O filme que estreou no Brasil no dia 15 de fevereiro é forte, arrepiante e empoderador.

Em uma época em que as minorias estão começando a ganhar voz e conquistar protagonismo, ainda que pouco e lentamente, o filme do Pantera Negra tornou-se muito aguardado quando foi anunciado lá em 2005. Desde então, assistimos à participação do super-herói no filme Capitão América: Guerra Civil, e logo aprovamos o trabalho de Chadwick Boseman (Message from the King, Marshall) como T’Challa. Mas será que ele sustentaria um filme também? Ou melhor, será que um filme do Pantera Negra, um personagem pouco conhecido por aqueles que não acompanham as HQs, seria bem feito?

pantera negra poster

O Pantera Negra surgiu no Universo Marvel em 1966 no título Fantastic Four #52, e, apesar da sua importância, não teve tanto destaque como Capitão América ou Homem de Ferro, ou os X-Men, até alguns anos atrás, mesmo sendo poderoso o bastante para fazer parte do seleto grupo dos Illuminati.

Fantastic_Four_Vol_1_52 black panther

Para dificultar a situação, poucos filmes de super-heróis protagonizados por negros são feitos. Temos a trilogia Blade, Spawn, Hancock e até Mulher-Gato para contar história, e não são tão marcantes assim – às vezes são até absurdamente ruins -, logo, a fome e a necessidade de que eles existam é enorme. E apesar da Marvel ter sabido desenvolver muito bem personagens e grupos de heróis desconhecidos do seu universo (olar, Guardiões da Galáxia! Turobein, Homem-Formiga?), nada disso garantiria a qualidade do rei de Wakanda. Afinal, temática muito mais delicada e a probabilidade de dar ruim era enorme.

Mas a resposta para dar certo foi usar uma fórmula simples e lógica, ou seja, colocar Ryan Coogler (Creed), negro, para dirigir e participar do roteiro de uma história protagonizada por negros. Ninguém vai entender melhor a problemática nem teria o ponto de vista mais acurado do que ele. Principalmente quando se adiciona muitas pesquisas e referências. E rolou maravilhosamente bem.

pantera negra elenco

O filme

Tudo começa numa continuação direta aos acontecimentos de Capitão América: Guerra Civil. T’Chaka (John Kani/Atandwa Kani), o governador da “pobre” nação de Wakanda, é morto num ataque e resta a T’Challa (Chadwick Boseman), seu filho e sucessor direto, tomar seu lugar de direito, tanto politicamente quanto reafirmar seu papel como Pantera Negra. Mas, para isso, ele terá de se provar perante as cinco outras tribos que compõem o reino de Wakanda, no desafio do Pantera Negra.

Pantera negra Wakanda

Logo no início, são mostradas duas linhas norteadoras do filme: tradição e misticismo. As tribos possuem regras que deverão ser respeitadas independente do que ocorra. É isso que mantem a nação até hoje viva, que sempre funcionou. É com ela que a cultura de Wakanda pode ser passada de gerações em gerações, sem nenhum tipo de interferência externa, para o bem, ou para o mal.

E essa tradição é mostrada por fatores culturais como as roupas, com cada tribo tendo sua diversidade respeitada e mantida, a arte, estampada em todos os lugares, a língua, que foi mantida ao colocarem todo o elenco de Wakanda falando com sotaque de “africano” – especificamente, o ator Bouseman já comentou em entrevistas que seu sotaque é oriundo da língua Xhosa, um dos idiomas oficiais da África do Sul – mostrando que Wakanda não foi vítima dos colonizadores, a música – com uma excelente trilha sonora selecionada pelo rapper Kendrick Lamar – e em cada detalhe.

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Uma outra linha guia é a tecnologia que se desdobra na física aplicada no filme, representada pelo raro, precioso e poderoso metal Vibranium. Foi ele que possibilitou o crescimento tecnológico do país. A partir daí, as cenas se tornam deslumbrantes ao casar elementos tradicionais e místicos com tecnologia de ponta. E ressaltando que que quem detém o maior e mais avançado poderio tecnológico na Terra, é Wakanda. Não é Tony Stark, nem a S.H.I.E.L.D., nem ninguém.

O resultado é que Wakanda é uma Utopia. E, sim, quem tá fora de lá vive num mundo Distópico.

wakanda

Esta apresentação e construção é extremamente importante para o desenvolvimento do filme, pois é o alicerce das motivações dos personagens. De todos.

A junção da tecnologia com o forte misticismo resultou no Pantera Negra, o avatar da justiça, e protetor do país. Seu espírito é passado de geração em geração mediante um ritual de luta corpo a corpo entre os melhores guerreiros de cada tribo chamado Desafio do Pantera Negra. As cenas de lutas que seguem são de tirar o fôlego, tanto pela vasta utilização de diferentes artes marciais, sua boa execução, como pela força ritualística, e fotografia. Cada pequeno elemento importa para criar um ambiente e narrativa imersivos.

pantera negra sinal

Tendo suas devidas apresentações feitas, o mote inicial do filme é a vingança, tanto pela morte do rei T’Chaka como do vilão Ulysses Klaue (Andy Serkis), que 20 anos atrás roubou vibranium de Wakanda e vendeu para o mercado negro, causando diversos resultados trágicos. Ao ser encontrado novamente pelos wakandanos, uma equipe composta por T’Challa, Nakia (Lupita Nyong’o – Star Wars – O Último Jedi, 12 Anos de Escravidão) e Okoye (Danai Gurira – The Walking Dead) – chefe da guarda imperial –  é incumbida de trazê-lo de volta para que pague por seus crimes. A partir daí, muitas cenas de ação continuam a se desenrolar, uma mais incrível que a outra, e com a característica de tensão, ao ponto de deixar o espectador na ponta da cadeira, e beleza.

Tal tensão acompanha o restante da narrativa, pois Pantera Negra discute assuntos sérios e reais. Nada ali é gratuito.

Análise

Muito se fala nas interwebz afora da “fórmula Marvel”, que é usada em muitos filmes arrasa-quarteirão e serve para abranger um público maior. Rola em Pantera Negra. O roteiro é previsível e usa artifícios clichês, mas isso, de forma alguma, tira o brilho e força da película. Pois o que realmente importa é como é feito o filme. Seu roteiro é bem amarrado e todos os elementos apresentados são explicados.

Além disso, segue também uma regra de obras de super-heróis/fantasia, que é a dicotomia entre o bem e o mal, uma luta entre as duas forças e a lição de moral: o bem tem que prevalecer.

pantera negra desafio

Só que o longa é inteligente, pois traz reflexão, ainda que não seja profunda, mas também não é rasa. O que é o bem? O que é o certo e errado? Nem sempre o que é melhor para um, é bom para o outro. Ou outros. Daí, é levantada uma discussão que muito tem reverberado nos dias atuais. É a visão de que cada um tem a sua noção de bem-estar. E mesmo que as pessoas tenham como meta o bem e a justiça, nem sempre seu caminho trilhado é o ideal ou justo e seguro para todos.

[spoiler]O mais legal é que tanto mocinho quanto vilão são avaliados por estes questionamentos, que termina reverberando em nós. Sim, é um desses filmes que a gente se pega pensando que o vilão não é de todo do mal e até torce um pouquinho por ele – até ele tomar decisões extremistas, o que ajuda no posicionamento do público. Ufa![/spoiler]

Além da dicotomia, Pantera Negra também toca em assuntos políticos atuais e históricos que permeiam toda a questão racista da supremacia branca. Mas, apesar do tema pesado, a reflexão e crítica – que vai para todos os lugares e é feita de forma orgânica e magistral – são feitas para empoderar o negro trazendo exemplos positivos de igualdade. E isso tem seu primeiro sinal exatamente na escolha da produção do filme, com o diretor negro e maior parte do elenco ser também negro, mas sem ser pegada Blaxploitation. É simplesmente um excelente filme de super-heróis, inteligente, divertido, intrigante, com uma fotografia linda, cenários incríveis, e que vale cada dinheirinho gasto no cinema.

Mundo real

Em uma das cenas iniciais, é mostrada uma luta travada contra sequestradores de mulheres, fazendo uma referência clara às meninas de Chibok que foram sequestradas pelo Boko Haram, uma organização fundamentalista islâmica de métodos terroristas, na Nigéria. Primeiro soco é desferido e mostra quão próximo da realidade o filme se encontra.

A discussão do racismo se volta desde a colonização violenta realizada pelos europeus, que destruiu reinados africanos para tornar os negros seus escravos – e no filme é dita uma das frases mais fortes possíveis relacionado ao tema – tanto na Europa como na América, até toda a história deles desde então nesses territórios. Como foram enfraquecidos, torturados, colocados em guetos com drogas e marginalizados ao ponto de dissolver ao máximo sua cultura e orgulho. Esfrega na cara de todos o “olha a merda que vocês fizeram. Quem que vai limpar agora?”

As mulheres de Wakanda

Não querendo de forma alguma tirar o protagonismo negro do filme, também é interessante pontuar que é um filme feminista. Existem quatro personagens femininas centrais no filme muito fortes, todas com personalidades bem marcadas, que não são rasas nem estereotipadas, cada uma com seu jeito de falar, com sua expressão corporal e comportamento diverso, e que são ouvidas e tratadas como iguais. Isso enriqueceu a trama ao mostrar mais um diferencial de Wakanda, na qual uma nação pode evoluir muito mais quando todos são vistos como iguais.

guarda real pantera negra

Um dos resultados que destaco, é uma outra conotação para o termo “dama de vermelho”, que sempre remete a mulheres sensuais e perigosas, que usam do sexo para conquistar o que querem. Aqui, a personagem Okoye é uma mulher guerreira, prática, com excelente senso de comando, mas que tem espaço para relacionamentos, ou seja, também tem um lado carinhoso e amoroso, ao se envolver com um dos personagens. Ela esbanja a beleza da mulher negra, sambando na cara da sociedade ao mostrar que nossos padrões de beleza são deveras obsoletos, sem se apoiar nisso ou se tornar uma característica definidora. Ela simplesmente é tudo isso. Além de protagonizar cenas de lutas incríveis, tanto com armaduras como com vestidos de gala, e um dos momentos de maior impacto quando uma batalha explode.

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Superioridade tecnológica

Naves espaciais? Canhões lasers? Uso da força cinética para explodir coisas? Sim, tudo isso rola em Pantera Negra e é uma crítica velada ao entendimento primitivo e racista que existia na Europa, e foi perpetuado até os dias de hoje, infelizmente, de que negros não teriam condições de se desenvolver tecnologicamente, pois não teriam capacidade intelectual para tal. Isso existe nas HQs e deixou um toque modernoso ao filme.

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O laboratório de Shuri (Letita Wright – O Passageiro, Dr. Who), irmã mais nova de T’Challa, possui uma grande sorte de equipamentos bélicos, de alta tecnologia e poder de destruição de massa, e que poderiam dar ruim se caíssem na mão errada. E, novamente, mais uma questão pontuada no filme: o chefe do laboratório é uma mulher negra. Ela apresenta tecnologias mais legais do que qualquer outro filme da Marvel, mesmo Guardiões da Galáxia, pois Wakanda fica na Terra, logo, não teve nenhuma interferência alienígena para justificar um avanço aquém do existente. Não é magia, é tecnologia.

TRECHO COM SPOILER 

Se não quer spoiler, só pula ele, depois tem mais!

Este filme tem um dos melhores vilões até então apresentado nos filmes da Marvel (calma, Thanos tá chegando, eu sei). Mas o que o torna tão bom é o fato da sua motivação ser tão real. Erik Killmonger (Michael B. Jordan – Creed, Quarteto Fantástico) tem uma origem que funciona como elemento surpresa e faz questionar exatamente o que é certo, errado, a tradição – que às vezes é ilógica – e, acima de tudo, a posição de Wakanda perante o mundo. Por que ela se esconde se tem tanto para oferecer e pode ajudar aqueles que precisam. Todos se perguntam isso e cria o desconforto necessário para desenrolar tantas reações e tramas durante o filme. E Killmonger, muito bem interpretado por Jordan, é tão humano que, ao final, realmente se torce para que tanto ele seja mais compreendido, como possa também compreender o outro. Adoraria vê-lo compondo a nação de Wakanda. Mas, então, sua motivação é novamente trazia à tona com a frase que define, infelizmente, anos e anos de racismo e abuso de poder “Jogue o meu corpo no oceano. Como todos os meus ancestrais que pularam dos barcos porque sabiam que a morte era melhor do que escravidão.”

Fim do spoiler

Pantera Negra é um filme necessário para a cultura pop e a Marvel acertou em cheio em todos os aspectos. Ele vai agradar do adulto à criança e irá mudar muitas perspectivas. E não é uma questão de ser “politicamente correto” ou “lacrador”, mas por ser excelente, por ter um elenco que esbanja carisma, um protagonista que se admira, efeitos especiais incríveis, uma trilha sonora maravilhosa e por acrescentar tanto a esse universo que já acompanhamos há 10 anos. Ele poderia ser mais uma peça no quebra-cabeça, mas é o ponto de virada que mostra porque super-heróis encantam tanto o público e foram e sempre serão representativos.

Wakanda para Sempre!

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