A gente PRECISA falar da Lucy e do Schroeder. E tem um final feliz pra isso!

O relacionamento de Lucy e Schroeder foi sempre bem… insatisfatório, só pra começo de conversa. Ela buscava validação emocional por parte do personagem menos preparado para oferecê-la. E isso era ao mesmo tempo triste e cômico, uma mensagem contraditória que Charles Schulz transmitiu tão bem com seus quadrinhos.

Lucy surgiu como uma bebê em 1952. Schulz se negou a reimprimir essas primeiras tirinhas por vários anos, apesar de ter cedido pouco antes de sua morte. Assim, a Fantagraphics publicou todas elas na antologia completa de Peanuts (Minduim), em 2004.

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Muitas dessas primeiras tirinhas da personagem tratavam a natureza autocentrada de crianças pequenas. Nesta fase, por questões puramente relacionadas ao seu desenvolvimento intelectual, as crianças não conseguem colocar as necessidades dos outros acima das suas próprias. Esse “egoísmo” não é deliberado ou malicioso, mas uma mera característica. Além disso, o humor dessas tirinhas não buscava nem de longe ligar motivações adultas às suas ações infantis.

Nos dois anos seguintes, Schulz alterou a idade da personagem para a mesma faixa etária dos demais personagens, apesar de manter seu charme e jeito “manipulador”. Mas sem sua inocência infantil, seu comportamento não era mais fofinho. Seus amigos reagiam a ela com uma mistura de surpresa e desgosto.

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Seu comportamento começou a ser interpretado como malicioso, especialmente pelo fato de seu irmão mais novo, Linus, ser mais “sábio” e generoso do que ela. Fisicamente, ela cresceu, mas emocionalmente estava presa no tempo. Ela ainda exigia atenção e reconhecimento imediato, e buscava isso por meio do bullying e da manipulação.

Ela veio a ter uma quedinha por Schroeder em maio de 1953, no início de sua fase pós-bebê. Diferente de seu pai, que a adorava, ou Linus, que se inspirava nela apesar de seu comportamento, Schroeder ignorava Lucy completamente. Então Lucy se impôs sobre ele. Ela subia em seu piano e ficava o encarando até quebrar sua concentração.

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Uma tirinha de 1955 revisitou os mesmos temas. Novamente, Lucy ficava fascinada pela falta de reconhecimento de Schroeder e se sentia forçada a invadir o seu espaço. Todos os outros habitantes de seu círculo social estavam acostumados ou toleravam suas manias. Schroeder não, e era exatamente isso que fazia Lucy gostar dele.

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Schroeder foi um dos personagens menos explorados por Schulz, apesar de sua presença constante nas tirinhas. Beethoven e música clássica o consumiam, sendo mais importantes do que suas amizades na vida real. Isso impediu o seu desenvolvimento como personagem. Seu bordão era “Beethoven”, e não havia muito que o autor pudesse fazer para desenvolver a vida ou seu eu interior.

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Com o tempo, Snoopy foi se tornando mais importante, Linus e Sally envelheceram e Schroeder se tornou cada vez mais isolado no mundo dos quadrinhos. Enquanto isso, Peanuts (Minduim) acabou se tornando menos dependente das características de cada personagem, focando mais na química entre eles. Com isso, Schroeder continuou unidimensional. Lucy interagia com ele mais do que com qualquer outro personagem, mesmo que ele a ignorasse. Ela era a única pessoa a desafiá-lo, ainda que por razões egoístas, a fazer algo além de ser obsessivo com relação a Beethoven.

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Lucy lidou com isso de diferentes formas. As vezes o distraía de sua música tentando se mostrar como uma alternativa mais divertida. Isso nunca deu certo. Outras vezes, ela criticava a importância de Beethoven e desprezava a técnica de piano de Schroeder. Isso apenas fazia com que ele se prendesse mais a essas coisas.

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Lucy também tentava outras estratégias: Ela começou a tentar se interessar por Beethoven, lendo sobre o compositor, fazendo gestos simbólicos de apoio. Ela contou a toda vizinhança sobre o aniversário de Beethoven, por exemplo, mas confundiu seu nome afirmando que chamava Karl, em vez de Ludwig. Por fim, depois de tentar tudo que podia, ela fisicamente tentou destruir seu adversário, o que também não funcionou. As coisas que ela destruía eram símbolos de sua admiração, não o que ele de fato admirava, e ele possuía vários objetos do tipo.

Apesar de sua persistência, Lucy nunca iria encontrar o verdadeiro Schroeder que estaria por baixo de seu papel como artista, porque ao que tudo indica, Schroeder nunca desenvolveu uma identidade além disso. Parafraseando Gertrude Stein: com relação a Schroeder, não havia “um lá naquele lugar”.

Além disso, a fascinação de Lucy com Schroeder se tornou o que havia de mais interessante sobre ele. Ele poderia deixar o local e desaparecer completamente das tirinhas, caso Lucy não tivesse o utilizado como meio de botar suas neuroses e inseguranças para fora. Por várias vezes Schroeder sequer falou algo, ou simplesmente saía da sala e deixava Lucy falando sozinha. As tirinhas então foram se tornando menos sobre Lucy incomodando Schroeder e mais sobre Lucy explorando seu próprio horizonte emocional.

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Com os anos, os leitores passaram a ter menos empatia com Schroeder e mais com Lucy, ainda que inicialmente ela fosse a agressora nessa dinâmica disfuncional. Ao menos ela tinha algum conteúdo. Ela se abria para a rejeição sempre que deitava sobre o piano de Schroeder. Ele porém não se abria, e por vezes parecia sentir prazer em suas reações cruéis aos flertes.

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Em 1966, o relacionamento de Lucy e Schroeder beirava o masoquismo. Ela persistia em seus esforços para conquistá-lo, apesar de sua indiferença. Durante uma história estendida, que levou alguns dias, em que Linus e Lucy se mudavam, Schroeder percebeu que sentia sua falta. Ele não conseguia tocar seu piano sem ela por lá. Assim como com Charlie Brown no início da história, os leitores começaram a ficar irritados com sua insensibilidade anterior e falta de emoções.

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A última frase da tirinha acima é uma alusão à peça Pigmaleão e sua adaptação musical, “My Fair Lady” (Minha Bela Dama). Tanto na peça quanto no musical, um professor e linguista abusivo, Henry Higgins, coloca uma jovem de pouca educação, Eliza Doolitle, sob sua tutela. Ao final da peça, uma nova e empoderada Eliza declara a Higgins “Eu sei que sou uma garota ignorante qualquer, e você um cavalheiro estudado, mas eu não sou a sujeira sob os seus pés”.

Ao colocar Schroeder no papel de Higgins, Schulz oferece a mesma crítica ao personagem. Schroeder subestimou Lucy e achou que seu intelecto poderia livrá-lo da conexão emocional e de seus erros. Isso não aconteceu e mesmo depois de ter seu coração partido, Schroeder não aprendeu nada. Quando Lucy voltou para a cidade ao final da história, ela voltou a ficar aos pés de seu piano. Ele sequer percebeu sua presença até que novamente, ela invadisse seu espaço.

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Em uma ocasião especial, em 1972, Lucy encontrou sua dignidade. A turma do Minduim estava jogando beisebol e Lucy era a próxima rebatedora. Schroeder a insultou ao fazer uma aposta que parecia ganha: Ele a beijaria caso ela fizesse um home run. Eis que ela conseguiu. Schroeder parecia devastado enquanto Lucy flutuava no ar enquanto cobria as bases.

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Lucy viu Schroeder a esperando no ponto de chegada, com os lábios preparados e olhos fechados, claramente odiando aquele momento. E então ela percebeu que beijá-lo seria humilhante para ela. Então ela apenas passou ao seu lado, em vez de dar um show para todos ou dar a oportunidade para que ele soltasse um “BLEAGH!”, a envergonhando.

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A frase final, em que Lucy clama seu ato como uma vitória para a libertação das mulheres, é divertido pela hipérbole. Mas para Lucy, esse foi um momento importante de vitória e crescimento pessoal. Por vários anos, ela idealizava uma vida doméstica de felicidade com Schroeder. Finalmente, ela percebeu que isso a tornava em apenas uma coadjuvante. E ela merecia um parceiro, muito melhor do que aquela dinâmica de Higgins e Eliza que Schroeder teria a oferecer. A única forma dela vencer seria, contra intuitivamente, passar reto.

Lucy evoluiu. Antes, ela era uma criança mimada que sentia que o mundo devia algo a ela. Ela não conseguia lidar com a rejeição e buscava atenção de uma forma negativa. Eventualmente, porém, ela encontrou forças para ser o melhor que poderia para si mesma.

Schulz raramente deu aos seus personagens o que eles queriam. Mas o mundo de Peanuts nunca foi um lugar sem espaço para esperanças. Sempre existiram pequenas vitórias espalhadas em meio às derrotas.

<3


Texto traduzido da Kotaku.

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