Não vamos esquecer isso.

De sua insistência em afirmar que jamais foi influenciado (sequer indiretamente) por movimentos de arte, à exclusão de elementos culturais judaicos de seus trabalhos, o diretor Tim Burton já fez e falou diversas coisas questionáveis em sua carreira. Porém, seus recentes comentários sobre pessoas pretas e marrons não se “adequarem à sua estética”, foram talvez os mais diretos e revoltantes sobre o tema. Em uma entrevista para a Bustle, concedida em 2016, ele agiu como se a luta por diversidade fosse algo novo, e tentou utilizar o movimento Blaxploitation dos anos 1970 (um gênero criado APESAR de pessoas como Burton) como um escudo para sua escolha monorracial de elencos.

Tradução: [Eu questionei Tim Burton sobre a falta de diversidade em O Lar das Crianças Peculiares (2016). Essa foi a sua resposta:

“Hoje em dia, as pessoas têm falado mais sobre isso.”, disse ele sobre a diversidade nas telas. “Mas coisas chamam por coisas, ou não. Eu lembro quando era criança assistindo The Brady Bunch e eles começaram a ficar todos politicamente corretos, tipo, OK, vamos ter uma criança asiática e um negro – eu costumava me sentir mais ofendido com isso do que só – Eu cresci assistindo filmes de Blaxploitation, certo? E eu dizia ‘Isto é ótimo’. Eu não ficava tipo, OK, devia ter mais pessoas brancas nesses filmes.”]

Algo que machuca mais do que esse comentário é o fato de que muitas pessoas negras que tentaram entrar para essa “estética alternativa” (talvez sob os nomes “emo” ou “gótico”) em sua juventude ouviram versões dessa justificativa vindo de amigos, que definitivamente deram uma de filme de Tim Burton em sua própria noção estética. Do outro lado do espectro, está a noção comunitária de que o trabalho de Tim Burton é só mais uma “merda para gente branca”. Esse é o resultado dos seus comentários.

“Mas e quanto a [um personagem não-branco aleatório e isolado]?”

Muitos defendem seus quadrinhos com uma enxurrada de comentários igualmente (se não ainda mais) racistas, enquanto outros tentam utilizar esse momento para defender o seu emprego “pontual” de personagens negros. Vamos dar uma olhada nisso e ampliar para pessoas não brancas que têm alguma visibilidade. Os personagens coadjuvantes que vêm à mente são Billy Dee Williams em Batman (1989), Deep Roy em A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005) e Nico Parker, em Dumbo (2019). Roy interpreta um exército de servos de pele marrom e Parker sequer teria feito parte do elenco se sua pele fosse mais escura ou seus pais menos famosos (sim, ela é filha do cineasta Ol Parker e da atriz Thandiwe Newton). E em vez de ter como objetivo ser mais inclusivo no filme do Homem Morcego, Burton queria utilizar a etnia de Williams para dramatizar os dois lados de Harvey Dent, e considerando as suas palavras quando o tema é etnia, é ótimo pensar que a sequência do filme foi descartada.

Os únicos papéis principais ocupados por pessoas negras são o antagonista interpretado por Samuel L. Jackson em O Lar das Crianças Peculiares (2016) e Ken Page, que participou da dublagem de O Estranho Mundo de Jack (1993). Page interpretou um personagem nomeado a partir de um insulto racial (Oogie Boogey), inspirado no cantor Cab Calloway, e com uma personalidade que se resumia em jazz, apostas e comer insetos. Oogie Boogey também é uma das primeiras referências gordofóbicas do diretor, que costuma retratar personagens obesos como gananciosos e pouco confiáveis.

A roteirista Caroline Thompson afirmou para a Insider em 2020 que reconhecia os problemas com o personagem de Page na época, mas que Burton afirmou que ela estava sendo “sensível demais”, algo que ecoa perfeitamente com suas declarações sobre obras “politicamente corretas”.

Analisando todos os 26 filmes em que ele é creditado como diretor, produtor ou escritor (acumulando as duas primeiras funções em quase todos), esses são todos os seus personagens não brancos. As pessoas que fazem piadas sobre ele “sempre escalar o mesmo elenco” ignoram como esse mesmo elenco é composto por cerca de quatro pessoas, e apenas quatro pessoas não fazem um filme.

A Nova Wandinha

Agora, poucos anos depois (e após diversos fracassos, devemos ressaltar), Burton está de volta e estreando na direção para televisão com a versão da Netflix de Wandinha (de A Família Addams, falamos mais disso aqui no site), série estrelada por diversos personagens latinos. Deixando Burton de lado, essa é uma reafirmação da presença latina de seu pai, Goméz. O personagem original era uma caricatura espanhola, mas a maior parte das adaptações para as telonas apresentou atores porto-riquenhos (como Raul Julia nos filmes) e guatemaltecas/cubanos (como Oscar Isaac, no filme animado). Agora, Jenny Ortega será a protagonista Wandinha, enquanto seu pai será interpretado pelo icônico Luis Guzmán.

Por conta dos posicionamentos e manifestações de Burton, sabemos claramente como ele pensa, e não é difícil imaginar que ele possa utilizar essa obra como escudoassim como a Netflix, que tem sido criticada por cancelar a maioria de suas séries com elenco de origem latina. Além disso, o trailer já nos deixa perceber como Ortega está com a pele clareada (provavelmente utilizando maquiagem). É difícil falar com certeza sobre o que está sendo feito, mas devemos olhar para isso com precaução, porque Burton já deixou claro seu pensamento sobre pessoas não brancas e “origens étnicas” nos seus projetos:

Apesar de Wandinha vir de uma família multiétnica (que é uma homenagem às intenções originais sobre como a família foi imaginada originalmente), é de se imaginar que Burton faça como em todos os seus outros trabalhos, tornando a escrita e atuação o mais eurocêntrica o possível. Afinal, é parte de “sua assinatura” e ele já fez isso com muitas histórias no passado.

As pessoas podem melhorar, mas dobrar a quantidade de pessoas não brancas em um projeto não é o suficiente para mostrar que você progrediu como pessoa, e me faz imaginar que você vai continuar tokenizando seus atores em vez de vê-los como seus pares criativos.

Para um serviço de streaming que é tão amiguinho do teste do saco de papel (além de outras coisas tão problemáticas quanto), isso não deveria ser surpreendente, ainda que desapontador. Mas como fã de Ortega, Ricci e da personagem como um todo, eu quero que a série seja boa. E quero até que Burton melhore e deixe para trás as historinhas sobre azarões e estranhos, feitas por e para pessoas brancas. Mesmo que ele consiga superar seu racismo, xenofobia e gordofobia, é difícil imaginar que ele tenha amplitude suficiente para fazer algo que visualmente não pareça ter sido feito pela sua mão, e tampouco contar uma história com um elenco diverso.


Texto traduzido e adaptado do The Mary Sue.

Leia mais sobre A Família Addams aqui no site.

Compartilhe: