É muito difícil não simpatizar com vilões gostosos sofrendo, ok?

A série Loki, da Marvel, amolece e reabilita o seu personagem principal, brincando com o generalizado carinho dos fãs pelo inteligente e sagaz semideus. Mas ainda que ele seja um dos personagens preferidos dos fãs, Loki não é uma pessoa muito boa. Ele entrou para o MCU em 2011, no filme Thor, como vilão e agente do caos, planejando tomar Asgard e se livrar do seu irmão, o herói titular do filme. Ele era tratado como um tirano que invocou alienígenas para destruir Nova York. Ele serviu ao ditador genocida, Thanos, e controlou a mente de incontáveis pessoas para atingir os seus objetivos de dominação. E ainda assim, uma parte significativa de sua base de fãs acham Loki extremamente atraente. Sua popularidade só aumentou na última década, fazendo com que ele ganhasse uma série própria.

E a controvérsia enfrentada pelos fãs de personagens como Loki normalmente aponta para o quão moralmente errado é se sentir atraído por um potencial tirano egocêntrico. Esses fãs, predominantemente mulheres ou pessoas LGBTs, são frequentemente alvos de ataques online, por supostamente agirem de forma apologética com os vilões que acham atraentes. E apesar de partes do fandom sempre apontarem que Loki era um personagem empático e mal compreendido desde o início, outras pessoas não estão nem aí se o personagem sequer buscou redenção. Loki trabalhou para se reabilitar após um profundo mergulho em sua psicologia deturpada, o que ajudou a contextualizar suas ações e torná-lo mais “mole”, mas as melhores partes que o tornam atraente continuam todas lá. Sua imprevisibilidade e falta de escrúpulos fazem parte de seu apelo – e esse é o caso de vários vilões nos últimos séculos.

O debate sobre ser ok ou não sentir atração por vilões sempre se apresentou como “novo”, motivado por afirmações de pessoas que dizem sentir atração por, digamos, Thanos ou pelo Rei da Noite, de Game of Thrones. Mas essa discussão é tão antiga quanto a própria literatura, e não mudou muito no último século. E pureza moral continua não sendo um pré-requisito para sentir tesão.

As reclamações sobre tesão pelo vilão datam há mais de um século

Em 1921, o ídolo das matinês, Rudolph Valentino se tornou a razão de preocupação dos homens brancos, e, portanto, da cultura mainsteam estadunidense. A fonte de sua ascensão meteórica na carreira foi um filme intitulado The Sheik, adaptação de um romance best-seller da época. Valentino estrelava o filme como o personagem árabe Ahmed, que sequestra e tenta seduzir agressivamente a personagem Diana, a mocinha da história. Eventualmente, sua ascendência inglesa é revelada, e os personagens se apaixonam e fogem para o deserto. No romance, Ahmed estupra Diana, algo que o público sabia na época devido à popularidade do livro. O filme evita cenas gráficas, mas Ahmed ameaça, faz bico e ri de forma cruel da dor de Diana. Existe a sugestão de que ele se forçou para cima dela até que ela “se apaixonasse” por ele.

E apesar da revelação “surpreendente” da branquitude aceitável do vilão, e da confusão racial gerada por um ator italiano interpretando um homem árabe, Valentino foi caracterizado como um perigoso e violento “amante latino”.

Essa imagem de seu charme e ameaça combinados foi descrita como desviante, mas foi exatamente isso que atraiu as fãs. A fantasia sadomasoquista de The Sheik se tornou uma forma de liberação sexual feminina, formando um novo tipo de apelo masculino, graças aos traços andróginos de Valentino. A resistência surgiu exatamente do julgamento de homens que se ressentiram por causa da atratividade de um estrangeiro polido e gentil.

Enquanto os protagonistas de romances contemporâneos a Valentino eram em sua maioria homens brancos, cujos personagens podiam ter uma complexidade negada a Valentino, este era tratado apenas como objeto sexual para que as mulheres pudessem se dedicar a sonhos mais fantásticos. Ele era uma figura misteriosa e proibida, que só existia para satisfazer as mulheres, não importando se elas queriam ou resistiam a isso. O culto erótico a Valentino desafiou a imagem da figura romântica masculina da época. E os vilões tem sido representados e recebidos da mesma maneira no século que se sucedeu. Eles nunca perderam sua popularidade como símbolos sexuais.

Rhett Butler, em …E o Vento Levou (1939), era um patife nos livros, mas um atrevido protagonista interpretado por um dos atores mais populares de sua época, Clark Gable. Rhett é um homem instável e violento, e o senso latente de imprevisibilidade e perigo o tornavam empolgante e atraente. A fantasia de Rhett Butler era uma forma segura de explorar relacionamentos perigosos, uma em que a noção de ser romanticamente destruída foi levada longe demais. Conforme David Denby escrevia a sua história do filme para o The New Yorker, por décadas o relacionamento entre Scarlett e Rhett “continuou sendo objeto de especulação e debate – uma obsessão da cultura pop apresentada como modelo para os sonhos românticos e arrependimentos de uma nação”. O público pode não desejar um parceiro abusivo e dominador na vida real, mas sempre existiu uma certa emoção em se imaginar nas mãos de um amante tão obsessivo e controlador.

Incontáveis vilões desde então chamaram a atenção, especialmente de mulheres e fãs queer, e com isso mergulharam em controvérsias. Do sedutor Rei Goblin Jareth, em Labirinto – A Magia do Tempo (1986) ao obsessivo e controlador Edward Cullen, em Crepúsculo, diversos são os exemplos. Na última década, fãs de Kylo Ren, da mais atual trilogia de Star Wars, causaram fúria na internet, assim como o romance entre o General Kirigan e Alina, em Sombra e Ossos, cuja repercussão não foi muito menor.

E no final das contas, não parece que muita coisa mudou com relação à guerra cultural iniciada por The Sheik, cem anos atrás.

O tesão pelo vilão é inevitável, a não ser que…

Se os criadores de filmes e séries para televisão quiserem que os fãs parem de sentir atração pelos seus vilões, eles vão precisar fazer pelo menos três coisas:

  1. Pare de contratar atores gostosos para os papéis
  2. Pare de fazer os vilões sofrerem
  3. Pare de escrever trabalhos de ficção

Atores carismáticos e atraentes tornam mais difícil ver vilões como inteiramente ruins, não importando o que eles façam. Na Nova Hollywood, a onda de filmes influenciados por europeus que dominaram o cenário nos anos 1960 e 1970, anti-heróis fizeram tanta besteira sem qualquer repercussão, apenas porque eles eram bonitos demais fazendo isso. Atores tiveram que lutar contra a atração do público para que pudessem continuar sendo vilões convincentes. Personagens como Clyde Barrow, trazido à vida pelo playboy do século, Warren Beatty, ensinaram ao público que egoísmo, violência e ódio próprio podem existir em qualquer embalagem. A imagem de Marlon Brando como Stanley Kowalski, suado e sem camisa nos 5 primeiros minutos de Uma Rua Chamada Pecado (1951) fica presa na mente do público, testando sua resiliência – e então o resto do filme acontece.

E boa parte do público adora ver os protagonistas sofrerem. Heróis e vilões similarmente passam por dificuldades, mas pela necessidade de finais “justos”, vilões machucam mais, seja física ou emocionalmente, do que os heróis. Personagens sobrevivendo a tortura ou outras formas de aflição física sempre foi uma ferramenta para testar a “masculinidade” nas narrativas, seja em filmes de investigação ou blockbusters de ação. Mas isso também serve como forma de mostrar e sexualizar os corpos masculinos, e para desenvolver empatia por um personagem que chegou ao seu ponto mais baixo e consegue superar a dor e sofrimento.

Nas duas últimas décadas, aproximadamente, vilões têm sido submetidos a todos os tipos de dor. Conforme o foco nas histórias de origem cresce, junto com a ascensão das histórias serializadas, os terríveis passados de nossos malvados favoritos vão ganhando os holofotes, ao ponto de que as suas derrotas esmagadoras se tornarem muito mais complicadas.

Filmes sobre crimes nos anos 1930 apresentavam a ascensão e queda de gângsters reais e imaginários pelos quais o público podia viver intensamente, com performances que exemplificavam o quão duros e sem remorso os protagonistas eram. Mas gângsters modernos são uma mistura de ação clássica com a busca por masculinidade da Nova Hollywood, e também têm esposas e filhos, como Tony Soprano, ou vidas complexas como Frank Sheeran, de O Irlandês (2019). O foco na dor emocional dos vilões (no passado, uma característica amplamente explorada apenas em personagens femininas) tem sido uma grande dádiva para os fãs que já estão transgredindo as barreiras de gênero outrora presentes. O sofrimento experimentado pelos vilões acaba se tornando uma fonte frequente de fanfictions, e a profundeza de suas emoções é desenvolvida para apelar especialmente para o público feminino e LGBT.

Os supostos perigos do tesão pelo vilão

Um dos maiores argumentos contrários ao tesão pelo vilão é o medo de que a mídia esteja preparando e influenciando jovens mulheres a buscar relacionamentos abusivos e perigosos na vida real. A romantização do relacionamento entre Arlequina e Coringa em Esquadrão Suicida (2016), ou a conexão entre Rey e Kylo Ren em O Despertar da Força (2015) são histórias do tipo apontado como um sinal de que a nossa moral coletiva está se despedaçando, como se as mulheres precisassem ser protegidas delas mesmas.

Mas fandom – o local em que esses relacionamentos são defendidos e elaborados na arte, ficção e coletividades online – é acima de tudo um lugar para compartilhar entusiasmo e para ser confortavelmente hiperbólico sobre vontades e desejos. Para muitas mulheres, o fandom funciona como um espaço seguro para discussão sobre tópicos que são tabus ou intocáveis em outros contextos. Fanfiction e conversas online são válvulas de escape necessárias para que jovens explorem ideias e temas que não são tão seguros na vida real, como permissividade, poder e dominação.

Vilões, especialmente, possuem uma longa história de apelo a mulheres e grupos subrepresentados porque por vezes eles encontram formas de ultrapassar limites morais, sociais ou situações complexas por conta própria.

Os fãs são hipnotizados pela ideia de almas sombrias e torturadas que, de forma similar aos anti-heróis da Nova Hollywood dos anos 1960, são incompreendidos em sua busca de auto descobrimento. O General Kirigan em Sombra e Ossos desafia Alina a “torná-lo o seu vilão”, carregando a verdade fundamental de que todos os vilões acreditam ser os heróis de sua própria história. “A atração intensa e o amor pelo personagem (Kirigan) tem sido visto por alguns como problemática”, escreveu Alisha Grauso para a página ScreenRant. “com o tom de alguns cantos da internet sendo da mais pura ofensa pelo fato de pessoas romantizarem um personagem tão manipulador e tóxico”.

Mas vilões como Kirigan ou Kylo Ren são incisivos, determinados, e acreditam que devem cumprir um propósito maior. Como adversários dos personagens “escolhidos”, eles possuem a mesma força e recursos que os tornam capazes de enfrentar os heróis, e por vezes, esses heróis são a sua única forma de lidar com a solidão e dificuldades. Apesar de virar para o lado negro não ser uma boa ideia na vida real, na ficção esse pode ser um espaço interessante de explorar.

Assim como a sensação de ser dominado, seduzido pela escuridão ou de se tornar uma presa.

O Rei do tesão por vilões

A popularidade dos vampiros no gênero da ficção parece ser a suprema expressão dessa fantasia: apesar de contos sobre vampiros variarem entre feras e humanos, a literatura moderna parece ter estabelecido um padrão que pode ser resumido como o monstro sedutor. O aumento do número de obras de ficção sobre vampiros nas últimas décadas tem sido uma fonte frequente de concordância, uma vez que os vampiros representam algumas das fantasias mais sexualmente transgressivas da sociedade. Algumas das adaptações cinematográficas mais antigas e assustadoras, como a criatura interpretada por Max Schreck em Nosferatu (1922), utilizavam próteses pesadas e imagens monstruosas para causar medo no público. Mas começando com Bela Lugosi assumindo o manto de Drácula no filme de 1931, uma versão mais afável, sutil, e menos desumanizada do predador deu ênfase na ideia de sedução como forma de violência, e de violência como uma forma de sedução.

O verdadeiro peso do vampiro vilanesco como objeto sexual, porém, surgiu nos anos 1980 e 1990. A popularidade dos romances góticos de Anne Rice trouxe performances como as de Brad Pitt e Tom Cruise, na adaptação de 1994 de Entrevista com o Vampiro, e influenciou boa parte do público a ter interesse no perigo sexual dos vampiros como um todo. Existe uma linha direta entre a apresentação de Lestat e Louis em 1994, o gradualmente redimido vilão Spike em Buffy, A Caça-Vampiros e a apresentação do protagonista Edward Cullen e sua família nos livros e filmes da saga Crepúsculo.

Spike, em particular, possuía uma legião de fãs devotos que acompanhavam o seu desenvolvimento como anti-herói, até que se tornasse um herói trágico; mas esse público amava o personagem desde o início, quando ele ainda quebrava pescoços e aterrorizava adolescentes. Os criadores, na época, sugeriram que as fãs estavam mergulhadas em hormônios, iludidas e delirantes, por acharem que o personagem poderia se redimir, sugerindo que as suas esperanças por Spike eram algo similar a mandar cartas de amor para seriais killers na prisão.

O ator James Marsters, que interpretou o personagem, reforçou essa ideia em uma entrevista para o A.V. Club:

Spike era mau e eu acho que muita gente esqueceu isso. Joss estava tentando constantemente lembrar o público, ‘Olha, gente, eu sei que ele é charmoso, mas ele é ruim’. Ele é um péssimo namorado. Seria ruim namorar com um cara desses.

Mas as pessoas que repetem isso não estão percebendo o principal – fãs do personagem Spike e seu arco sabem que ele é o vilão. Sua falta de compasso moral, porém, não o torna menos atraente. Só faz com que ele se torne mais apelativo e imprevisível.

A geração seguinte de vampiros na ficção, como na série Crepúsculo, buscou defender que vampiros poderiam ser potenciais bons namorados e parceiros. Mas Buffy nunca deixou de demonstrar a ameaça predatória e demoníaca que se ocultava sob o glamour. A ameaça de Spike sempre foi parte do que o tornou tão atraente nas primeiras temporadas.

Os fãs mais ridicularizados podem ser a vanguarda dos fandoms

Mulheres – especialmente as mais jovens – são consistentemente ridicularizadas e rejeitadas por causa das celebridades e personagens que elas acham atraentes, e inversamente, celebridades que são ridicularizadas e rejeitadas tendem a atrair esse público mais jovem. De Frank Sinatra, passando pelos Beatles, One Direction e BTS, jovens fãs acabam sendo alvo de críticos da cultura pop como o epicentro de algum tipo de crise moral, tanto pelo que amam quanto por como amam. A era moderna do fandom adicionou a esta mistura os desejos queer também.

O que acaba sendo ignorado, porém, é que esses fãs são comumente os canários nas minas de carvão para trabalhos importantes e influentes na área de cultura. Frank Sinatra e os Beatles são alguns dos mais importantes artistas musicais de todos os tempos, e eles se tornaram conhecidos por seu apelo aos jovens antes de se “legitimarem” musicalmente – e não é nenhum exagero dizer que BTS provavelmente se unirá a eles em breve.

O fandom que envolve filmes e personagens vilanescos possui uma trajetória similar. Fãs de personagens complexos e moralmente ambíguos são sinais de que uma obra clássica está em desenvolvimento. O apelo desses personagens aponta que existe algo mais profundo no trabalho, capaz de prender os fãs. Em vez do cansativo pânico moral sobre a degradação da decência comum, talvez a reação possa ser de apreciação ou exploração? O que torna esses personagens tão fascinantes? Como essa fantasia fornece algo a vocês que a sociedade não pode ou não deve fazer?

Loki faz todo o trabalho necessário para chegar no coração do personagem, e potencialmente entregará redenção aos olhos do público. Mas ainda mais importante do que isso, Loki faz com que o protagonista passe por uma enorme quantidade de sofrimento até chegar lá. As nuances emocionais do personagem mantiveram uma base de fãs ativa por mais de uma década, por mais que ele já tivesse fãs desde o início, desde o primeiro sorriso maldoso. Ele não precisava de redenção para ser amado.

O velho argumento de que sentir atração por um vilão é um sinal de deficiência moral não cola mais. Isso é simplesmente outra forma de tentar manter valores sociais puritanos, ignorando os desejos e vontades, principalmente de mulheres e grupos LGBT.

A única alternativa viável é deixar as pessoas sentirem tesão por vilões, e aprender alguma coisa com eles.


Traduzido e adaptado da Polygon.

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