Spoiler: o racismo muda a perspectiva de tudo!

A internet ficou bem agitada com Coringa, do diretor Todd Phillips, um mês antes mesmo do filme ser lançado. Mas o título apresentou alguns paradoxos improváveis. O filme teve tomadas lindamente executadas (como a dança de Joaquin Phoenix na escadaria, com a luz descendo dos céus), combinadas com algumas cenas bastante grotescas. Mas Coringa tentou ser apolítico, apesar de se envolver completamente em um contexto político.

O que Coringa manobra para evitar e o que apaga é um ato político por si só. E o fracasso é ainda mais agudo na questão racial.

Enquanto isso, Watchmen, da HBO, lida com um assunto parecido, mas de forma absolutamente oposta, tornando o centro da história aquilo que o filme de Joker não quis fazer.

Tanto a série (adaptada por Damon Lindelof da graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons) quanto o filme de Phillips apresentam máscaras utilizadas por homens brancos – um tecido pintado ou a maquiagem de palhaço – representando ideologias maiores. Mas nos seis primeiros episódios apresentados para a crítica, Watchmen encontra nuances no diálogo, expondo como Coringa foi raso.

Em Coringa, o comediante Arthur Fleck, uma versão Travis Bickle-esca do clássico vilão de Batman, é afetado por uma condição médica que o faz rir como uma hiena de O Rei Leão nos momentos mais inoportunos. Ele parece uma espécie de azarão. Em uma cena no início do filme, vemos um grupo de crianças o agredindo e fazendo bullying com ele no meio da rua. As pessoas tiram vantagem dele no trabalho e ele é censurado por um estranho no ônibus. Sua apresentação de stand-up é alvo de chacota em rede nacional, no programa de seu ídolo, Murray Franklin. A sociedade está estragada, é o que ele afirma para sua assistente social, e o filme parece concordar com isso, mostrando as entranhas de Gotham City e sua corrupção, que pesa sobre o protagonista e o coroa com sua legítima e impecável vitimização.

O despertar violento de Arthur no metrô, causado pelo assédio de um grupo de amigos de terno, machões da Wall Street, soa como uma retribuição justa. Suas vítimas, afinal, eram bullies. Então, mesmo quando Murray questiona as ações de Arthur, dizendo que sua vitimização não dá direito a violência, suas palavras são invalidadas por causa da crueldade mostrada frente a Arthur no passado quando ele era criança. Além disso, o “Coringa” se tornou um símbolo em Gotham – o ataque de Arthur aos empresários é recontextualizado como um assassinato político.

O filme não se interessa, ou deixa de se interessar, no fato de seu estudo preguiçoso do personagem acabar glorificando em vez de desafiar esse Coringa.

Os críticos conectaram essa cena no metrô com um tiroteio real no metrô de Nova Iorque em 1984, em que um homem branco chamado Bernhard Goetz atirou contra quatro jovens negros, que ele afirmou achar que iriam assaltá-lo. O contexto racial foi apagado da cena do filme (apesar de manter a marca d’água), mas ainda existem personagens negros ao redor de Arthur: a assistente social, uma psiquiatra e um funcionário de Arkham e, de maneira mais notável, sua vizinha Sophie (Zazie Beetz), com quem ele possui um relacionamento absolutamente imaginário.

Existe um tipo de dissonância cognitiva no filme, que não parece reconhecer a ameaça particular que Arthur impõe como um homem branco em meio a esses personagens negros. Ele se torna um símbolo de um movimento de classe, mas um que é alarmantemente branco e masculino, apesar de haver evidências de personagens negros ao seu redor enfrentando os mesmos problemas econômicos.

E não tem como você não temer pela segurança das mulheres negras neste filme – a assistente social, por exemplo, que imaginamos que se tornará alvo de um dos seus ataques a qualquer momento; a psiquiatra de Arkham, que se torna um alvo; e a vizinha Sophie, cujo paradeiro é desconhecido. No relacionamento imaginário de Arthur com Sophie, o roteiro de Phillips se nega a lidar com a sua identidade ou negritude quando isso se conecta com um movimento político.

Coringa utiliza a identidade masculina e branca de Arthur para se dedicar a uma narrativa privilegiada, em que ele existe em um espaço acima das políticas raciais.

Watchmen, por outro lado, explora o cenário político que Coringa ignora. Em seu primeiro episódio, um filme silencioso em preto e branco apresenta um delegado americano negro que de maneira heroica impede um ato criminoso de um xerife branco, revelado como o vilão, apesar de seus trajes sugerirem o oposto (o xerife está de branco e o delegado encapuzado é vestido de preto). Estamos na época dos protestos raciais de Tulsa, em 1921, em que uma família foi brutalmente destruída no caos da violência.

Um salto no tempo nos leva ao presente, no momento em que um policial negro relutantemente aborda um motorista branco – uma clara inversão da nossa situação da vida real. A imagem lembra Philando Castile e incontáveis outros homens negros que foram vítimas de brutalidade policial. Mas aqui, ainda que abordado por um policial, o homem branco é um predador, um membro de uma organização secreta do submundo dos supremacistas brancos, intitulados de A Sétima Kavalaria. Ele atira no policial negro com uma arma automática. E a temática não é deixada de lado: ao final do primeiro episódio, um homem branco é linchado enquanto um homem negro senta ao lado do seu corpo.

Diferentemente do texto original, Watchmen de Lindelof tem como uma das protagonistas Angela Abar (Regina King), também conhecida como Irmã Noite, uma detetive secreta com propensão por brincadeiras com máscaras e trajes. O ponto de vista principal da série é de uma mulher negra cujas raízes em maquinações políticas são reveladas durante o progresso da série nos primeiros episódios. Irmã Noite, de forma bem apropriada, é a nossa estrela guia nessas políticas e nas consequências desta história.

Apesar da obra original ter lidado com diversas questões políticas importantes de sua época, especialmente com relação a tensão nuclear, as políticas raciais não faziam parte da história. A série da HBO muda isso, mas de forma que se torne uma extensão lógica da história e não uma medida meramente corretiva, já que a história corre em uma versão paralela aos Estados Unidos do presente. Um dos protagonistas dos quadrinhos, Rorschach, é redesenhado como um símbolo do terrorismo e dos movimentos supremacistas brancos. O personagem não era tratado como um supremacista nos quadrinhos. Politicamente conservador, sem dúvidas; mentalmente instável e misógino, sim; um pouco homofóbico; mas não necessariamente racista. Mas sua máscara de borrão de tinta – que originalmente representava sua percepção inabalável da verdade e justiça, certo e errado, como uma questão de preto no branco – agora representa a divisão entre branquitude e negritude.

Existem certos paralelos entre Rorschach, ou Walter Kovacs, e a representação de Phillips de Coringa. Ambos são homens brancos e com passado de pobreza, com sinais de doenças psiquiátricas, que rejeitam o mundo, são maltratados pela sociedade e então agem – de forma violenta e feroz – de acordo com a sua própria noção de justiça e retribuição. Ao final de seus respectivos arcos, ambos se tornam símbolos de movimentos que são desconectados de sua própria política.

Mas onde Coringa acredita que essas políticas são inconsequentes, algo secundário à caótica glória do estudo de personagem, Watchmen entende como indivíduos são inseparáveis da política de uma nação.

E claro, eles fazem isso também de duas formas diferentes: Watchmen tenta refletir o mundo através do olhar dos personagens, enquanto Coringa tenta fazer com que o olhar do protagonista seja o centro, enquanto o resto do mundo queima ao fundo.

E essa diferença é exatamente o que faz com que Coringa seja mais assustador e problemático.

O filme prende a audiência na perspectiva de um homem branco com o poder de incitar um movimento de massa sem calcular como essa visão – ainda que nascida da injustiça e marginalização – obscurece as pessoas já marginalizadas que são ainda mais prejudicadas por isso.

O destino de Sophie no filme é inconsequente. Ela só está lá para deixar claro o estado mental de Arthur, e uma escolha como essa reflete as próprias visões políticas do filme.

Na história de desenvolvimento da Irmã Noite (que eventualmente revela sua conexão com o flashback do primeiro episódio) e na posterior construção do mundo dessa história alternativa presente nos quadrinhos, a série reforça a necessidade de se entender todo o contexto de um trabalho que se posicionaria como relevante e adequado para o mundo real.

O mundo pode ser incorrigível, como dizem tanto Watchmen quanto Coringa, de acordo com os seus protagonistas homens e brancos. Mas onde Coringa mantém a câmera focada em Arthur, Watchmen abre a visão para uma tomada panorâmica.

“Aqui está uma versão pervertida de um Herói (Norte) Americano”, um mosaico de brutalidade e poder irrestrito das divindades autodenominadas, diz Watchmen. “E aqui está a (Norte)América que sofrerá como resultado”.


Texto traduzido e adaptado da Polygon.

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