Dia onze de outubro foi o Dia Internacional das Meninas, mas o assunto teve pouca relevância no cenário midiático do Brasil. De qualquer forma, a celebração desta data marca os progressos realizados na promoção dos direitos das meninas e mulheres adolescentes e reconhece a necessidade de se ampliar as estratégias para eliminar as desigualdades de gênero em todo o mundo. Essas desigualdades incluem o acesso e o direito à educação, à nutrição, aos direitos legais e a cuidados médicos, assim como a proteção contra discriminação, violência e casamento infantil forçado.

Engana-se quem pensa ser esta uma luta desnecessária para a realidade brasileira. Inclusive circularam recentemente na internet algumas notícias a respeito de uma pesquisa que afirma que o Brasil está entre os piores países do mundo para se ser uma menina. Nela, o Brasil aparece na 102ª posição dos 144 países pesquisados, ficando atrás de todos seus vizinhos da América do Sul e de países em desenvolvimento, como Índia, Costa Rica, Timor Leste, Colômbia e Gana. Para compilar o ranking, o relatório leva em consideração problemas que comprometem o desenvolvimento e independência das meninas, como casamento na infância e adolescência, gravidez precoce, mortalidade materna, representatividade feminina no parlamento e acesso à educação básica. Segundo o relatório da pesquisa, o Brasil apresenta números elevados em todos os problemas, com ênfase na baixa representatividade feminina na política, casamento infantil e baixo índice de conclusão do ensino médio. Tais indicadores são barreiras para o desenvolvimento socioeconômico, o bem-estar e a independência econômica das mulheres.

Além disso, segundo dados da ONU, a América Latina e o Caribe são as únicas regiões do mundo onde as taxas de gravidez na adolescência estão estagnadas ou aumentaram, apesar das taxas totais de fecundidade estarem em declínio. Atualmente, quase uma em cada cinco crianças nasce de mães adolescentes na região, com idade entre 15 e 19 anos; no Brasil, um em cada cinco nascimentos ocorre com mães com idade entre 10 e 19 anos.

Apesar de tudo, hoje, o Estadão postou um vídeo sobre uma empresa, chamada “Escola de Princesas”, que vem criando filiais em alguns locais do país. De acordo o Estadão, a proposta da instituição é ensinar meninas de 4 a 15 anos os valores de uma princesa – como humildade, solidariedade e bondade – e como arrumar o cabelo e se maquiar até regras de etiqueta, de culinária e como organizar a casa. No entanto, a própria matéria no site já fala sobre algumas ambiguidades da posição da escola, afirmando, por exemplo, que “a proposta de criar ‘princesas independentes’ ainda se confunde com o resgate de certos costumes antigos” e que “toda a atmosfera cor-de-rosa e a feminilidade exaltada pelo local remetem a um estereótipo feminino que vem sendo tão combatido”. Ademais, apesar da fundadora da escola dizer que tinha “expectativa [de] que [as alunas] sejam grandes mulheres, grandes empresárias” e que uma garota “pode ser mãe, ela pode ter a carreira dela, ela pode ser dona de casa, ela pode ser o que ela quiser”, o texto volta várias vezes em afirmativas que provam o contrário: nota-se um tom conservador que na verdade tenta sujeitar meninas a deveres e valores que não escolhem gênero – com a desculpa mais do que ultrapassada de que “tem coisa que é da mulher”. O próprio título do vídeo gera estranhamento: Fábrica de Princesas.

Desnecessário até aqui seria mencionar que a dita escola recebeu várias críticas, inclusive sobre o fato dela não aceitar matrículas de meninos, apesar da fundadora insistir em dizer que “defendia o ideal de direitos igualitários entre os gêneros”. E mesmo com as demais tentativas da fundadora de rebater as críticas, afirmando que as pessoas que reclamam não conhecem de fato a proposta da instituição, seu discurso na notícia ficou visivelmente contraditório. A começar pelo mote da escola, que é “O sonho de toda menina é se tornar uma princesa”. Será mesmo?

Mas, apesar da clara incoerência desse discurso (bastante sexista, por assim dizer), nosso post aqui não é, nem de longe, um post para criticar princesas. Muito pelo contrário. Amamos e postamos frequentemente matérias que envolvem, por exemplo, as princesas da Disney. Acreditamos que elas ensinam sim muitas coisas positivas para as crianças e, acima de tudo, acreditamos que garotas podem sim querer ser princesas, o que aliás é um direito. E inclusive concordamos com a Josie Conti e a Marcela Bianco, duas excelentes psicólogas, que explicaram muitíssimo bem no Conti Outra que fantasiar e imaginar faz parte do funcionamento da psique e tem efeito regulador para o desenvolvimento da personalidade e, na verdade, quando falamos dos contos de fadas e dos mitos não devemos entendê-los apenas do ponto de vista pessoal ou como preditores de modelos de comportamento a ser ou não seguidos, mas sim compreender que eles são construções simbólicas que falam do desenvolvimento da consciência – e por isso seus personagens são geralmente esquemáticos e possuem relação com uma época e cultura específica.

Porém, Josie e Marcela também afirmaram que talvez a questão mais importante de uma criança que passa por sua fase princesa seja que ela o faça dentro da fase certa.  O problema acontece quando, por algum motivo, papéis estereotipados ficam fixados até a idade adulta mantendo as mesmas características extremadas. É nessa fase que a fantasia pode ser tornar prejudicial se os componentes de realidade não tiverem sido suficientemente assimilados para mostrar que nem todo mundo é só bom ou só mau, de que para ser feliz não é necessário um príncipe (até porque ele não existe) e que a princesa perfeita dos contos de fadas poderia ser até chata e entediante. Neste caso, de heroína, a menina-mulher pode passar a ser alguém que perdeu a espontaneidade, a criatividade e a autonomia, tornando-se o espelho do desejo alheio.

Nem a Disney passa mais mensagens como essas.

Isso sem mencionar que pessoas que acreditam piamente nessa história de “educação de princesas” devem tentar compreender que isso não tem a ver com o fantasiar natural da infância, mas sim com o desejo projetivo da mãe sobre a filha dentro dos seus próprios conceitos de mundo e de comportamento social. É importante que a criança tenha seu momento princesa sim, da mesma forma que é importante ela ser uma bruxa, rainha má, guerreira ou até o Perna Longa. Para as autoras, a fantasia só existe porque para crianças não existem limites e nem censuras.

Portanto, as duas psicólogas aconselham que não se force uma menina a seguir esses preceitos, mas deixe ela ser uma princesa se essa atitude surgir espontaneamente. Que inclusive, a partir disso, será possível para os pais perceberem que as personagens que atraem a criança se modificam com a idade, mostrando que ela precisa de diferentes papeis para abarcar a complexidade da construção da sua personalidade. Neste caso, cabe à própria mãe se questionar sobre por que sua filha precisa ser uma princesa e o que isto tem a ver com o modelo de feminino que regeu sua personalidade até este ponto da sua vida. Pode ser que essa mãe também tenha uma heroína aprisionada, como a mãe da personagem Merida, de Valente, que precisou torna-se uma ursa para liberar seu lado instintivo e assim reconciliar-se com a própria filha, que desejava seguir um caminho espontâneo, diferente e livre.

meridamom2

Ou seja, não há problema algum em querer ser uma princesa, desde que essa não seja a única escolha que uma garota tenha (o que, obviamente, faz com que isso deixe de ser caracterizado como escolha). E é aí que está a parte complicada do assunto: o meio cinematográfico passou décadas mostrando sempre o mesmo estereótipo de princesa perfeita para as nossas garotas. Somente nos últimos anos surgiram algumas iniciativas de quebra desse estereótipo, com outras princesas e seus comportamentos bastante diversos do tipo frágil, passiva e dependente – como as protagonistas de Frozen, Mulan, O Corcunda de Notre-Dame, Valente, Shrek e várias outras. Todas elas trazem outros aspectos do feminino atualizados para os conflitos e necessidades mais adequados à nossa época e especialmente ao lugar que a mulher ocupa na sociedade atual. Personagens que criam um novo ponto de vista: uma princesa arqueira que não quer ter como objetivo final de vida ter que se casar, uma garota comum que salva a pátria e o Imperador após não se encaixar nas normativas para seu gênero, uma garota que quer poder abrir seu próprio restaurante algum dia, uma princesa que além de ter suas responsabilidades com seu reino também é uma inteligentíssima cientista,  ou mesmo princesas e garotas como as do Studio Ghibli (que são minhas preferidas pelos motivos explicados na imagem):

heroínas do ghibli
muito amor envolvido <3

A questão é: como pode alguém que sempre esteve olhando para o fundo de uma caverna querer aprender a voar pelo céu? Se queremos garotas independentes, devemos dar a elas mais exemplos de que tipo de pessoas ser e não padronizá-las num modelo único de comportamento. Devemos mostrar os variados tipos de princesas elas podem se tornar, ao invés de formatá-las como princesas perfeitas. Até porque não existem pessoas iguais, quem dirá perfeitas. As individualidades das crianças devem ser respeitadas e cada uma delas deve ter uma variedade de opções para seguir: a Princesa Léia, a Princesa Merida, a Princesa Jujuba, a Princesa Tiana, a Princesa Mononoke ou a Princesa Nausicaä, por exemplo. Ou até mesmo não ser uma princesa!

wonder-woman

Queremos, mais do que apenas escolas para transformar meninas em princesas, escolas que transformem meninas em astronautas, engenheiras, presidentes ou o que bem entenderem. Escolas que ensinem que ser diferente não faz de você menos que ninguém, e que não seguir as normas pré-estabelecidas por uma sociedade androcêntrica não te impede de ser uma princesa.

Principalmente se a mensagem que você quer passar é essa <3

Mas principalmente escolas e instituições que de fato contribuam para o desenvolvimento socioeconômico, o bem-estar e a independência econômica das mulheres. Até porque “princesa” e “príncipe” são meros títulos que não apagam a existência de uma pessoa, de um ser humano completo, capaz de ter suas próprias escolhas e sonhos.

Por fim, deixarei um pouco da sabedoria Watsoniana com vocês e muitos beijos de luz <3

emma-watson

Girls are not property. They have the right to determine their own destiny. – UNICEF

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