20 anos depois de ‘Quinto Elemento’, Luc Besson ainda não sabe escrever mulheres

Apesar de brilhante em diversos aspectos, o cineasta francês Luc Besson tem sérias limitações para escrever mulheres. E parece estar piorando. Praticamente todos os seus filmes, como diretor ou roteirista, têm uma “personagem feminina forte” de destaque, mas quase todas parecem vazias e irreais. Sua visão do “misterioso universo feminino” é um amontoado de clichês sexualizados, idealizados e repetitivos, e isso chega ao ápice em Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, em cartaz nos cinemas.

No longa O Quinto Elemento (1997), Leeloo é uma mulher adulta extremamente sexualizada, mas tem “a mente de uma criança”. Ela pode ser a “chave do universo”, mas é vulnerável, ingênua e completamente dependente dos homens mais velhos que a rodeiam. Mesmo Lucy (2014), cuja protagonista é escrita para ser invencível, tem um arco narrativo que deixa muito a desejar. Ela começa como uma jovem ingênua, que é enganada pelo namorado e acaba consumindo uma droga que libera poderes especiais, daí começa a se transformar em um super humano. Ela nunca chega a ser uma mulher completa ou interessante, morfando de um estereótipo para outro.

Mathilda, de Leon: O Profissional (1994), interpretada por Natalie Portman aos 11 anos, talvez seja a melhor tentativa de Luc escrevendo mulheres, mas é bastante criticada até hoje por seu subtom sexual, tendo inclusive uma cena censurada, em que a garota pede que o matador tire sua virgindade, e diante da negativa insiste que ele divida a cama com ela. Mas Laureline (Cara Delevingne), de Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, é mais rasa que todas elas. E o problema já começa no título do longa, inspirado em um quadrinhos francês chamado Valerian & Laureline. A decisão de tirar o nome da heroína do título foi o primeiro de muitos erros do cineasta. O segundo deles talvez tenha sido introduzir a personagem no filme mostrando sua bunda em um biquíni antes mesmo de mostrar seu rosto.

O próprio Luc disse, em uma coletiva para divulgar o filme no Brasil, que a Laureline dos quadrinhos foi seu “primeiro amor”, quando ainda era uma criança e não tinha muito o que fazer além de ler quadrinhos e se imaginar casando com a personagem. O que parece plausível, levando em conta que no filme ela é representada como o sonho molhado de um adolescente.

Besson nos contou que gosta que Laureline seja “antiquada”, no sentido de querer se casar com um homem e ter filhos, o que não é um problema, ou mesmo antiquado. Muitas mulheres hoje em dia querem isso. O problema de Laureline é não ter uma história própria. Ela é o que as circunstâncias fazem dela. A cada cena ela encarna um clichê diferente, que mesmo com a atuação competente de Cara não deixa de parecer vazio e esquizofrênico. Em alguns momentos é independente, corajosa e determinada, em outros é fútil, insegura e ciumenta. Toda vez que ela mostra um pouco de personalidade isso acontece para impulsionar Valerian (Dane DeHaan) e servir ao arco emocional do colega.

A relação de Laureline com o protagonista é todo um outro vespeiro. Logo na primeira interação dos dois ele dá um golpe na moça, “de brincadeira”, deixando-a imobilizada. A garota devolve o ataque, mostrando que não é uma donzela indefesa, mas ele continua tentando demonstrar sua superioridade em momentos aleatórios através de força física. Escrito como um cafajeste dos anos 80, mas sem um décimo do carisma de Han Solo, Valerian insiste em paquerar a colega, mesmo diante de suas negativas, e sem conseguir sequer um encontro decide pedi-la em casamento.

HQ original: Valerian e Laureline
HQ original: Valerian e Laureline

Dane DeHaan é sim parte do problema, em parte por causa de suas limitações, mas é muito mais vítima das circunstâncias do que qualquer outra coisa. O ator, que é jovem e aparenta ser ainda mais jovem, foi um erro grave na escolha de elenco. Escrito como um macho alfa que quer se impor o tempo todo, o personagem TALVEZ fosse salvo se interpretado por um ator mais carismático e com mais autonomia. Isso, aliado ao fato de que ele não tem nenhuma química com Cara, como par romântico ou parceiro, era a receita para o desastre desde o dia um.

A breve participação de Rihanna como Bubble é o ponto alto do filme, principalmente porque seu personagem é muito mais interessante do que os dois protagonistas, o que prova que tempo de tela não é justificativa para roteiros ruins. Mas apesar de sua boa atuação, a personagem da rainha do pop não está livre de críticas. Besson chegou a dizer que escreveu Bubble como uma “Cleópatra do futuro”, mas entregou apenas uma escrava sexual que é sacrificada em prol de personagens muito menos carismáticos.

Besson sempre quis adaptar Valerian & Laureline para os cinemas, e O Quinto Elemento tem clara inspiração nos quadrinhos, mas ele disse que não o fez por não ter tecnologia boa o suficiente e também por não estar pronto. Depois dos avanços tecnológicos de Avatar (2008), ele finalmente se convenceu de que era hora, mas aparentemente as ideias que ele teve na adolescência foram todas mantidas para Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, muitas das quais não pertencem a 2017. É triste ver como o diretor fala do longa como se fosse sua obra prima, quando é provavelmente seu pior trabalho.


Texto originalmente publicado no Storia Brasil.

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