Daria um ótimo episódio!

Sim, a série da Netflix é baseada, principalmente, nos livros de Andrzej Sapkowski, e sua equipe criativa já afirmou que não planeja utilizar as linhas do tempo dos jogos na série. É impossível dissociar completamente os dois trabalhos. A imagem de Geralt de Rívia com seus cabelos brancos não seria tão marcante sem os três jogos que o apresentaram a maior parte do público, e o ressurgimento do interesse pelos games após o lançamento da série demonstra como as obras estão amarradas. A verdade é que muitos de nós decidimos dar mais uma chance aos jogos por causa do lançamento, e depois de algum tempo fica difícil não imaginar como algumas das missões do jogo poderiam ser adaptadas para a série.

E nesse contexto, uma das missões parece ser a mais fascinante: “O gorjeio de um cavaleiro ferido”. Enquanto passeia pelo continente aceitando contratos para investigar e matar criaturas problemáticas, Geralt eventualmente acaba chegando ao Ducado de Toussaint, onde conhece um jovem cavaleiro chamado Guillaume. O cavaleiro demonstra interesse em uma das jovens acompanhantes da duquesa, a bela Vivienne, e acredita que as negativas recebidas em suas aproximações e a frieza com que a jovem trata os demais pretendentes é consequência de uma maldição que a aflige.

Vocês podem pensar algo do tipo “esse pode ser um reino mágico, mas Guillaume, não será possível que ela apenas não esteja interessada?”. E as coisas não ficam mais fáceis quando Guillaume pede que Geralt entre em um torneio no seu lugar, já que os participantes poderão passar algum tempo conversando com Vivienne. E durante a missão, ele ainda pede que Geralt investigue a tenda dela. Que fique claro: não importa se ele está apaixonado (ou, pelo menos, interessado) – isso é perseguição e assédio.

E é por isso que sentimos um grande alívio ao descobrir que, apesar de Vivienne realmente ser afligida por uma maldição, isso não tem nada a ver com a forma como ela ignora os avanços de Guillaume. Ela não gosta dele pelas razões óbvias: ele força a barra, é arrogante, egocêntrico e não aceita um ‘não’ como resposta.

O jogo oferece de fato uma saída decepcionante em que Geralt conta sobre a maldição de Vivienne para Guillaume, ainda que ela tenha pedido para o bruxo manter sua condição em segredo. Se os jogadores seguem por essa rota, Guillaume ajuda a reverter a maldição e eventualmente os dois acabam ficando juntos. E isso quer dizer que eles não ficam juntos caso Geralt escolha respeitar a vontade de Vivienne. Na verdade, seguindo essa rota, quando Guillaume afirma que faria qualquer coisa por ela, Vivienne ordena que ele a deixe em paz para sempre. E se o jogador posteriormente afirma que ela deveria agradecer pessoalmente ao cavaleiro, ela afirma que não quer fazê-lo e diz que Geralt pode agradecer por ela caso deseje. Nesse cenário, em que Guillaume não fica com Vivienne, ele é incapaz de enxergar seus erros, culpando Geralt por não “torná-la mais receptiva”. Além disso, Vivienne decide seguir atrás de seus sonhos e viajar pelo mundo, conhecendo diversos lugares que jamais poderia visitar por causa de sua maldição. É um final excelente para a história.

Os dois primeiros jogos tinham uma reputação ruim por tratarem as personagens femininas como figuras decorativas, mas The Witcher 3: Wild Hunt dá às suas personagens mais personalidade e vontade própria. E ainda que a missão ofereça um caminho em que o babaca fica com a garota, a missão é especialmente satisfatória por trabalhar figuras da alta fantasia para lidar com problemas de comportamento comuns na sociedade. As recompensas da missão são em sua maioria ligadas ao sucesso de Geralt no torneio, e não às suas escolhas morais, e a grande escolha que muda o rumo da história é se Geralt conta ou não o que está acontecendo para Guillaume. Essa escolha é tratada pelo jogo como uma “prova de honra”. E isso é um lembrete claro de que se alguém não é receptivo a investidas “românticas”, isso não quer dizer que haja algo de errado com essa pessoa. E que mesmo havendo algo de errado, assédio e perseguição não são a forma correta de ajudar. O fato de a insistência de Guillaume aproximar Geralt e Vivienne é apenas um acidente feliz.

Algumas das melhores partes da série da Netflix são as histórias complicadas que permitem às personagens femininas – uma sobrevivente de um estupro cujo objetivo é vingança; uma mulher que abre mão de sua fertilidade para mudar sua aparência e se adequar aos padrões de beleza que permitiriam a ela obter uma posição de poder; uma rainha que abertamente enfrenta as diferenças e expectativas impostas sobre homens e mulheres.

A série cria empatia por essas personagens e aponta o dedo em direção às estruturas machistas e opressivas que as amarram.

“O gorjeio de um cavaleiro ferido” segue essa ideia, enfrentando ideias ultrapassadas e ofensivas de que as mulheres devem se sentir alegres por receber qualquer atenção (ao menos se o jogador escolhe respeitar a vontade de Vivienne).

Essa missão encaixa perfeitamente nas temáticas já apresentadas pela série, não apenas por se posicionar sobre uma questão que é experiência comum a muitas mulheres, mas também pelo herói da série (o homem forte e másculo) permitir que a “donzela em perigo” faça suas próprias escolhas.

Boa parte da história de The Witcher (série) segue o padrão de “monstro da semana”, com apenas seus protagonistas expressando pensamentos importantes. Esse tipo de história é algo que a série deveria explorar um pouco mais, sem dar abertura para Guillaume. A missão parece uma extensão natural da história da série, e seria, de forma concreta, uma forma de apresentar a melhor parte dos mundos de Witcher sem a pegada de “escolha sua aventura”.


Fonte: Polygon

Leia mais sobre The Witcher aqui no site!

Compartilhe: