Representatividade não se resume ao Mês do Orgulho.

O texto abaixo é a tradução de um relato de James Whitbrook para a página Gizmodo. James Whitbrook é editor de notícias da página io9, onde você pode encontrá-lo dando spoilers pela manhã e extravasando seus profundos sentimentos pela saga Star Wars.


Entrando no mais recente lançamento da Bioware, de sua amada saga de ficção-científica Mass Effect, em sua Legendary Edition, eu sabia que queria reviver a jornada do jogo de uma forma que tentei e falhei quando era um jovem adolescente: fazer meu Comandante Shepard ser um orgulhoso homem gay. Fazer isso seria uma recompensa por si só, mas também um lembrete do quão atrasadas estão, por vezes, as nossas supostas visões progressistas do futuro.

Apesar de Mass Effect ter sido elogiado no passado por seus arcos românticos, e em particular por permitir que a versão feminina da Comandante Shepard procurasse várias parceiras femininas pela série – a trilogia original, em particular – levou muito mais tempo para que a série aceitasse opções de relacionamento para homens e garotos LGBT que quisessem ver a si mesmos no herói de ação espacial. Somente em Mass Effect 3 a Bioware adicionou duas opções de romance LGBT para Shepards masculinos: Kaidan Alenko, um membro da equipe no primeiro e no terceiro jogo, se tornou uma opção bissexual tanto para jogadores com avatar masculino quanto feminino, depois de já ser uma opção de romance para Shepards femininas no primeiro jogo; e Steve Cortez, um novo personagem que se tornou disponível apenas para Shepards masculinos em no terceiro jogo.

Em quase uma década do lançamento de Mass Effect 3, os desenvolvedores da Bioware disseram que várias opções de romance LGBT foram removidas durante o desenvolvimento dos jogos, graças ao medo de uma repercussão negativa. Mas por outro lado, os fãs foram capazes de utilizar mods para revelar trechos de diálogo não utilizados, construindo mais opções de romance LGBT para Shepard em toda a série. Mas a Legendary Edition, mirando ser o mais fiel aos jogos originais o possível – uma falha, na minha opinião – não adicionou nenhuma nova opção de romance, LGBT ou não, em seu novo relançamento. E então, aqui estava meu traseiro gay, confrontado por um desafio: ignorar a forma como Mass Effect te empurra tentando forçar um relacionamento com uma (ou mais) de suas companheiras de tripulação nos dois primeiros jogos, até que eu pudesse buscar Kaidan como uma opção de romance em Mass Effect 3. O que aconteceu em seguida foi um exercício tanto de extrema felicidade atrasada quanto um lembrete duro sobre o quão mal recepcionado eu me sentia jogando uma série que amava, mas que desrespeitava minha experiência e desejos enquanto um homem LGBT (detalhe: eu ainda amo o jogo, apesar de suas falhas se tornarem ainda mais aparentes depois de revisitá-lo pelas quase 200 horas que joguei desde o lançamento da Legendary Edition). Jogar Mass Effect como uma história em que o Comandante Shepard é explicitamente um homem gay, é definitivamente não apenas jogar o jogo da espera, mas também lutar contra uma série de constantes ataques heterossexuais que são direcionados contra todos os seus sentidos.

Não importa para onde você olhe no mundo de Mass Effect, mesmo fora das histórias de romance, o olhar de um homem heterossexual permeia toda a sua interação com a série. Temos os corpos giratórios e seminus das dançarinas Asari em bares como o Chora’s Den ou o Afterlife em Mass Effect 1 e 2 – dançarinas que você é convidado a ficar e admirar como “objetos” interativos. Sem mencionar a descrição complemente sem noção do relacionamento da humanidade com as espécies alienígenas da galáxia, de acordo com Shepard no primeiro jogo: “Nós temos oceanos, belas mulheres e essa emoção chamada amor”. Sexualidade, e especificamente a sexualidade heteronormativa está intrinsecamente ligada à construção da galáxia de Mass Effect, e focar na perspectiva íntima dos membros de sua tripulação destaca essa visão ainda mais.

No primeiro jogo, a primeira conversa profunda que você pode ter com a cientista Asari Liara T’Soni – que você recruta para ajudar a derrotar a mãe dela, que foi enfeitiçada pelo vilão principal, Saren – é uma análise detalhada sobre como sua raça mono-gênero feminina é capaz de fazer sexo com humanos e outras espécies alienígenas (e realmente anseia por isso). Outra conversa que você pode ter com outra opção de romance, a soldado humana Ashley Williams, envolve ela perguntando ao comandante se ele acharia divertido se ela provocasse a tímida Liara sobre a sexualidade Asari. Quando chega o momento no jogo em que os Shepards masculinos devem “escolher” entre ir atrás de Liara ou Ashley romanticamente, a conversa é apresentada com a certeza de que você deve estar interessado em uma das duas opções. Afinal, você é um homem, e essas duas mulheres atraentes entendem que as suas conversas anteriores (mesmo sem nenhuma temática romântica) são a prova clara de que você está interessado nelas. E se você rejeitar uma delas, bem, é porque certamente está interessado pela outra, certo?

…certo?

Mass Effect 2, que amplia grandemente a sua tripulação – e por consequência, suas possibilidades de relacionamento – é menos grosseiro com relação a isso, mas uma vez que meus olhos se abriram para o quão heteronormativa a série poderia ser com jogadores masculinos, ficou difícil não perceber a influência do romance e sexualidades no relacionamento de Shepard com os membros da tripulação. Arcos inteiros de personagens terminavam abruptamente se você decidisse não seguir a trilha romântica com personagens femininas como a engenheira Quariana Tali’Zorah, ou com a condenada Jack, como se o jogo entendesse que não há mais valor nas conversas com elas, uma vez que não existe potencial para um envolvimento romântico. O tom do jogo, com uma atmosfera mais sombria e madura em comparação com o primeiro, leva a história ao submundo da galáxia, habitado por criminosos, mercenários e, é claro, diversas trabalhadoras sexuais do sexo feminino para completar.

Chegar em Mass Effect 3, e saber que eu finalmente poderia utilizar esses sistemas que a série repetidamente tentou forçar sobre mim por dois jogos, fora dos meus termos, me causou certo alívio, mas ainda manchado por uma sensação de frustração. Pelo menos agora eu poderia gravar meu pedacinho LGBT dessa história como eu mesmo – mesmo que o mundo fosse, em grande parte, amplamente dominado por relacionamentos heteronormativos. À luz de uma crise existencial causada pelo potencial fim do universo chegando para os seus personagens em Mass Effect 3, romances se tornam um subtexto importante durante o capítulo final da trilogia. Um desafio à desgraça iminente ao decidir ficar ao lado das pessoas que você ama ao enfrentar o massacre tecnológico supremo representado pelos vilões da série, os Reapers. Os personagens próximos a você, do lagarto espacial dos meus sonhos, Garrus Vakarian, passando pela já mencionada Tali, ou pelo piloto Jeff “Joker” Moreau, e até mesmo a inteligência artificial da nave, EDI (anteriormente um holograma sem corpo, mas que ganha um corpo feminino e sexualizado, afinal estamos falando de Mass Effect), ficam juntos durante todo o jogo. E agora, meu Shepard, gay até aquele momento apenas na minha interpretação interna do personagem, também seria gay textualmente.

Se envolver romanticamente com Kaidan como um Shepard homem, em Mass Effect 3, causou uma sensação de reconhecimento metatextual sobre o tanto que demorou para a Bioware incluir opções de romance LGBT para personagens masculinos na série. Embora haja alguns flertes menores aqui e ali no ato de abertura do jogo em que você pode se envolver, um relacionamento com Kaidan é eventualmente estabelecido em um almoço amigável no centro intergaláctico de civilização de Mass Effect que é a estação espacial de Citadel. No começo, Kaidan e Shepard refletem sobre os altos e baixos de seu estranho relacionamento durante a série – de aliados no primeiro jogo, à desconfiança no segundo jogo, em que Kaidan se nega a trabalhar ao seu lado para se unir a uma organização humanocêntrica chamada Cerberus, por boa parte do jogo. Mas resolvidos dentro de um contexto apocalíptico, e vendo seus amigos e colegas na Normandy se unindo, a reflexão de Kaidan começa como interna e íntima. E se, pergunta ele em alto e bom som para você, parte da estranheza do relacionamento de vocês vier da incapacidade de articular como ele realmente se sentia? E se a sua carreira na Aliança, como herói da galáxia, o distraiu da possibilidade de ter uma chance de se estabelecer com alguém que ele realmente se importava? E se já fosse tarde demais pra tudo isso, em face do fim do mundo chegando? O que significaria se ele não deixasse claro a forma que se sentia a respeito do homem que ele se importava tanto, apesar de seu passado conturbado?

Foi uma cena que ressoou fortemente comigo, ainda mais além do metatexto, porque a sua abordagem mostrava que Mass Effect estava tentando compensar o tempo perdido com esse arco de romance, quando comparado aos outros – que só teve permissão para existir nesse único jogo em vez de fazer parte das outras obras. E talvez porque, finalmente, eu poderia responder a ele da mesma forma, como eu esperava e havia desejado por todos esses anos ao jogar o game original pela primeira vez. Eu pude dizer que ele não estava sozinho em seus sentimentos. Que o meu Shepard tinha os mesmos sentimentos, e que queria passar os seus últimos dias no universo que eles conheciam com o homem que ele amava. Aconteceu algo catártico com a chegada desse momento, que contrastava com a fricção das lentes heteronormativas de Mass Effect, e que me atingiu emocionalmente de uma forma muito mais profunda do que eu esperava.

Em um universo que fazia de tudo para me empurrar em direção heteronormativa, eu me senti muito bem e recompensado por todas as vezes que disse não ao poder dizer sim quando Kaidan me perguntou se os sentimentos eram mútuos. Finalmente, após tanta espera, todo aquele desligamento consciente com um aspecto da série tão fundamental para Mass Effect quanto seu combate armado no estilo RPG ou quanto as decisões baseadas em diálogos, pode ser deixado de lado. Eu finalmente pude me conectar ao Comandante Shepard, que deveria ser uma representação do jogador, como um verdadeiro reflexo de mim mesmo. Pode ter levado muitas horas de trocas de tiros e diálogos pela galáxia de Mass Effect, mas valeu toda a espera.


Texto traduzido e adaptado do Gizmodo. Imagem: Bioware/EA

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