Uma série sobre criação de uma série com mulheres protagonistas, não tem como não ser boa, né? 

A terceira temporada de Glow entrou na Netflix esse mês e apesar de apresentar um formato diferente das duas primeiras, ainda manteve o mesmo frescor e leveza que a série sempre teve, e conseguiu trazer ainda mais drama e emoção para a história.

Situada nos anos 80 Glow acompanha um grupo de mulheres que acabaram entrando na produção de um programa de luta livre feminino. A série acompanha a protagonista Ruth Wilder (Alison Brie) que é uma das únicas atrizes ali, durante a gravação do programa.

A metalinguagem do show é uma das coisas que atraem logo de começo, podemos acompanhar como é feito um programa, a procura por patrocinadores, horários na tv, audiência e tudo que engloba o mercado televisivo. Mas Glow acerta em cheio não só pela metalinguagem, mas por mostrar a parte social que engloba esse processo e é por isso que acaba sendo uma série tão viciante e significante.

O programa é idealizado por Bash (Chris Lowell),um jovem milionário que gosta de luta livre e tem dinheiro pra gastar (ou no caso a mãe dele tem). Ele não tem noção nenhuma sobre produção, roteiro ou qualquer coisa que seja sobre audiovisual, mas resolve fazer o programa e incluir neles todos os estereótipos possíveis que se possa imaginar.

Uma asiática lutando com espadas e kimono, e a outra sendo terrorista com bombas amarradas pelo corpo, uma mulher negra sendo “rainha do seguro social”, e usando dinheiro de assistencialismo público para viver com besteira (esse é um pensamento bastante arraigado de que quem recebe ajuda do governo é folgado e na verdade não precisa; usa pra comprar coisas supérfluas, sem trabalhar enquanto o cidadão honesto se esforça para manter as contas). E a mulher loira e branca sendo a heroína, que vai defender os Estados Unidos.

 

Esse plot funciona em diversas camadas, primeiramente pelas escolha das personagens, que refletem bem o pensamento do norte-americano na época, que vinha de um pós guerra e preso dentro de uma guerra fria. Segundo: retrata o gosto do público por assistir programas assim, e como eles podem externar seus preconceitos apoiados no que veem na TV. Em terceiro lugar, releva como funciona a importação de estereótipos e sua propagação dentro da mídia, e como isso acontece por que quem produz já carrega essa visão.

Numa indústria composta por homens, geralmente brancos e ricos, não era muito difícil que a visão de mundo para criação de bons roteiros fosse escassa. E ai entra outro ponto abordado na série, a estrutura patriarcal no meio cinematográfico, e televisivo.

Ser mulher nunca foi fácil, as imposições patriarcais que vivemos diariamente são muitas e no meio televisivo isso se torna ainda mais acentuado. Durante os episódios constantemente somos lembradas que aquilo é um meio dominado por homens, onde as mulheres não podem dar opinião ou ter ideias, são constantemente objetificadas, assediadas e cobradas por questões estéticas.

Ruth e Debbie são as personagens que mais carregam esses lembretes durante o show. Ruth é muito envolvida em seu trabalho, tem ideias de roteiro brilhantes, desenvolvimento para os personagens, ideias de aberturas para o show, mas é sempre boicotada pelo diretor, que se sente oprimido por ver uma mulher comandar mais que ele e desconta sua frustração nela.

Debbie, que depois de ler o contrato e exigir alguns direitos se tornou produtora da série, nunca é ouvida ou incluída nas reuniões, é como se ela nem existisse naquele cenário. Por ser mãe, ela precisa abrir mão de ficar com seu filho para poder trabalhar e ainda escuta do ex-marido que aquilo não é seu papel.

Elas lutam, dentro e fora do ringue, para conseguirem seu espaço e serem reconhecidas pelo trabalho que estão fazendo. E a série se manteve assim durante as duas primeiras temporadas, sendo a segunda mais incisiva nessas questões patriarcais, enquanto apresenta um divertido dia a dia de gravações e pequenas tramas individuais das personagens.

Porém a terceira se perde um pouco nessa trama individual das personagens, já que elas possuem estabilidade no emprego e um show fixo. A saída é tentar tratar cada personagem em um episódio, mas é difícil manter isso durante toda uma temporada e a trama perde um pouco a força. Como o plot da luta livre e a metalinguagem são deixados de lado, falta um assunto que una todos os episódio.

Por um lado foi uma ideia inteligente abordar o show business por uma outra ótica, saindo da frente da câmera e indo para os shows ao vivo. Por outro, faltou talvez, então, focar um pouco mais nisso, que fica mais como um plano de fundo do que como trama central.

A introdução de outros personagens também foi uma tentativa de atualizar a trama, e isso  souberam usar muito bem, a escolha do show de drag queen, vivida por Kevin Cahoon, deu a oportunidade da historia entrar dentro do universo LGBTQ+, que na época passava por um momento muito duro com o começo da epidemia da AIDS. Inclusive, o baile de arrecadação para ajudar vítimas da doença foi um dos momentos mais tocantes da série, por mostrar um preconceito tão pesado e fazer pensar o quanto essas pessoas tiveram que lutar para que hoje tivéssemos um pouco de liberdade que temos.

Aliás, isso é outra conquista da temporada: nos fazer perceber o quanto se foi lutado e conquistado durante esses anos. Quantas mulheres tiveram que enfrentar universos machistas, assédios, silenciamento para que hoje outras mulheres possam ser diretoras, roteiristas, produtoras. Quantas pessoas não tiveram que lutar para que hoje possamos ver personagens diversificados na TV, que realmente trazem a cultura de um povo consigo e não só estereótipos pejorativos. Claro, ainda estamos bem longe de não ver mais esse tipo de conteúdo, e a indústria está bem longe de ser verdadeiramente inclusiva, mas é um pouco reconfortante saber que muita coisa mudou para melhor nesses quase 40 anos.

Se a série se perdeu em alguns quesitos, ganhou em outros, mas precisa de algo mais sólido para a quarta temporada. Pelo desfecho escolhido talvez consigam dar uma outra vida para a trama principal.

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