A série termina não com um final feliz, mas sim com um novo começo 

De um lado, riqueza e abundância: comida, tecnologia, conforto, medicina avançada e vegetação fértil. Do outro, miséria e escassez. Duas realidades que coexistem de forma desigual entre a população. A riqueza e suas mordomias ficam concentradas na mão de poucos, 3% dos habitantes, enquanto os outros 97% lutam para sobreviver. 

Esse poderia ser o começo de uma discussão sobre a vida em muitos países, inclusive (ou principalmente) o nosso. E de certa forma é. Apesar de esta divisão não ser verdadeira, mas sim  um cenário estabelecido lá em 2016 por Pedro Aguilera para criar a série 3%, é por meio desse universo distópico e suas alegorias que são expostos os problemas gritante da desigualdade social, injustiça e da meritocracia. 

Falar sobre esses tópicos requer uma discussão  ampla, e a série soube dividir isso muito bem entre as temporadas, apresentando pontos e argumentos pertinentes ao problema, de uma forma clara e bem definida.

Como uma colcha de retalhos, cada temporada foi adicionando uma problemática diferente que se somava à crítica original. E for fim, agora na quarta temporada trouxe um desfecho digno e bem costurado tanto para trama quanto para os personagens.

Muito foi percorrido ao longo desses anos e 3% cresceu exponencialmente durante essa jornada, tanto em roteiro, quanto em figurino, cenários e montagem. Talvez não seja reconhecida, principalmente aqui no Brasil, como deveria (e merecia), mas fez milhares de fãs pelo mundo e com certeza vai deixar saudade. 

[ contém spoilers] 

A primeira temporada, originada do curta feito em 2011 [ ainda disponivel no youtube] , foca em mostrar o processo e questões ligadas ao comportamento humano quando deparado com  situações extremas de competição e luta por sobrevivência: Violência, trapaça, traição são só algumas das coisas que eles são condicionados a fazer para vencer.

É possível ter uma  primeira visão sobre a desigualdade entre essas duas realidades e levantar a discussão sobre o sistema meritocrático, que claramente é  injusto, para decidir quem merece ir para o Maralto junto com os 3% e quem deve continuar no Continente.

Diferente de realidades como Jogos Vorazes, por exemplo, onde as pessoas são obrigadas a participar dos jogos, em 3%, todos parecem construir suas vidas  em função do processo que as levará ao Maralto, com devoção ao casal fundador e com esperança de fazer parte desse lugar. Não é como se as pessoas aceitassem aquilo por medo, elas realmente acreditam que essa estrutura social é justa. 

Sempre foi vendida a ideia do Maralto como um lugar melhor a se alcançar e uma validação deles como pessoas apenas quando parte desse grupo. Portanto, selecionar os 3% é imprescindível.   

Mas é claro, existe um grupo que resiste a essa condição e que luta para destruir o processo e a divisão injusta entre os 97% e os 3%.

A Causa, representa a antítese das ideias do casal fundador, não só na ideologia de acreditar que todos são iguais sem precisar de méritos, mas no comportamento deles como um grupo: enquanto um preza o individualismo e a competição a qualquer custo, na causa não há lugar para isso, todos devem se unir em prol de um bem maior. 

Michele (Bianca Camparalto) surge como um símbolo dessa revolução e traz uma alternativa para tudo isso, ela consegue mostrar que é sim possível viver em igualdade. A Concha, que é o ponto da terceira temporada, é uma comunidade que deu certo. Lá todos têm as mesmas chances e condições de vida e  tudo é dividido igualmente. Não existe, claro, o luxo que é apresentado no Maralto, mas isso é uma parte da questão, enquanto existir o conceito do luxo não haverá igualdade, porque para que um possa esbanjar algo, outros perderão o acesso a itens fundamentais de sobrevivência. 

Não seria justo porém,  existir a Concha, e um grupo de pessoas vivendo em harmonia, enquanto existisse o  Maralto e o Continente , enquanto existisse essa desigualdade, senão eles nada mais seriam que uma nova versão daquilo que tanto abominam. Sendo assim, nessa última temporada o objetivo é botar os planos apresentado na 3º em prática e tentar acabar com o processo, o mar alto e a elite definitivamente. 

Logo no começo, eles conseguem uma oportunidade de entrar no Maralto e executar o plano. Enquanto metade do grupo vai pra lá, Michele e Xavier (Fernado Rubro) ficam na concha para ajudar no que for necessário pelo lado de fora. 

A construção que divide a trama entre os personagens, traz um ritmo muito agradável e cria um suspense com o desenvolvimento das histórias, que vão se cruzando ao longo dos episódios. Como eles estão separados durante a execução do plano, há um efeito quase “Spielgeriano” de criar aquela tensão  onde tudo parece dar errado até o  momento final. 

A roteiro então aproveita dessa quebra de narrativas para abordar novamente a questão da ilusão  vendida do Maralto como um lugar perfeito,  porque apesar do conforto, do visual deslumbrante e da sensação de liberdade que o lugar transmite, as pessoas são obrigadas a viver felizes o tempo tempo, a sorrir, conversar, como se precisassem manter uma boa taxa de aceitação dentro daquela sociedade. É usada a  historia da Marcela (Greice Costa), para relembrar o passado e o impacto que essas imposições trouxeram à sua familia, culminando no encontro com seu filho  Marco (Rafael Lozano). A reunião dos Álvares é um bom momento da série, bem dirigido e com bons diálogos. 

Apesar de pecar no mesmos pontos de sempre, com soluções fáceis demais para alguns dos conflitos estabelecidos na trama, e diálogos por vezes engessados e artificiais,3% acerta demais na construção do roteiro e de personagens, é interessante ver como todos vão amadurecendo na série e como possuem várias nuances, mas sempre condizente com o que foi apresentado sobre eles.

Glória (Cynthia Senek) é um bom exemplo disso, suas escolhas podem causar muita revolta nessa temporada  por serem mesquinhas e atrapalharem o coletivo, mas que são fiéis às características da personagem: sempre otimista mas ingênua e irrealista.

Rafael (Rodolfo Valente), Joana (Vaneza Oliveira), continuam sendo o destaque da série, personagens extremamente complexos e que tiveram um papel importante para a conclusão de história.

Ainda que incomode essas escolhas simples, a série tem uma força de nos mostrar a nossa própria realidade de uma maneira bem interessante, que não pode ser ignorada e termina com uma mensagem de esperança e liberdade.

Uma distopia que aos poucos encontra seu caminho utópico e que seguindo a letra de Elis Regina, que ecoa na voz de Belchiore durante a última cena fez história não só na ficção mas fora dela também. 

… uma nova mudança, em breve vai acontecer

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