A opinião pode ser impopular, mas os fatos falam por si próprios.

Me interessei por True Detective por causa de Terra Noturna, mais precisamente quando soube que a 4ª temporada da série traria de volta às telas a atriz Jodie Foster, que é sem dúvida uma das minhas favoritas de todos os tempos. Tive a oportunidade de participar de uma coletiva de imprensa em São Paulo com Jodie, Kali Reis e a diretora, Issa Lópes. O papo fluiu tão bem e de forma tão instigante e descontraída que a partir dali, nutri alto interesse pela série como um todo, sendo fã do gênero.

Issa López, Jodie Foster e Kali Reis — Foto: Brazil News

Como sempre faço, procuro opiniões de críticos e do público em geral para ter noção da qualidade da série e da sua recepção, e uma certeza tirei disso: os fãs são obcecados com a primeira temporada, estrelando Matthew McConaughey e Woody Harrelson como protagonistas. Esses fãs são ferrenhos na defesa de que ela é a melhor coisa que já aconteceu na TV. Quando se avalia as temporadas em sites como o Rotten Tomatoes, fica ainda mais concreto esse ponto, já que a primeira temporada é a única com pontuação positiva do público.

Navegando mais no assunto, me deparei com uma notícia bem chata: o roteirista e criador das três primeiras temporadas, Nic Pizzolatto (que aliás não está envolvido com a quarta), criou um post no Instagram fazendo críticas à Terra Noturna, e chegou a comentar que as decisões criativas dela eram “estúpidas” e “desrespeitosas”. Achei o comentário antiético, para falar no mínimo, e estaria mentindo se não dissesse que meu “radar de recalque” apitou um pouco. E, pelo visto, não só eu tive esse sentimento. O roteirista foi duramente criticado nas redes sociais e apagou o post, criando uma nova postagem com lamentações duvidosas, pedindo aos comentaristas para manter a civilidade e reclamando sobre ter sido chamado de misógino por não ter gostado da nova temporada. A legenda do post foi recheada de ironia e um óbvio ressentimento – botou até Hitler no meio, o que não melhorou a situação em nada.

Em contraparte, Issa Lópes se manifestou em entrevista à revista Vulture, basicamente afirmando que Pizzolatto tinha direito à sua opinião. E disse:

Essa é a prerrogativa dele. Escrevi [Terra Noturna] com profundo amor pelo trabalho que ele fez e pelas pessoas que o adoraram. E é uma reinvenção, é diferente, é feito com a ideia de se sentar ao redor do fogo e se divertir, ter alguns sentimentos e pensar. E qualquer pessoa que queira aderir é bem-vinda.

Não resta dúvidas que nesse rodeio, só uma pessoa dispôs da humildade enquanto atributo de caráter.

De toda forma, resolvi dar o benefício da dúvida para o roteirista, e assisti primeiro a primeira temporada e então a quarta, pra tentar encontrar o que havia ali de tão “ridículo” ou “desrespeitoso”. Fiz isso, mas não encontrei nenhum dos dois, sendo bem franca – na verdade, foi bem o contrário: a conexão entre as duas temporadas fez sentido e o coração da primeira temporada parecia estar ali da mesma forma, com a mesma intensidade. Que Jodie Foster é fenomenal, todo mundo já sabe. Mas Terra Noturna fez brilhar a parceria de Jodie com Kali Reis. Suas personagens são magnéticas, reais, cheias de péssimas falhas e ótimas qualidades.

É verdade que a primeira temporada da série é marcante, foi inovadora e de sucesso em sua época de lançamento em muitos sentidos, desde o roteiro, filmagem até a audiência. Mas eu, pessoalmente, não diria que ela é excelente, simplesmente pelo fato de que não estou presa aos grilhões do saudosismo. Assistir depois do hype talvez também tenha influenciado um pouco.

Como mulher, assisti sentindo que o enredo era, como as séries desse gênero costumeiramente são, muito masculino. Quase todas as mulheres com mais proeminência no enredo não escaparam de cenas de nudez completa – enquanto os protagonistas homens eram resguardados da nudez frontal. A primeira temporada tem um quê de faroeste e se passa no Texas. Tudo ali fede a testosterona. Tirei disso minha conclusão de por que a primeira temporada é tão exaltada por um certo grupo de fanboys: se encaixa facilmente no idealismo de masculinidade, na fantasia de poder masculino de quem é mais conservador. Mas a verdade fica nas entrelinhas da história: ela é sobre homens brancos sendo brutais, infiéis, preconceituosos e corruptos. Entendo essa temporada como uma crítica de como instituições policiais levam homens aos extremos da saúde mental, à atitudes que enfraquecem suas humanidades e os torna cegos aos reais problemas que os rodeiam ou às pessoas que realmente necessitam de auxílio e proteção. Se não for isso, estou absolutamente maluca.

Além disso, por se passar no Texas, a temporada insere muito na narrativa cenas envolvendo racismo, como mostrar nas cenas de fundo – abertamente – como a população local tem envolvimento descarado e sem qualquer acanhamento com células da Klu Klux Klan, amplamente reconhecidos por serem cristãos que abominavam pessoas negras e que foram responsáveis pela perseguição, agressão e assassinato de inúmeros afroamericanos. Uma cena em específico dá foco de câmera numa fotografia na sala de uma mulher entrevistada pelos protagonistas: dois de seus parentes com capuzes e uma pessoa negra literalmente enforcada numa árvore. Os dois posando do lado como caçadores e a presa abatida. E para que serviram essas cenas? Bem… Para nada além de mostrar como a polícia intencionalmente fecha os olhos para isso. Mas não consigo evitar a sensação de que essas cenas não tiveram mesmo nada a ver com a trama principal da temporada e no final não serviram a propósito algum. Foram uma mera exploração da dor de gente negra.

Não é pra menos que Terra Noturna transformou a série. Nas mãos de mulheres dirigindo e escrevendo, True Detective diversificou o elenco e aprofundou temas raciais, abrindo a perspectiva de identificação para um público mais amplo. Também tornou a série um pouco mais assustadora, e devo dizer que a inserção de cenas de horror deram uma apimentada na série que só tons sobrenaturais não estavam dando conta. Não só isso: adorei a trilha sonora, a filmografia é fantástica, os sustos chegaram a me fazer gritar, a animação para o próximo episódio tornou bem difícil a espera pelos lançamentos na plataforma de streaming.

E antes de mais nada, poupem-nos todos da choradeira sobre “homens brancos não poderem mais ser protagonistas”. Mulheres e minorias começaram a ter algum destaque digno e bem feito só recentemente. As séries com homens brancos protagonistas continuam existindo – e estão longe de não serem mais produzidas. Vocês só não aguentam estar sempre no centro das atenções. Imagina estar na pele de uma mulher minoritária, então? 

Agora imagine você que mulheres indígenas são exatamente o tipo de pessoa mais invisibilizada do mundo: não só por causa de gênero, mas também por causa de etnia. Ter uma série em 2024 falando dessa minoria e se conectando com assuntos que tangem a nossa realidade como, por exemplo, o infeliz fenômeno do MMIW (Missing and Murdered Indigenous Women, ou Mulheres Indígenas Desaparecidas e Assassinadas, em tradução livre) faz uma diferença enorme. Não só por dar dimensão e profundidade à narrativa com um objetivo além de ser plano de fundo de outro tipo de problema – mas, principalmente, por servir como meio de difusão da conscientização sobre o assunto. True Detective, nesse sentido, presta um serviço público, mais do que servir apenas como mero entretenimento – ao contrário da mãe que a pariu.

Sim, para variar, True Detective Terra Noturna foi produzida por mulheres, pensando em mulheres. Não apenas como esposas, parceiras, interesses amorosos e nudez para fanboy. Saem das notas de rodapé e dão nome a um capítulo da história da série. Por si só esse efeito é notável, mas a qualidade da série também conquistou a crítica. Do público, recebeu o mesmo tratamento das duas temporadas anteriores, desta vez com o famoso “bomb review” de fanboys que se baseiam em absolutamente nada além do ódio por mulheres. Bomb reviews não são sobre criticar uma série com argumentos sérios e embasados, são sobre destilar o desgosto por uma série não ser mais sobre eles.

A série também não é sobre mim, mulher branca, e vocês não me verão choramingando por isso. Estou feliz e orgulhosa que finalmente estou vendo pessoas menos privilegiadas que eu nas telas, não retratadas por estereótipos e má escrita. E como disse Naomi Ishikawa para o Seattle Times:

À frente e atrás das câmaras, artistas e comunidades nativas estão criando as suas próprias narrativas e finalmente obtendo acesso aos canais de distribuição necessários para que essas histórias sejam amplamente vistas. […] Adorei a série de imediato, não apenas pelas personagens femininas ferozmente poderosas e sua grande energia queer, mas pelo cuidado óbvio que a showrunner Issa López teve para apresentar uma imagem complexa e não romantizada da vida contemporânea [do povo] Iñupiaq.

E ela continua: 

É claro que a arte é subjetiva e nem toda arte agrada a todos. Isso é bom. Mas o que não está bem é o padrão que temos visto há anos, de homens que utilizam a sua fragilidade como arma porque eles não são o foco em 100% do tempo. […] Imagine ter um colapso porque – suspiro – alguém com uma experiência de vida diferente da sua tem um papel principal em um filme. Imagine não ver essas histórias como uma oportunidade valiosa para aprender e crescer. Imagine como o resto de nós deve se sentir por ter vivido toda a nossa vida com essa realidade e de alguma forma conseguir seguir em frente. 

Os homens não precisam se preocupar. Eles ainda estão super-representados na indústria do entretenimento. Eles estão super-representados em personagens com papeis falantes em filmes, em cadeiras de direção, em papeis de produção e em muitos outros empregos.

Grande parte da bombing review pode ser atribuída a misoginia, racismo e homofobia, e True Detective desencadeou todos os três.

E como Naomi finaliza seu texto genioso, deixo aqui meu parágrafo final à respeito: infelizmente para Pizzolatto e seus fanboys, eles vão ter que continuar odiando por mais algum tempo. Após o enorme sucesso de audiência da quarta temporada de True Detective, a Max acaba de contratar López para dirigir uma quinta. 

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