Afirmar que Pantera Negra é “político demais” é uma crítica racista e um insulto às narrativas de super-heróis!

O texto a seguir contém SPOILERS sobre os filmes Pantera Negra e Thor: Ragnarok, e é uma tradução de artigo de Sherronda J. Brown para a página Wear Your Voice.

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No mês da história negra de 2018, nós vimos o lançamento do altamente antecipado e longamente esperado filme Pantera Negra, e o imenso blockbuster recebeu aclamação da crítica especializada por conta do que Ryan Coogler e sua equipe foram capazes de alcançar com a história. Agora  é um filme premiado, que quebrou recordes, fez história e superou todas as expectativas. E apesar de todos os elogios e dos incríveis números de bilheteria atingidos, o filme foi imensamente criticado por um tipo específico de pessoas, especialmente fãs do Universo Cinematográfico Marvel, por ser “excessivamente político”, sendo atacado por “trazer política para o mundo dos super-heróis”. O diretor e cineasta Terry Gilliam (de Monty Python), recentemente se referiu ao filme como “absolutamente porcaria”, por sua visão de uma civilização superior e tecnologicamente avançada na África, intocada pela feiura da violência colonizadora branca, e por “dar a jovens crianças negras a ideia de que isso é algo a se acreditar”. Ele ainda fez comentários sobre o “politicamente correto” e a “identidade política” do filme, dizendo que isso faz seu “sangue ferver”.

E esse não é o único exemplo de narrativa sobre heróis negros a receber esse tipo de reação. Watchmen, da HBO, irritou muita gente e também foi acusado de ser “muito político” e preocupado demais com “identidades políticas”. Parece que esses reclamões ou esqueceram ou nunca souberam que a fonte principal de material para a série, a graphic novel de Alan Moore publicada em 1986, é um comentário sobre a política dos Estados Unidos na era Reagan e sobre dinâmica do poder. Essas críticas sobre Pantera Negra e Watchmen são absolutamente injustas, firmadas em nada além de um racismo pobremente disfarçado. Elas também ignoram voluntariamente as histórias incrivelmente políticas no centro da narrativa de quase todos super-heróis, se não em todas. O gênero é naturalmente político e isso é tão explícito em vários casos, com a sua contínua reprodução de vilões e anti-heróis como os “outros” – seja racial, étnica, ideológica, cultural, nacional, religiosamente ou de qualquer outra forma.

Histórias de super-heróis são políticas pra caramba, mas as pessoas só ficam desconfortáveis quando têm de enfrentar o racismo e o supremacismo branco de frente.

Dentro do próprio MCU, a politização de diversas histórias de heróis é abundantemente visível. Os filmes do Homem de Ferro são mergulhados no libertarianismo de Tony Stark. Eles falam sobre a defesa cega de guerras, sobre a indústria bélica e seus lucros com a violência, sobre a complexidade da indústria militar, sobre a falta de apoio e recursos para os veteranos de guerra após seu retorno para casa, sobre as possibilidades de combate tecnológico e drones armados, os perigos do uso de inteligência artificial, terrorismo na era da informação, e claro, sobre a “paz mundial privatizada” de Tony Stark. Enquanto isso, Homem-Aranha: De volta ao Lar, apontado por alguns como uma alegoria da “classe média trabalhadora branca” em apoio a Trump, questiona as desigualdades socioeconômicas e de classes, e o tipo específico de violência – como vender armas em áreas de interior, onde vivem predominantemente pessoas pobres e negras, tentando sobreviver – e como isso é endêmico para a manutenção da riqueza em um sistema capitalista.

A natureza política do MCU talvez seja ainda mais palpável nos filmes do Capitão América, cujo centro da história é o fascismo e o nazismo, guerras, liberdade, corrupção, regras imperialistas, conflitos globais e relações internacionais, e um mundo pós-Vestfália (tratado de soberania apenas sobre o próprio território). Tudo isso coloca o Capitão América, o queridinho dos fãs, como um verdadeiro “Guerreiro da Justiça Social” e antifascista, que não hesitaria em socar a cara de pessoas como Richard Spencer e Donald Trump, declarando que a lei é injusta e é nosso dever moral descumprir leis desse tipo.

Dito isso, o melhor filme da Marvel a se considerar paralelamente à política de Pantera Negra é Thor: Ragnarok, uma indecente pérola saturada em nostalgia retrô, que toca “Immigrant Song” de Led Zeppelin durante as cenas de maior ação.

Essas duas inesperadas companheiras são histórias quase perfeitamente paralelas – não apenas em sua narrativa, mas nos temas e política – explorando o luto, família, vingança, orientação de ancestrais, retribuição, redenção, revolução, imperialismo, colonialismo, cultura nativa e revisionismo histórico.

Ambos fazem muito e fazem isso muito bem.

Nossos heróis estão ambos lidando com perdas recentes de sua figura paterna, e agora têm que lidar com uma responsabilidade inesperada, determinando em que direções suas terras natais seguirão após as mortes de seus respectivos líderes. T’Challa e Thor se lançam em jornadas heroicas, cada um de sua forma, mas as suas histórias possuem claras similaridades, uma vez que contam sobre as famílias reais, as mortes dos monarcas e os inesperado, mas importantes retornos de familiares desconhecidos. Cada um desses elementos centrais das histórias integram as experiências de transformação dos heróis em seu centro.

A morte do Rei T’Chaka é inconfundivelmente politizada, e um precedente para Capitão América: Guerra Civil, e por fim o que permite que o abandonado N’Jadaka – conhecido como Killmonger – possa tentar tomar o trono de Wakanda como o filho do príncipe assassinado, N’Jobu. Como afirma Everett Ross, a morte de um monarca é um momento fortuito para se desestabilizar um país, algo que N’Jadaka foi bem treinado para fazer como agente da CIA. Comparativamente, a morte de Odin traz o início do Ragnarok, o apocalipse da mitologia nórdica, permitindo que Hela, deusa da morte e irmã de Thor, possa retornar a Asgard e trazer com ela a ruína profetizada.

N’Jadaka e Hela surgem como os membros da família cuja existência era de conhecimento dos antigos reis, mas que havia sido mantida em segredo para preservá-los e seus meios de vida. Eles retornam apenas após a morte dos reis, para dentro de seu direito, disputarem o seu lugar no trono, tendo esperado em suas respectivas prisões por anos afastados até o momento oportuno. Subitamente, T’Challa e Thor são forçados a lidar com a revelação de segredos de família com imensas repercussões e devem pagar pelos pecados de seus pais.

Pantera Negra e Thor: Ragnarok são ambos filmes dedicados a questionar a história, os fantasmas por ela criados, e o que acontece quando os monstros criados por nós retornam para nos assombrar.

Com ele, N’Jadaka trouxe fantasmas da violência de supremacistas brancos e de colonizadores, a rota de escravos transatlântica, séculos de opressão e a marginalização contínua dos afro-americanos, racismo global, e a dor de ter sido abandonado por T’Chaka, e em sua mente, por toda Wakanda. O ressurgimento de Hela traz as questões do imperialismo de Odin, colonialismo, e a sua dedicação a apagar a verdade da história, a fim de se manter no trono e garantir que seu filho iria herdá-lo, enquanto sua filha e herdeira permaneceria presa no inferno por mais de 1500 anos. Os dois são criados para ser vilões (talvez mais Hela do que N’Jadaka), mas seria mais honesto tratá-los como anti-heróis.

Em meio a esses desafios, T’Challa e Thor visitam um tipo de “plano ancestral”, para conversar e receber discernimento de seus falecidos pais. Com isso, eles se tornam capazes de usar seu próprio conhecimento e instinto para ao final, vencer seus desafiantes. Mas são seus irmãos, Shuri e Loki, que acabam sendo os responsáveis por garantir o funcionamento de seus planos. Essas narrativas focam não apenas o conhecimento ancestral, mas também a importância da família – e como ela pode ser tanto algo positivo como fator de complicação.

Há diversas outras similaridades.

OkoyeValquíria, ambas são membros de forças de elite formadas apenas por mulheres guerreiras (e a sexualidade de ambas, infelizmente, não foi explorada em nenhum dos filmes). Elas são parte importante da trama, ainda que demonstrem atitudes completamente diferentes com relação às circunstâncias – com Okoye mantendo sua lealdade profunda ao trono e tradição de Wakanda. Enquanto Valquíria inicialmente se recusa a ajudar Thor, por preferir não fazer nada além de andar com Hulk, assistir batalhas de gladiadores e coletar troféus, além de se automedicar com álcool para lidar com os sintomas de sua Síndrome de Estresse Pós Traumático.

Naki e Heimdall são, respectivamente, Moisés de Wakanda e Harriet Tubman de Asgard, ambos indispensáveis para os heróis. Nakia leva a Rainha Ramonda e a Princesa Shuri para um lugar seguro após N’Jadaka tomar o trono, e ela faz isso após se infiltrar no jardim da erva de coração para recuperar um dos corações brilhantes, que será parte da salvação da vida e essencial para a vitória de T’Challa. Como defensor e vigilante eterno de Asgard, Heimdall assume o papel de seu salvador também, levando asgardianos para as montanhas em segredo, a fim de protegê-los da ira de Hela, até que Thor e os outros cheguem.

Além disso tudo, e ainda mais importante, é o fato de que ambas as narrativas exploram a “verdade” além da história, e fazem isso oferecendo perspectivas daqueles que foram anteriormente apagados, N’Jadaka e Hela – duas pessoas injustiçadas com raízes e famílias imperiais em Wakanda e Asgard, que foram mantidos em segredo até a morte dos reis responsáveis por isso, e que estão justificadamente irritados por isso.

Ao final, tanto Pantera Negra quanto Thor: Ragnarok podem ser lidos como antirrevisionistas e anticolonialistas. Eu os vejo como partes perfeitamente encaixadas e apropriadas para a épica terceira fase do MCU, construída em direção ao enfrentamento do Titan totalitarista, Thanos, em Vingadores: Guerra Infinita – que não deixa de ser uma narrativa abertamente política acerca do fascismo, traumas, os mitos da superpopulação e escassez. Conversas sociais maiores sobre os Estados Unidos e seu lugar no mundo no atual clima social e político são contínuos questionamentos ao imperialismo, colonialismo, cultura indígena e revisionismo histórico, o que torna essas histórias de super-heróis ainda mais atuais, culturalmente significativas e relevantes para a década de 2010 e 2020.

Pensando nas diversas similaridades entre os dois filmes é interessante (leia-se racista pra caramba) que Thor: Ragnarok não tenha recebido críticas por ser “político demais”, ou uma “porcaria” pouco realista por seu mundo “tecno-mágico” de Asgard, mergulhado em maravilhas arquitetônicas.

Afirmar que Pantera Negra (e/ou Watchmen) é desnecessariamente político não é apenas uma crítica fundamentada em racismo, mas um insulto às narrativas de super-heróis como um todo. Elas são políticas, e devem ser, de maneira intencional ou não.

Histórias de super-heróis são uma amálgama de ficção científica distópica e terror, ambos gêneros que consistentemente respondem diretamente aos medos e ansiedades sociais de seu tempo.

Histórias de super-heróis destacam verdades sobre nossa sociedade que as classes dominantes preferiam que as pessoas não soubessem. Dessa forma, elas são uma acusação, e nos oferecem maneiras de questionar nossa própria política do mundo real.

Já passou da hora de se reconhecer e aceitar o que elas têm a oferecer além dos amáveis personagens, memoráveis sequências de ação e material para fanfics. Precisamos ser honestos sobre elas e seu lugar no mundo, apontando de forma clara o racismo e as críticas injustas direcionadas às narrativas de heróis, quando elas não passam de ódio a pessoas negras.


Texto traduzido e adaptado do WearYourVoice.

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