Ou como os jogos cometem “aniquilação simbólica”.

Quando os desenvolvedores do novo jogo de Harry Potter, Hogwarts Legacy, anunciaram que iriam incluir personagens transgênero no jogo, isso pode ter parecido um grande passo em direção à representatividade em uma indústria muito atrasada (especialmente se você não soube dos problemas referentes à J.K. Rowling).

Ao redor do mundo, já temos mais de 2 bilhões e meio de pessoas que jogam em aparelhos eletrônicos. Os jogos podem realmente mudar a forma como essas pessoas veem e interagem com o mundo, e também a forma como tratam as outras pessoas. Existe uma sólida base de pesquisas que demonstram que ao não ver certos grupos de pessoas nos meios de entretenimento que você interage, inclusive em jogos, você acaba sendo influenciado a acreditar que essas pessoas não são importantes – esse fenômeno é conhecido como “aniquilação simbólica”.

Por isso, a representação de grupos minoritários é importante, ainda que estejamos falando em jogos de fantasia.

A decisão dos desenvolvedores de Hogwarts Legacy foi interpretada por boa parte da comunidade como um potencial aceno ao público que se afastou da franquia por conta dos comentários e atitudes transfóbicas de J.K. Rowling, autora da obra original.

Mas nem todo tipo de representação é igual. O que foi revelado até o momento é que os jogadores poderão escolher a voz, o dormitório (feminino ou masculino) e o tipo de corpo dos personagens. Além disso, a aparência e voz do personagem do jogador não precisarão “combinar” com os padrões estabelecidos de masculino e feminino.

Mas ainda que essas tentativas de diversificação nos jogos e ampliação de representatividade sejam positivas, isso é muito diferente de incluir personagens transgênero de uma forma significativa, que de fato seria uma representatividade significativa.

A representatividade “opcional”

Quando falamos sobre representação de pessoas transgênero, o novo jogo de Harry Potter deixa para o jogador o “trabalho pesado”. Personagens transgênero são opcionais. E isso ressoa com o que a designer de jogos Anna Anthropy chama de “o botão gay”. A ideia é que esse tipo de representação pode estar ali ou não, e que o jogador poderá escolher se estará.

Ao tornar a representação opcional e não algo presente por padrão, os designers de jogos vendem representatividade ao mesmo tempo em que não precisam criar ou mesmo tratar como algo normal a presença de personagens transgênero com nuances em seus jogos.

Olhando a questão por uma perspectiva mais geral dos jogos, nós podemos encontrar representatividade LGBT em alguns jogos – mas normalmente é algo que está escondido. Uma ferramenta comum para esconder essas características é colocá-las por trás de sequências de diálogos opcionais. Por exemplo, em The Witcher 3, temos uma missão secundária em que o jogador é acompanhado por um caçador. O jogador pode fazer uma série de perguntas ao caçador sobre a fera que estão caçando, e se escolher a sequência correta, o caçador revela ser gay. E isso também aponta para outro problema recorrente nos jogos: apenas personagens menores são realmente LGBT.

Se você piscar, apertar um botão errado ou não exaurir as opções de diálogo, você nunca encontrará a representatividade. Então, a única forma de descobrir algo sobre a identidade de um personagem é através de uma série de diálogos opcionais, e isso não é uma forma adequada de representar essas identidades.

É verdade, a representação nos jogos está melhorando. Os jogos não estão mais se baseando apenas em representações estereotipadas e os personagens LGBT estão aparecendo com mais frequência. Porém, ainda falta muito, mas muito chão a ser percorrido. E representações “opcionais” não são uma mudança tão significativa assim.

Má reação a personagens LGBT

As decisões sobre incluir ou excluir personagens de uma certa identidade caem completamente sobre os ombros das equipes de desenvolvimento dos jogos. A pesquisadora de comunicação e mídias digitais, Andrea Brathwaite analisou como os jogadores reagiram à inclusão de uma personagem canonicamente lésbica no jogo World of Warcraft, e sua análise demonstrou como a reação dos jogadores foi absurdamente negativa quanto à sexualidade nos fóruns online do jogo.

Isso também aconteceu em publicações mais recentes, quando o jogo adicionou seu primeiro personagem transgênero, em 2020. Pelagos é um personagem com quem os jogadores podem falar, apesar de não ser obrigatório descobrir que ele é transgênero. A revelação, porém, fez com que fossem despejados tópicos tóxicos sobre ele nos fóruns online. E isso é algo muito comum nas análises de jogos eletrônicos com personagens LGBT, com as críticas sendo direcionadas especificamente a esses personagens.

Obviamente existe uma hesitação por parte dos desenvolvedores em incluir personagens LGBT em seus jogos, devido ao potencial de toxicidade por parte de seus fandoms. Mas enquanto as empresas de videogames e roteiristas continuarem a evitar tornar essa representação explícita, o ciclo apenas continuará se repetindo. E podemos afirmar com tranquilidade que hoje, boa parte do público está recebendo muito bem os personagens LGBT. Inclusive, nos fóruns de WoW, onde uma considerável parte dos jogadores tem defendido Pelagos de forma veemente, inclusive exigindo respeito ao uso correto dos pronomes para se referir a ele.


Post traduzido e adaptado do The Converse.

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