Passamos raiva, mas por bons motivos.

Este texto contém um alto nível de radiação, mas acredito ser necessário. Meu cansaço normalmente me impediria de fazer isso, porém a revolta é maior e eu estou com um tempinho livre. Minha missão a partir daí foi visitar os antros mais pútridos e mais famosos de nerdolinhas (Reddit, Quora, Twitter – ok, me recusei a visitar chans, até a minha saúde mental tem limites) e ir coletando questões que eles faziam em tópicos, sempre com longos textões e respostas raivosas. Compilei tudo e pretendo rebater aqui. De nada. Fiz pra que você não tivesse que se sujeitar a isso.

Eu sei que não devo alimentar trolls, mas às vezes pode acontecer de você acabar numa discussão sobre o assunto e seu oponente ser apenas um fã burro/ignorante em vez de um incel mal intencionado/reacionário/racista. No primeiro caso, é importante combater desinformação com fatos e, se você é uma pessoa de coração generoso, ter a paciência de ser didático. No segundo caso, muitas vezes o que resolve é só o escracho mesmo, não dá pra ter diálogo com racista, ainda mais os que se sentem confortáveis por trás da tela de um computador – mas sempre é incômodo para um nerdola que você o chame de racista, porque é algo socialmente imoral, então sempre que possível chame um racista de racista, um homofóbico de homofóbico, um machista de machista. Dar nome aos bois faz com que eles se recolham ou se revelem. De toda forma é bom, porque se ele se revelar, só estará provando seu ponto. Aproveite a ocasião e denuncie. Tiro e queda.

Leia também o nosso post no Instagram sobre os ataques racista em A Pequena Sereia

Então, aqui vai um guia com as maiores questões que encontrei sobre o live-action de A Pequena Sereia, e como você pode respondê-las o mais graciosamente possível – sempre que for possível.

#Chororô Nº1: ARRUINARAM MINHA PRINCESA PREFERIDA!!111!! MINHA INFÂNCIA, BUÁÁÁÁÁÁ

Primeiro que seu desenho permanece lá, intocável e, de acordo com a própria Disney, para sempre disponível no catálogo da Disney+. Quem quer viajar numa reminiscência de infância pode sempre reassistir o desenho. Se a única coisa que te prende na obra é a nostalgia, coisas novas nunca vão te satisfazer. Aliás, se as mudanças do live-action te incomodam tanto assim, existe também a opção de não assistir, é a forma mais saudável de se resguardar. Ficar guardando raiva envelhece. Ou você está resumindo toda a sua infância num único desenho? Se for o caso, fico triste por você. Aposto que seus pais também ficariam se soubessem.

Segundo: na vida adulta fica feio se lamentar desse jeito por causa de uma adaptação de desenho infantil. Com certeza existem preocupações mais sérias para se gastar tempo em pleno final de 2022: crises climáticas, crises políticas, a crescente inflação que impede a nova geração de possuir casa própria, o número exorbitante de desempregados, os preços absurdos dos alimentos, os lençóis freáticos diminuindo, a corrupção e o crime organizado aumentando cada vez mais, a superpopulação do planeta, o aumento do nível do mar, o fato de que a vida não tem sentido e que vamos todos morrer… Tem certeza que você não tem mais nada interessante ou importante para ocupar sua cabeça no momento? Estou ficando realmente preocupada com você.

Um filminho musical sobre uma sereia no fundo do mar não vai impactar sua vida em nada, acredite. Não vejo crianças reclamando, e elas são o maior público-alvo. Quer deixar coisa de criança te afetar tanto assim? Acho melhor arranjarmos uma visita a um bom psicólogo, não é mesmo? Terapia costuma ajudar bastante nesses casos.

(Ps.: eu amo uma boa condescendência, ela costuma deixar as pessoas ainda mais putas, porque você sai como a boa pessoa e elas como reaças).

#Chororô Nº2: O FILME DEVERIA SER FIEL AO DESENHO ORIGINAL E AOS CONTOS!!!111!!!

É sempre incrível ver o malabarismo mental que racistas usam para defender seus pontos de vista. Esse argumento aqui é um dos piores e o mais desinformado deles. Mas vamos lá:

Não existe nenhuma regra no universo do cinema que determine que live-actions devam ser iguais às obras originais – e certamente a Disney não parece ter determinado isso em momento algum. Diretores, showrunners e escritores trabalham em conjunto de forma criativa, porque com certeza não deve ser divertido trabalhar numa adaptação rigidamente idêntica a um desenho tão antigo (1989). Claro, a Disney está de certa forma tentando reviver suas animações clássicas, mas até agora foi uma questão de tentativa e erro: o live-action de O Rei Leão foi criticado por tentar ser realista demais na intenção de ser idêntico ao desenho animado, o de Mulan foi criticado por alterar o roteiro para agradar chineses e acabar desagradando gregos e troianos. Eles ainda estão em passos lentos de encontrar a fórmula que agrade todos os públicos, mas não apostaria que vão desperdiçar a chance de inovar.

Agora vamos falar sobre “ser fiel ao conto de fadas”. Você nunca leu o conto escrito por Hans Christian Andersen e isso é aparente, viu? Se tivesse lido saberia que existem inúmeros pontos totalmente diferentes entre o conto e a animação da Disney. Imagine só assistir um desenho em que a bruxa do mar literalmente corta fora a língua da pequena sereia para retirar sua voz, ou que a pequena sereia ganha pernas, mas que elas sangravam porque a poção da bruxa do mar fazia que cada passo dela fosse como se uma faca afiada a cortasse? Imagine chegar ao final do desenho e perceber que o destino final da sereia não é o ‘felizes para sempre’, mas sim uma morte melancólica enquanto o príncipe se casa com outra e ela tem seu corpo desfeito em espuma do mar? Ok, no final do conto a sereia se transforma em uma “irmã do ar” e recebe a promessa divina de ganhar uma alma imortal depois de 300 anos de boas ações! kkkkkkkkkkkkrying

Enfim, se você tivesse qualquer conhecimento sobre contos de fada, saberia também que quase nenhum deles tem esse ‘final feliz’ da Disney, porque o objetivo dos contos de fada era trabalhar lições de moral no público leitor da época. A lição do conto de A Pequena Sereia era, num plot twist muito louco, fazer com que as crianças fossem boazinhas para não acrescentar mais tempo de serviço aos 300 anos de trabalho [escravo] da sereia. Tragicômico, né? Li no Contos de Fadas, da Editora Zahar.

Tendo tudo isso em vista, ainda temos outro problema: o mito da sereia não é exclusivo do Andersen, e ele próprio adaptou seus livros de histórias regionais da Dinamarca que eram passadas de geração para geração – e acredito que não haja nenhuma garantia que ele contava exatamente o que ele ouvia, principalmente porque ele as ouviu quando criança. Inclusive, a descrição dos livros dele costuma apontar que os contos dele são revisões dessas histórias. Você não está falando de um conto 100% original, mas de uma versão de uma história contada oralmente de jeitos diferentes.

Tudo aqui inclui liberdade criativa e licença poética. Rigidez estraga a arte.

#Chororô Nº3: ARIEL É RUIVA, A ANIMAÇÃO FOI BASEADA NUM CONTO DINAMARQUÊS, QUE É UM PAÍS DE GENTE BRANCA, LOGO ELA TEM QUE SER BRANCA!!!11″”!!!!

Como eu acabei de explicar acima, a Disney não adaptou o conto original ao pé da letra lá no começo, porque ela deveria começar agora?

E olha só, que legal: dinamarqueses também podem ser negros. Houve uma diáspora de milhares de pessoas africanas para a Dinamarca lá no século 19 (mesma época que o Andersen nasceu), e além disso existe um conceito incrível no planeta chamado imigração, então sim, existem pessoas que nascem na Dinamarca, são dinamarquesas e também são negras.

#Chororô Nº4: DEVIAM FAZER PERSONAGENS NOVOS EM VEZ DE RECICLAR ANTIGOS

Nisso concordamos (talvez em parte, já que eu não estou dizendo isso pra sustentar racismo velado), então vou até poupar o gif aqui. Seria ótimo se cada vez mais surgissem personagens negros e não-brancos vindos de empresas grandes como a Disney. E é maravilhoso quando eles existem sem ter gente para encher o saco, mas não é o caso, não é mesmo? Se a Disney faz filme de personagens negros, vocês insistem que é lacração. Se a Disney troca a etnia de personagens, vocês também chamam de lacração, oras. É assim toda vez: Pantera Negra sofreu bomb-review, teve choro de nerdola quando Miles Morales assumiu a fantasia do Homem-Aranha, teve bomb-review quando John Boyega assumiu seu posto em Star Wars, teve bomb-review por causa de elfos negros em O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder, teve gente tendo a pachorra de ir atrás do próprio Neil Gaiman reclamar da Morte ser preta na série de Sandman… Basta estar antenado nas notícias do mundo pop para saber disso. É um ciclo que só se repete. Quando esse tipo de reclamação acontece especificamente quando personagens negros estão em discussão, fica difícil não ver o racismo na outra parte.

Então, assim, eu consigo entender o argumento e ver uma certa razão nele. No entanto, também não posso deixar de comentar que não é segredo que hoje os estúdios de cinema muitas vezes recorrem à propriedade intelectual estabelecida para o material, e que é mais fácil adaptar o material existente do que começar algo do zero e esperar que se torne parte da cultura da mesma forma que o material mais antigo. Acontece. Engole o choro.

#Chororô Nº5: QUERIA VER SE FIZESSEM A TIANA BRANCA

Meu queridíssimo nerdola, mudar a etnia de Tiana é completamente diferente de mudar a etnia de uma criatura mitológica, né?

Por que? Porque historicamente, pessoas não-brancas sempre foram sub-representadas na indústria cinematográfica ocidental. Isso é especificamente verdade para o subgênero dos filmes da Disney e para as princesas em particular. Então, se a Disney decidiu que mudar a etnia de uma heroína para negra aumentaria a diversidade e a representação em seus filmes, é uma coisa boa. Já que brancos não são e nunca foram sub-representados, obviamente não faz sentido mudar a etnia de um personagem negro para branco.

O segundo passo é perguntar: há algo inerentemente branco na personagem de A Pequena Sereia que exige mantê-la branca? Embora existam casos em que a etnia é uma parte significativa da história e identidade do personagem – como Merida, de Valente, sendo escocesa – este não é o caso de Ariel. Você também pode argumentar que, como o filme original tinha uma forte vibração caribenha, a mudança racial faz sentido.

Mudar a etnia de Ariel priva alguém de alguma coisa? Na verdade, não. Não priva nada do desenho animado e suas imagens. Não priva os brancos de muitos outros personagens e uma variedade bem grande de princesas da Disney. Então me parece que a alteração nesse caso é bastante razoável, faz zero sentido ficar bravo por isso.

#Chororô Nº6: JÁ QUE ESTÃO ENFIANDO FEMINISMO EM TUDO, NÃO DEVIAM SER PRÓ-RUIVAS? RUIVAS TAMBÉM SÃO DISCRIMINADAS

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

Desculpem, nesse caso eu não aguentaria segurar uma boa risada. Ruivas foram discriminadas na Idade Média até o século 17. Você estar dizendo isso em 2022 depois de Cristo beira o absurdo. O problema de mulheres ruivas agora é outro: esse fetiche bizarro que nerdolas têm por elas. Disso aí, as feministas têm muito o que falar mesmo.

#Chororô Nº7: DEVIAM TER ESCOLHIDO UMA ATRIZ MAIS CONHECIDA

Dá pra ter absoluta certeza que o processo de seleção de atriz principal para um filme de uma empresa enorme como a Disney é bem criterioso, isso considerando apenas o lucro que eles querem render em cima de uma mídia assim. Se Halle foi a escolhida, com certeza é porque ela atingiu as expectativas da empresa, mesmo que para você, senhor de toda a razão, ela não seja conhecida. Acredite se quiser, Halle Bailey é uma cantora nomeada ao Grammy e acho que isso já é um fator bem forte para considerá-la “alguém conhecida”.

Caso você ainda esteja insatisfeito, procure uns contatinhos para entrar para o RH da Disney. Quem sabe você consegue alterar as seleções no futuro?

#Chororô Nº8: POR QUE NÃO DEIXAM A HALLE COMO A VOZ E COLOCAM OUTRA ATRIZ PARA INTERPRETAR?

Vai botar uma dentadura no c* e sorrir pro caralho, vai.

#Chororô Nº9: ESTÃO USANDO RAÇA COMO FORMA DE PUBLICIDADE!!!!1!! IDENTITARISMO IDEOLÓGICO!!!111!!

Ah, sim. Aquela mega empresa está usando questões de representação negra para conseguir publicidade, imagine só. Para pra prestar atenção no que você acabou de digitar.

É óbvio que a Disney vai usar todos os recursos possíveis para conseguir lucrar, mas por outro lado ela tem demonstrado de fato uma preocupação crescente em se adaptar ao novo, representar sensivelmente, dar lugar aos que antes não tinham voz ou espaço. Quem vai ficar obsoleto aqui é você, que nunca muda o jeito de pensar.

Estamos falando de uma mega corporação com um passado extremamente racista e um CEO claramente homofóbico, mas que felizmente tem funcionários com intenção genuína de mudar as coisas. E se você ler as entrevistas da atriz ou do diretor do live-action na internet, vai perceber que o caso de A Pequena Sereia é um deles. Eu não botaria minha mão no fogo por isso, mas tenho esperança que seja genuíno. E mesmo se não for, vai ter um impacto positivo porque meninas negras vão poder se ver num personagem importante da Disney, vão se achar válidas e bonitas, e isso é tudo o que importa no final.

#Chororô Nº10: ELES PREFEREM MUDAR A RAÇA DE ARIEL QUE FAZER FILME DE TIANA!!!1!!

Já foi anunciado oficialmente que Tiana vai receber sua própria série, segura a onda. E eu aposto que a empresa provavelmente passará por um processo de avaliar o sucesso da série animada para chegar a conclusão se vale a pena ou não ($$$) fazer um live-action da personagem. Mas estamos ansiosas para ver um filme dela! Seria realmente interessante que a Disney considerasse, além de reutilizar personagens já existentes (que a gente até aqui entende não ser uma coisa necessariamente ruim), contratar autores mais diversos para criar personagens originais.

Só que isso não faz com que alterar etnia da personagem seja uma coisa ruim. Por que você se sente ameaçado por isso?

#Chororô Nº11: HURR DURR, A ATRIZ É FEIA, OLHO SEPARADO HUR DURR

E você é o portador da beleza grega, criatura perfeita aos olhos de deus, ganhador do posto de miss universo, né? Tem certeza que não é o caso de você não ver beleza em pessoas negras de toda forma e por isso você sempre vai achar qualquer branquelo medíocre mais bonito que uma pessoa negra? Se for o caso, parabéns, você é racista. Se não for o caso, você é só um babaca mesmo, xingando pessoas que você não conhece na internet e fazendo troça da aparência delas – sendo que se fosse com você o problema, não tankava.

Halle Bailey tanka. Tanka com voz, aparência e carisma fodas. Você não aguentava 5 segundos do que ela está suportando desde 2019 – com a maior graciosidade do mundo e com certeza com um cheque gordo no bolso.

Falar mal da aparência das pessoas na internet diz muito sobre você. Só sobre você.

#Chororô Nº12: ENTÃO EU SOU RACISTA POR NÃO CONCORDAR QUE ARIEL PODE SER PRETA????

Sim. Espero ter ajudado.

#Chororô Nº13: É RACISMO MUDAR O MATERIAL ORIGINAL PRA COLOCAR UMA ATRIZ PRETA NO LUGAR DE UMA BRANCA!!!11!! BLACKWASHING!!!!

Blackwashing não existe. Pessoas brancas não são oprimidas por causa de sua raça, não sofrem racismo. Não existe um número expressivo de personagens brancos cuja etnia é uma parte significativa da história e identidade do personagem tendo suas cores alteradas. Não vou cair no seu bait barato à la “todas as vidas importam”, ou “racismo reverso”. Whitewashing é sobre apagar identidade e isso não acontece no contrário.

#Chororô Nº14: ELES ESTÃO ALTERANDO PROPRIEDADE INTELECTUAL DO HANS ANDERSENN!! CRIMEE!111!!!

A maioria dos contos de fada do Andersen estão em domínio público, burrinho. A Pequena Sereia é um deles. Não fosse assim, a violação de direitos autorais já teria ocorrido lá no primeiro filme da Disney.

Uma vez que a Disney se apossa de algo que está fora dos direitos autorais e o autor está morto, eles vão alterá-lo e mastigá-lo como bem entenderem. A versão da Disney de A Pequena Sereia não é nada como a história do Andersen, como já falamos aqui. A versão de Mogli, do inglês Rudyard Kipling, é assustadora e não tem nada a ver com o desenho. Bambi, 101 Dálmatas e Tarzan seguem vagamente os enredos de seus respectivos livros. Walt Disney era famoso por dizer para seus animadores que considerassem o material original apenas como uma “diretriz”. Se você vai dar um nó na cueca porque a sereia não é fiel à história do Andersen, então não veja nenhum dos filmes. A fidelidade ao material de origem não é uma das coisas que os estúdios Disney se preocupam.

#Chororô Nº15: QUEM LACRA NÃO LUCRAAA!!!1111!!! QUERO VER QUANDO O FILME FOR MAL NAS CRÍTICAS!!! VÃO DIZER QUE FORAM OS RACISTAS, NÉ???

Até agora, apesar de bomb reviews e chororô na internet, todas essas obras que citei acima no texto tiveram sua importância cultural intocada. Elas abrem caminho para mais representações, colorem as obras com diversidade, tornam o mundo um pouquinho mais justo.

Sim, acontece de um live-action ir mal nas críticas, mas dificilmente um crítico de cinema que se preza vai pautar isso na cor da pele da atriz, mas em conceitos técnicos do filme. Se o live-action de A Pequena Sereia falhar, será porque a Disney não conseguiu recriar a história apropriadamente – e honestamente, é sempre uma possibilidade.

Mas o barulho de pessoas racistas reclamando na internet não vai interferir no fato de que milhões de crianças negras vão assistir e se reconhecer nas telas. E, novamente, isso é tudo o que importa.


Leia mais sobre A Pequena Sereia no Garotas Geeks!

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