Entendida como vilã, Vanya é, na verdade, uma das personagens mais vitimizadas.

Este artigo contém spoilers das temporadas 1 e 2 de The Umbrella Academy. Ele também discute abuso na infância, na família e no parceiro.

The Umbrella Academy é uma série da Netflix com algumas pequenas falhas (mas ainda assim maravilhosa de maratonar) sobre um grupo de sete irmãos com poderes sobrenaturais, adotados por um bilionário excêntrico chamado Reginald Hargreeves (Colm Feore), que fez experiências com suas habilidades especiais e os treina para serem super-heróis. Mas Reginald era um homem frio, reservado e abusivo, dando às crianças números designados em vez de nomes, e falhando – ou talvez se recusando – em formar quaisquer laços emocionais ou intimidade com qualquer uma delas. Quando Reginald morre, os irmãos voltam para casa onde cresceram e relutantemente se reencontram pela primeira vez em muitos anos, bem a tempo para um evento único: o fim do mundo.

O abuso de Reginald afetou cada criança de maneiras distintas, deixando todos elas com a incapacidade de formar relacionamentos saudáveis ​​quando adultos. Cada um dos sete tem uma resposta em comum por terem sido criados por um pai emocionalmente indisponível – desde alcóolatras até serem extremos manipuladores – com a maioria deles se desprezando ou se ressentindo de suas próprias existências desajustadas, ou ambos. Mas a criança mais marginalizada e menos abraçada neste grupo de desastres ambulantes desajustados é Vanya (Elliot Page).

Calma, pequena, mansa e com um poço profundo de emoções inexploradas, é Vanya quem acaba com o mundo. Como tal, Vanya é apresentada como uma vilã – e é entendida como tal por muitos fãs – mas, na verdade, ela é a que tem sido mais vitimada. O que a segunda temporada confirma é que o status de Vanya como vilã de Umbrella Academy não é uma questão de natureza, mas de criação – especificamente a falta dela.

Elliot Page como Vanya | Imagem: Netflix

Uma vez a mais desafiadora e obstinada do grupo, Vanya se tornou a mulher tímida e de fala mansa que conhecemos quando a série começa. Mesmo que os Hargreeves tenham passado suas vidas acreditando que Vanya é diferente e mais fraca que eles devido à sua falta de poderes, é revelado que ela é mais poderosa que todos eles juntos.

Seu pai suprimiu intencionalmente os poderes dela porque tinha medo do que ela seria capaz de fazer, e ele estava com medo dela porque percebeu que não seria capaz de controlá-la como faria com os outros. Ele não apenas a deixou impotente alimentando-a com remédios estabilizadores de humor desde que ela tinha apenas 4 anos de idade, mas também alistou sua irmã (Emmy Raver-Lampan) para ser uma cúmplice involuntária, forçando-a a usar suas habilidades de controle mental para efetivamente fazer Vanya esquecer que ela já teve qualquer poder.

Quando Vanya descobre esse segredo e também finalmente tem seus poderes liberados graças às ações de seu novo namorado (John Magaro), que acaba por ser um serial killer (falamos mais sobre isso abaixo), ela perde o controle. Incapaz de regular adequadamente suas emoções – que estão diretamente ligadas a seus poderes e ao modo como ela os usa – depois de anos de abuso familiar e drogas que alteram o humor, Vanya se vê incapaz de lidar com sua raiva legítima de maneira saudável e explode.

Mas não é isso que acaba com o mundo.

Em vez de responder Vanya com a compreensão e o apoio que ela precisava, em vez de reconhecer sua dor, seus irmãos acabam isolando-a novamente e deixando ela sem cuidados mais uma vez. As memórias de Vanya sendo maltratada por sua família continuam a direcionar sua raiva até que o drama da família Hargreeves culmina no apocalipse que nenhum deles é capaz de impedir.

Portanto, Vanya não consegue controlar suas emoções ou seus poderes por causa do abuso emocional e psicológico de seu pai. Enquanto isso, nenhum de seus irmãos têm as ferramentas para responder à situação com a inteligência emocional necessária, também devido às falhas do mesmo homem insensível. É claro para mim que a verdadeira causa do apocalipse é o abuso de Reginald Hargreeves e o trauma que isso causou.

Elliot Page como Vanya | Imagem: Netflix

Pessoas criadas em famílias emocionalmente imaturas e negligentes podem se tornar adultos deprimidos e emocionalmente indisponíveis que se sentem profundamente imperfeitos e sem valor. Consumidos por sentimentos de vergonha, eles frequentemente exibem raiva e agressão de maneiras prejudiciais. Sua autoestima é afetada para sempre pela incapacidade de seus pais de se conectar e apoiá-los em um nível emocional.

Reginald intencionalmente deixava Vanya fora de retratos de família e passeios, e até a desaprovava verbalmente: “Não há nada de especial em você.” O seu isolamento na infância é imposto, primeiro socialmente excluída pelo pai e depois pelos irmãos a exemplo dele. Cada pessoa ao seu redor era participante ou cúmplice de seu abuso, até mesmo um amigo próximo da família em quem ela pensava que podia confiar mais do que em qualquer pessoa. Mas Vanya não foi apenas negligenciada por sua família; ela foi rejeitada por eles.

Uma das principais respostas ao trauma de Vanya é bajular – se tornando o tipo de pessoa que precisa constantemente agradar as pessoas e muitas vezes que “se desculpam por existir” – em uma tentativa de evitar ser rejeitada novamente. Estudos têm mostrado que a dor emocional e psicológica da rejeição de amigos e familiares pode ser pior do que a dor física e muitas vezes resulta em retraimento social inicial e uma eventual erupção de raiva.

Com tudo isso levado em consideração, sabendo o que acontece às vítimas de abuso e como isso afeta suas vidas, as escolhas e comportamentos de Vanya fazem sentido. Até mesmo sua raiva explosiva.

Quanto ao namorado dela, o assassino em série: sua história de fundo também é trágica, marcada por abusos familiares de um tipo diferente que resultou em sua fixação na família Hargreeves e sua inclinação para o assassinato. Graças às circunstâncias que lhe permitem obter os segredos do falecido Reginald, ele sabe da verdade sobre os poderes de Vanya antes mesmo de conhecê-la, e é por isso que a tem como alvo.

O curto período de tempo que ela passa com ele – totalmente apaixonada por ele em menos de uma semana – serve como um modelo de como relacionamentos românticos emocionalmente abusivos muitas vezes tomam forma, e como o trauma de Vanya influencia sua suscetibilidade de ser ainda mais abusada quando adulta, como sua resposta bajuladora ao trauma também a torna facilmente codependente. Ela é manipulada, enganada e abusada emocionalmente por este namorado, por quem ela se apaixona perigosamente rápido porque ele oferece a ela o que ela nunca teve: ele a faz se sentir especial e desejada. Ele a apoia, mas, infelizmente, o faz com o motivo oculto de conduzi-la para a destruição.

Elliot Page como Vanya e John Magaro como Leonard Peabody | Imagem: Netflix

Uma comparação fácil de ser feita aqui é Jean Grey e o enredo de Fênix Negra dos quadrinhos e filmes dos X-Men. Mas, para mim, Vanya é mais parecida com Carrie White, no palco do baile depois que o balde de sangue de porco foi despejado em sua cabeça.

Nem Vanya nem Carrie – também uma sobrevivente de uma infância extremamente abusiva, de um tipo diferente – recebem as ferramentas para regular adequadamente suas emoções ou suas respostas a essas emoções, e essa falta de inteligência emocional significa que suas raivas se tornam extremamente perigosas para si mesmas e todos ao seu redor quando finalmente assumirem seus poderes e os liberarem.

Quando você cresce e nunca tem permissão pra ficar com raiva, a raiva se torna algo terrível de se segurar.

Ambas são essencialmente levadas a sentir culpa, nojo e vergonha dos seus próprios corpos, das suas próprias existências – Carrie por causa de seu corpo menstruado conforme ela crescia em sua feminilidade e maturidade sexual, e Vanya por causa de sua suposta “normalidade” e corpo natural justaposto às habilidades sobrenaturais de seus irmãos.

Como Vanya na primeira temporada, a história de Carrie termina em destruição total após uma vida inteira sendo ensinada a odiar seu corpo e a si mesma.

Sissy Spacek como Carrie White em Carrie (1976)

Quando as pessoas se envolvem com a história de Stephen King, elas não veem Carrie – a garota abusada, quieta e isolada e condenada ao ostracismo por seus colegas – como uma vilã nítida que não merece simpatia, mesmo quando ela parte em um crime de assassinato em massa. Carrie é entendida como uma vítima que foi levada a suas ações perversas. Então é bem interessante perceber que Vanya não seja vista da mesma forma por muitos fãs, apesar do programa claramente mostrar a depravação do abuso que ela sofreu, tanto da família quanto de um parceiro romântico.

Talvez a própria série seja um pouco culpada por isso. Vanya é construída como uma espécie de perversão do tropo do Escolhido. A segunda temporada apresenta outro cenário de prevenção do fim do mundo depois que os irmãos Hargreeves viajaram ao passado e tiveram que trabalhar juntos para impedir outro apocalipse para o qual Vanya, novamente, acabou sendo a causa. Um de seus irmãos lamenta que esse cenário simplesmente continue se repetindo indefinidamente, não importa o que façam, e a causa disso “sempre será” Vanya. Parece que Vanya foi escolhida, não para salvar o mundo, mas para acabar com ele. Eles descartam isso como uma inevitabilidade – o que efetivamente equivale a descartá-la – em vez de questionar o que podem fazer para mudar o resultado, como tentar ajudá-la em vez de tentar derrotá-la.

E, novamente, não é um ato intencional de vilania de Vanya que causa o apocalipse nesta nova linha do tempo. Como era antes, é como Vanya é maltratada e abusada por pessoas ao seu redor que precipita uma oportunidade para o evento apocalíptico ocorrer. Mas desta vez, eles são capazes de pará-lo. A única diferença desta vez é que alguém mostra sua gentileza e amor.

Só depois de obter o apoio e a afirmação de que precisa é que Vanya deixará de ser uma ameaça, deixará de ser a causa do fim do mundo.

Para mim, a história de Vanya parece pertencer a uma tendência maior de narrativas sobre as emoções das mulheres e seus corpos em mudança sendo vistos como muito poderosos e muito perigosos, de uma forma ou de outra, em vários gêneros: de Jean Grey se tornando a Fênix Negra e Carrie White ambientação seu baile em chamas, para Garota Infernal (2009) e Capitã Marvel (2018), para uma série de narrativas de possessão demoníaca, incluindo O Exorcista (1973). É também ao longo de uma linha semelhante de histórias em que o sofrimento emocional e a manipulação das mulheres estão no centro, como O Bebê de Rosemary (1968), Mãe! (2017), Hereditário (2017), Midsommar (2019) e, claro, seu ancestral, À Meia-luz (1944).

Empatia – ou a falta dela – desempenha um papel significativo em cada uma dessas histórias.

Uma das coisas que adoro no terror, na ficção científica e na fantasia é que os gêneros nos permitem enfrentar o trauma tanto quanto nos permitem viver impossibilidades como a viagem no tempo. O que eles também nos dão são oportunidades de interrogar nossa própria capacidade de empatia e compreensão pelas vítimas e sobreviventes daquele trauma, mesmo quando as histórias em que vivem tentam nos convencer de que são vilões.


Texto traduzido e adaptado do WearYourVoice.

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