobin, essa cena pode ser uma referência da década de 1980, quando as inundações eram recorrentes no bairro de baixa renda Mangwon, vizinha de um aterro sanitário que sofria com as negligências do rio Han, em Seul.

Filme parasita: jessica na privada

Então quem seriam os parasitas nesse filme? Como comentado em Spikima Movies, pela visão existencialista, talvez todos sejam parasitas se aproveitando uns dos outros para sobreviverem.

“Todos os personagens em Parasita estão na zona cinzenta. Eles são bons em algum grau e ruins em algum grau. E acho que isso está mais próximo da realidade”, afirma Bong Joon-ho para o The Ringer.

O homem subterrâneo sem planos

Desde o início do filme, o patriarca da família pobre, o Ki-taek interpretado por Song Kang-ho, parece apreciar os planos. Sua esposa pergunta qual é o plano para a família sem wi-fi; Ki-taek fica feliz que Ki-woo tem um plano de entrar em uma universidade. Quando Ki-taek está preso no bunker com Geun-sae, marido da ex-governanta que vive lá escondido, questiona: “Como você consegue viver em um lugar como este? O que você vai fazer no futuro? Você não tem um plano?”.

ki-taek segura diploma falso do filho

Mesmo aspirando uma mudança, a vida de planos nunca deu certo para Ki-taek, que sente as mazelas da desigualdade e responde ao filho após a inundação de seu lar: “Ki-woo, você sabe qual plano nunca falha? Nenhum plano. Você sabe por quê? Se você faz um plano, a vida nunca funciona como planejado”.

A revista Jacobin analisou que “quando os trabalhadores são automizados e isolados, eles perdem a capacidade de planejar com antecedência, de se sentir seguros e de identificar significado e propósito em suas vidas. Cedo ou tarde, alguns deles atacam”.

Cena de sangue respingando no pão em parasita

A amargura de Ki-taek diante dessa realidade e seu destino final, ironicamente, igual a de Geun-sae, remete à figura do anti-herói existencialista conhecido como “homem subterrâneo” do livro Memórias do Subsolo ou Notas ou Subterrâneo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, que também acaba destruído e incapaz de mudar a realidade que o cerca, concluindo que “o melhor é não fazer nada”.

Mesmo ensinando isso a seu filho, o fim é niilista e mostra que Ki-woo ainda mantém planos e sonhos que nunca se realizarão. Ele pode sonhar, mas no fim, acaba como começou o filme: em um semi-porão com falsas esperanças.

Parasita marcou a história das premiações

Entre tantas premiações e reconhecimentos, o diretor ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e Parasita, além de ter 99% de aprovação no Rotten Tomatoes, recebeu prêmio de Melhor Filme Estrangeiro do Globo de Ouro e seis indicações ao Oscar 2020, vencendo nas categorias de Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Filme, sendo o primeiro filme não falado na língua inglesa a vencer a principal categoria da Academia.

Em tantas premiações, o diretor e a equipe estavam carregados de discursos voltados para mais representatividade no círculo, uma falta criticada há anos no meio das premiações cinematográficas:

Com um elenco de peso, Parasita também marcou a história ao ser a primeira produção estrangeira a vencer na categoria de Melhor Elenco de Filme do SAG Awards 2020, o prêmio do Sindicato de Atores de Hollywood, instigando indignação de fãs pela falta de indicação dos atores em outras premiações (afinal, um filme sensacional precisa de um elenco sensacional) e burburinho de possível whitewashing (quando atores brancos interpretam personagens asiáticos, a exemplo, Scarlett Johansson que interpretrou a personagem japonesa Major Motoko Kusanagi no filme live-action de Ghost in The Shell) com o anúncio de uma produção americana baseada no filme.

excelentes atuações ignoradas
Legenda: Os atores Song Kang-ho e Park So-dam apontam para o jornal que o diretor Bong Joon-Ho segura, que está manchetado “Excelente elenco ignorado”

Como Song Kang-ho que interpretou o motorista Ki-taek disse em seu discurso ao receber o SAG Awards: “Para ser homenageado com o prêmio de melhor elenco, ocorre-me que talvez não tenhamos criado um filme tão ruim”.

Em alguns cinemas brasileiros ainda é possível assistir ao filme. Para os que aguardam o lançamento em uma plataforma de streaming, no Brasil ainda não teremos expectativa, já que o filme será transmitido pelo Hulu que ainda não está disponível no país.

Assista ou reveja o trailer de Parasita:

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