Não costumo comentar nem criticar publicamente colegas de profissão, por mais que eu não concorde com eles. Mas tem alguns casos que são extremos, casos que parecem piada. Esse texto, em particular, poderia ser publicado facilmente no Buzzfeed como um texto irônico. Mas não. Ele é sério mesmo.

Para vocês entenderem o que está acontecendo, vou explicar: André Forastieri publicou hoje em sua página o texto 16 razões para não assistir 12 Anos de Escravidão que, como a maioria deve saber, foi indicado ao Oscar em várias categorias (nove, para ser mais exata). A questão é, ele NÃO assistiu ao filme, e deixou bem frisado que NÃO assistirá. Como se já não fosse ruim, péssimo, terrível o suficiente para alguém que se diz jornalista criticar tão negativamente algo que não viu, os motivos que ele enumera são, no mínimo, patéticos.

A questão aqui não é se o filme é bom ou ruim, a questão são os critérios de avaliação usados por alguém QUE NEM MESMO VIU O FILME. Fiquei tão engasgada a cada palavra que eu lia, que resolvi publicar o texto dele com comentários aqui:

JÁ VI ESSE FILME

Eu era criança quando passou na TV a minissérie Raízes. O mundo parou para assistir a saga de Kunta Kinte, capturado na África, escravo nos EUA. Depois vi outros com tema similar, Amistad, Queimada etc., e chega. Eu abriria exceção para ver um filme inteligente sobre a escravidão no Brasil. Mas nunca fizemos e duvido que façamos.
Ok, para ele parece um filme clichê. Compreensível. Pessoas que trabalham de alguma forma com filmes se sentem assim muitas vezes. Até aqui aceitável. Vamos para o próximo item.

É FILME DE JUDIAÇÃO

Parei de ver filme com tortura quando meu filho nasceu. Não suporto ver gente sendo espancada, maltratada, picada em pedacinhos. Não assisti nenhum desses Jogos Mortais, e fechei os olhos nas cenas mais horríveis de Django Livre. Virei um coroa banana. Li sobre as “cenas fortes” de 12 Anos de Escravidão, e não são para o meu estômago.
Sério? Não, calma… Sério? Eu li “judiação”? (JUDIAÇÃO!) Tudo bem, algumas pessoas são extremamente sensíveis a cenas fortes mesmo. Algumas pessoas são TÃO sensíveis que existem filmes que eu também recomendo não assistir. Mas um crítico de cinema falar que não assiste um filme por ter cenas fortes. Isso é SÉRIO?

É FILME DE CHORADEIRA

Não vejo filmes lacrimosos, sejam com escravos ou não. A Cor Púrpura é o único filme de Steven Spielberg que nunca vi nem verei.
Mas esse cara é muito sensível. Daqui a pouco ele tá recomendando para a galera não ver O Rei Leão por ser triste demais (eu choro muito, mesmo depois das cem vezes que assisti).

A FOTOGRAFIA É LINDA

Vi no trailer aquela luz dourada, aquele enquadramento épico. Não tem recurso cinematográfico mais repulsivo que fotografar lindamente o horrível.
Aqui começou a virar realmente palhaçada. Você não deve assistir porque um filme sobre escravidão deve ter a fotografia porca. Joinha pra você, amigo. Fotografar ‘lindamente’ algo horrível é a melhor maneira de chamar a atenção de todas as pessoas, não é crime nenhum. Ninguém vai achar menos horrível por isso.

O DIRETOR É PSEUDO

Steve McQueen é inglês, negro, mora em Amsterdam. É metido a artista, fotografa, faz esculturas, dirigiu filmes experimentais. Cita como grandes referências Andy Warhol e a Nouvelle Vague. É casado com uma crítica de arte. Vi Shame, filme anterior dele, sobre um viciado em sexo. É lentíssimo, a maneira mais preguiçosa de denotar realismo. Fora que tem o nome errado. O Steve McQueen que eu cresci curtindo era americano, branco, tarado por carangas e casado com Ali McGraw.
Adoro a maneira como a palavra “pseudo” é normalmente usada por pessoas tão “verdadeiras”.

É FILME PARA GANHAR OSCAR

Quem vota nos prêmios do Oscar? Já expliquei em detalhes uma vez, leia aqui. Mas o prêmio de melhor filme geralmente vai para histórias de superação, dramáticas, tocantes, e se tiver minorias envolvidas, as chances aumentam.
Nossa, aqui temos realmente um problema. Um filme para ganhar Oscar realmente não deve ser assistido. Jamais. Principalmente se a história for de superação, drama, tocante, e, pior ainda, quando tem minorias envolvidas. Se tiver minorias você sabe que vai ser um lixo. /ironia

É FILME PRA GANHAR DINHEIRO

McQueen sempre fez filme pra ganhar prêmio, e ganhou muitos. Agora fez um pra ganhar prêmio e dinheiro. Brad Pitt é o produtor, e espertamente reservou um papel para si mesmo, para turbinar a possibilidade de faturamento. 12 Anos de Escravidão custou vinte milhões de dólares. A bilheteria já passa dos 130 milhões. Se levar uns Oscars, pode chegar a duzentos milhões.
Vou te contar um segredo: artista também come. Ganhar dinheiro não é coisa do demônio, nem fazer algo com esse objetivo, principalmente se você tiver qualidade e um bom propósito atrelados.

É BASEADO EM UMA “HISTÓRIA REAL”

Proliferam filmes que se dizem baseados em histórias reais. É uma tática marketeira pra fazer o espectador se importar com o filme. Muitas vezes são só ligeiramente inspiradas na realidade.

É o caso? Não sabemos. Northrup não escreveu 12 Anos de Escravidão, ou pelo menos não escreveu sozinho. Aparentemente ele contou a história para David Wilson, escritor profissional, que era branco. Northrup foi fiel aos acontecimentos? Wilson foi fiel ao relato de Northrup? Jamais saberemos. O livro vendeu bastante quando lançado, mesma época do sucesso de outro livro sobre a crueldade da escravidão, “A Cabana do Pai Tomás”.
“[…]escritor profissional, que era branco”… “que era branco”… “QUE ERA BRANCO”. Mas o que o c* tem a ver com a calça? O que tem a ver???

OS SOFREDORES SÃO LINDÕES

Já viu filme em que as minorias perseguidas são corcundas, banguelas, desconjuntadas? Nem eu. E nem você verá em 12 Anos de Escravidão.
Ok, esse eu acho que é um problema realmente genuíno de Hollywood. Mas se esse for um motivo para você não assistir alguma coisa, você não vai assistir nada.

É FILME OBRIGATÓRIO

De vez em quando aparece um desses, que todo mundo tem que assistir, porque “importante”, edificante, promove valores etc.
Aff, e quem quer perder tempo com um filme edificante, que promove valores? Que absurdo. /ironia

BRAD PITT

É ruim em filme de ação e pior que péssimo em drama. Também produziu este filme, o que talvez explique o visual estilo “Lendas da Paixão”. Brad devia só fazer comédia, onde manda bem (vide Bastardos Inglórios e Queime Depois de Ler).
Ou esse é o pior crítico do mundo ou o mais invejoso. Só digo uma coisa: Clube da Luta, Entrevista com Vampiro, Se7en, Onze Homens e um Segredo, Tróia, O Curioso Caso de Benjamin Button (menos a A Árvore da Vida, esse filme não PELO AMOR DE DEUS). Ok, foi mais de uma coisa, e ainda poderia falar mais se quisesse.

ELENCO DE GIBI

Michael Fassbender é Magneto. Benedict Cumberbatch é Sherlock Holmes. Eu veria um filme promovendo o encontro do mestre do magnetismo com o mestre dos detetives. Mas não este.
Certamente um bom motivo. Não devemos assistir O Senhor dos Anéis, O Poderoso Chefão, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, etc. Mas afinal, QUAL O PROBLEMA COM OS FILMES QUE SÃO SOBRE QUADRINHOS?

A CRÍTICA É UNÂNIME

E toda unanimidade é burra. De 250 críticos pesquisados pelo site Rotten Tomatoes, 96% deram notas 9 ou 10 para 12 Anos de Escravidão. Foi escolhido como melhor filme de 2013 por Peter Travers e Owen Gleiberman, respectivamente da Rolling Stone e Entertainment Weekly, que não entendem nada de coisa nenhuma.
HAHAHAHAHAHAHAAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHAAH…. Não, não…. pera…. HEUHEUEHEUEHUEHEUHEUEHEUHEEHEUHEUEHEUHEUEHUEHUEHEUHEUEH
EUHEUEHEUHEUEHEUHEUEHUEHEUEHUEHEUHEUEHEUHEUEHUEHEU

E OS ESCRAVOS DE HOJE?

A escravidão continua, disfarçada ou semi. Muitos dos governos que restringem a liberdade de seus povos contaram e contam com o apoio financeiro e militar dos Estados Unidos. Para citar um óbvio, sobre o qual escrevi, está aí a Arábia Saudita. Hollywood é hipócrita: só aplaude filme-denúncia sobre o passado distante.
Ai meu deus do céu, mas por causa disso você não vai assistir um filme? Porque se passa em tempos antigos?!?!?! Realmente, Hollywood não é o melhor lugar para você procurar um filme que critique o governo americano, mas isso não determina se um filme é bom ou ruim. Mas se não for ver porque já é algo “ultrapassado”, tenho uma lista bem grande de outras coisas que ninguém pode ver.

PARECE CHATO PRA DEDÉU

Assisto filmes desde 1970 e aprendi a confiar na minha intuição: se parece ruim, é ruim. Também aprendi com Jorge Luiz Borges a relaxar sobre minhas supostas obrigações de ler ou assistir isso e aquilo. Ele ensinou: tudo se permite a um livro, menos que ele seja chato. Vale para cinema – em dobro.
Parece? PARECE? Você fez um texto HATER GIGANTE BASEADO EM PARECE? Por hoje basta, né. Ops, ainda tem mais um!

NÃO TENHO CULPA

Todo império teve seus escravos, da Mesopotâmia à Inglaterra. Na América Latina, portugueses e espanhóis escravizaram os nativos. Todos nós temos antepassados escravos, servos, oprimidos. Os africanos foram trazidos à força para a América, crime imperdoável – mas um entre muitos, cometido há muito tempo. Me incomodam bem mais os crimes cometidos hoje. Não tenho a menor culpa pelo sofrimento dos escravos brasileiros, que dirá dos escravos americanos do século 19. Assino embaixo da análise do escritor Orville Lloyd Douglas, canadense e negro: “não vou assistir. Esses filmes são criados para uma audiência branca e liberal, para fazer esse público se sentir culpado”.
Por favor, alguém me mate. A este ponto já perdi a fé na humanidade. Você pode nunca ter escravizado ninguém, mas esse seu texto é um crime. UM CRIME. Me sinto violentada.

Não tenho nem como escrever a saideira do post, não estou bem.

[UPDATE] Montagem genial feita pela Babs! Vamos iniciar essa campanha!
andré forastieri

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