Os espaços em que vivemos e aprendemos agora parecem prontos para a violência.

O texto a seguir é uma tradução de um artigo de opinião de autoria de Jacob Geller para o site Polygon. Buscamos reproduzir seu relato da maneira mais fiel possível, mantendo inclusive a pessoalidade do texto.

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Os espaços em que vivemos e aprendemos agora parecem preparados para a violência. Após uma década jogando jogos de tiro, finalmente descobri como ver além da decoração.

Os principais gêneros de hoje são esteticamente luxuosos. Mesmo Gears of War, anteriormente conhecido por sua paleta monocromática acabou se tornando em algo vibrante e bonito. Mas por todo o trabalho dos artistas, eu ainda vejo a utilidade nos níveis primeiro. Não importa o quão bonito é um mapa, eu posso sempre apontar quais partes da geometria o jogo deseja que eu utilize como cobertura – e por estar jogando um jogo de tiro, eu obedeço alegremente.

Porém, o fato de que eu posso internalizar o propósito de um mundo com tanta facilidade me preocupa sobre a forma que podemos involuntariamente mudar nosso comportamento para se adequar a um espaço. Porque com crescente frequência o nosso mundo real tem sido desenhado para receber a violência.

A Fruitport High School será inaugurada em Michigan em 2021, e ela exibe diversas características dos jogos de tiro que sou tão familiarizado. Vidro à prova de impacto. Linhas de visão limitadas. Paredes de concreto sólido para proteger os corredores. É a vanguarda de uma nova tendência norte-americana de construção de escolas: desenvolvida para reduzir fatalidades em caso de invasão de atiradores.

Na última década, os cidadãos dos EUA passaram por pelo menos 180 tiroteios em escolas de ensino fundamental e médio. E 2018 foi o ano mais letal até então: 37 mortos e 68 feridos em 29 diferentes ataques. Apesar disso, a Comissão Federal de Segurança nas Escolas dos EUA tem como consenso que o principal fator responsável pelos tiroteios é a disponibilidade de armas de fogo, e é escassa a legislação que trata de forma séria a prevenção destes incidentes. Assim, alguns arquitetos responsáveis por escolas decidiram que não tinham outra escolha senão tratar os tiroteios como algo inevitável em seus projetos.

Mas nem toda escola lida com esse desafio da mesma maneira. Algumas, como a Southwestern High School, em Indiana, tende ao militarismo. Creditada pela NBC como “a escola mais segura dos EUA”, ela tem seus corredores recheados de câmeras de segurança conectadas diretamente ao departamento de polícia local.

Professores carregam “botões de pânico” e cada sala de aula possui uma caixa-preta que pode ser utilizada para pedir ajuda – ou de forma mais perturbadora, “atenção médica”. Talvez o aspecto mais carcerário de tudo isso sejam os canhões de fumaça distribuídos pelo teto de toda a instalação. O departamento de polícia pode remotamente ativar esses canhões, preenchendo os corredores com uma densa fumaça, idealmente capaz de desorientar um atirador.

Outras escolas tentam mudar o planejamento de forma mais “invisível”. A escola fundamental Sandy Hook foi completamente redesenhada após um tiroteio em 2012, mas a nova aparência não parece de imediato alterar algo de seu trágico passado. E o arquiteto Jay Brotman se esforçou para garantir que o prédio parecesse “normal”: a entrada em madeira esculpida de maneira bonita, corredores incorporando a temática de natureza e muitas salas banhadas com luz natural. “Você não pode criar alguém em uma prisão”, afirmou ele ao comentar as escolhas de design.

Mas por detrás da fachada orgânica, a escola sabia que tinha de se preparar para o pior. Todas as portas podem ser eletronicamente trancadas com um toque em um botão, a luz natural entra por meio de vidros à prova de balas e a escola possui literalmente um fosso do lado de fora.

Nós sabemos como espaços desenhados para troca de tiros se parecem.

Quando li sobre essas escolas, não pude pensar de forma diferente dos métodos que os mapas de jogos de tiro são desenvolvidos. Alguns “cover shooters” (jogos de tiro com cobertura), como os primeiros Gears of War e Vanquish sequer disfarçaram a utilidade de seus mundos. Gears of War ajudou a reforçar o estereótipo da “cobertura na altura da cintura” ao construir mundos quase exclusivamente compostos de paredes de pedra baixinhas que você deve usar para se esconder atrás.

O design, apesar de não ser muito realista, claramente comunica ao jogador o que é esperado dele. Mapas construídos desta forma indicam que a forma de jogar é mais importante. Já o ritmo alucinante de Vanquish faz com que cada segundo utilizado para tentar entender a geometria de um mapa é um segundo perdido na busca por uma pontuação recorde. De forma similar, correr entre coberturas em Gears of War causa uma sensação como aquela de jogar boliche em uma pista de boliche, ou seja, o que mais eu poderia fazer aqui?

Outros jogos como Max Payne 3, criam ambientes muito mais naturais. Um escritório parece preocupantemente legítimo. Papéis estão empilhados em mesas de forma convincente, e cubículos são dispostos de uma forma até lógica. Sem nenhum contexto, os locais do jogo poderiam ser confundidos com renderizações de arquitetura de muita qualidade.

Mas quando a violência começou em alguns desses lugares, porém eu rapidamente aprendi que as grandes marcas de design de níveis para jogos de tiro estavam todas presentes. Só levou alguns minutos até o meu cérebro traduzir as mesas e cubículos como o mesmo tipo de cobertura que eu já conhecia em Gears of War. Max Payne 3 inicialmente parecia inocente em sua arquitetura, mas não é. As linhas de visão são absolutamente controladas e os pontos de entrada e saída são cautelosamente escolhidos. Sob todas aquelas camadas de estética e decoração, o universo do jogo foi desenvolvido para a violência.

De forma consciente ou não, nós absorvemos sugestões comportamentais dos espaços em que passamos tempo. E isso não poderia ser mais óbvio do que no caso dos jogos; um mapa em Gears of War nos mostra que a única forma de avançar é flanqueando e utilizando cobertura. E mesmo os espaços de aparência natural acabam se demonstrando como galerias de tiroteios.

Escolas não estão sendo construídas para atiradores, que é a forma como os designers de jogos planejam seus ambientes. Porém, elas estão sendo construídas para defesa, para tornar mais difícil que alguém utilize o ambiente para se tornar um atirador mais efetivo, de forma que seja mais fácil para alunos e professores encontrarem cobertura. Esses designs tentam ser amplamente invisíveis, salvo nos momentos em que se tornem necessários, mas entendamos isso conscientemente ou não, nós ainda temos que saber o porquê destas decisões serem tomadas, e ainda podemos sentir o que eles tentam evitar, em contraste ao que estão tentando encorajar.

A Fruitport High School possui coberturas construídas em suas paredes. Sandy Hook tem câmeras cobrindo cada ângulo de suas instalações. Southwestern possui linhas vermelhas no chão para que os estudantes saibam onde se esconder, indicando as partes de cada sala que não são visíveis a partir da porta. E em diversas escolas por todos os EUA, alunos estão sendo treinados sobre como agir em casos de tiroteios, empilhando cadeiras atrás das portas e ficando em silêncio enquanto os funcionários da escola simulam um atirador girando a maçaneta.

Pouquíssima pesquisa foi feita sobre a eficácia dessa “preparação” para tiroteios – trata-se de um fenômeno muito recente para que haja dados concretos. Mas nós sabemos que detectores de metais, algo que existe há muito tempo nas escolas, já demonstraram razoável aumento no sentimento de insegurança e medo dos estudantes. Eles conseguem sentir as implicações por trás das medidas de segurança, eles entendem os propósitos dos espaços.

Eu adoro o sentimento de dominar um ambiente em jogos de tiro, mas ver essas escolhas de design refletidas em ambientes de estudo lança uma sensação gelada na minha espinha. Ainda que eu tenha certeza que as intenções são as melhores, eu não posso deixar de me preocupar com essa tendência. Se esses são os espaços em que as crianças passarão os anos em que ainda estão se formando, o que acontecerá com as suas percepções de mundo? O que lembretes contínuos acerca da possibilidade de violência farão com crianças de 14 anos de idade? Como os estudantes poderão se desenvolver em um local em que mesmo as paredes são feitas para protegê-los de uma enxurrada de balas?


Texto traduzido e adaptado da Polygon.

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