Ao longo das sete temporadas de Game of Thrones, o público é exposto a uma variedade de sequências de violência e gore. A maioria delas é tão fantástica que nenhum membro da plateia provavelmente os experimentará na vida real: ser queimado até a morte por um dragão, dar a luz a um monstro sombrio ou ter a cabeça explodida após um gigante pressionar com força seus olhos.

Sentimos simpatia, horror ou desconforto ao ver essas cenas em alta definição na HBO, em grande parte devido à improbabilidade de que algo disso pudesse acontecer conosco. No entanto, a agressão sexual que permeia a vida das personagens femininas na série não está tão distante das experiências das espectadoras.

Segundo estatísticas recentes, cerca de uma em cada cinco mulheres sofrerá algum tipo de agressão sexual. Se isso não aconteceu com você, você quase certamente conhece alguém que foi vítima. Este não é um problema novo; pessoas foram estupradas ao longo de toda a história humana, na maioria das vezes vitimizadas por homens. George R.R. Martin explicou seu uso frequente do estupro em seus livros ao adotar o conceito vago da “precisão histórica” – mulheres foram agredidas ao longo da história humana, então excluir essa realidade de seus livros (e, por associação, da série de TV) seria apresentar uma “realidade artificial”, ou assim diz a suposta lógica dele. Claro, Game of Thrones não é um drama de época muito tradicional. Obviamente, os eventos da série nunca aconteceram na história humana (dragões, zumbis de gelo, sombras assassinas e assim vai), e defender seu uso de estupro com base na precisão histórica é desconsiderar, bem, a história real.

Martin explicou em um post de blog em 2014 que ele queria tornar o mundo de Westeros o mais historicamente preciso possível, a fim de tornar os mais fantásticos elementos melhor fundamentados. A adaptação da HBO, criada e dirigida por David Benioff e D.B. Weiss, não só incluiu todos os incidentes de estupro que Martin escreveu em seus livros como adicionou novas personagens femininas apenas para a degradação sexual e acrescentou novas instâncias de violência sexual contra personagens que não foram tratados dessa maneira nos livros (Sansa, por exemplo). E esse é o nosso maior problema com a série.

Um estudo de 2017 da Trinity University descobriu que 90% dos adolescentes entrevistados acham que a violência sexual em Game of Thrones é historicamente precisa, apesar de também reconhecerem que os eventos do programa são fictícios. Algo sobre a série – talvez o objetivo de Martin de realmente fazer o mundo de Westeros mais real – parece verídico para os espectadores. A sensação de que as mulheres eram tanto valorizadas como brutalizadas é uma narrativa difundida em muitas ficções históricas e fantasiosas. Esse sentimento de que as mulheres costumavam existir simplesmente para ter filhos e morrer é uma pequena parte de uma crença abrangente de como as coisas costumavam ser, o que alimenta o atual pânico das políticas de direita sobre querer tornar as coisas “boas novamente” (o lema “make things great again” de Donald Trump é um exemplo disso).

Isso não quer dizer que Martin ou Benioff e Weiss estejam trabalhando de forma altruísta para iluminar a luta das mulheres na Inglaterra medieval. O que eles fizeram é mais uma maneira de incluir sexo e peitinhos de forma aleatória em um programa que é principalmente sobre uma crise política. Às vezes os estupros ajudam a inspirar os personagens masculinos a alcançar epifanias morais; às vezes as personagens femininas parecem não perceber que foram brutalizadas, inclusive. Todas essas cenas nos lembram, e os personagens, que neste mundo, as mulheres – mesmo as mulheres ricas, até mesmo as da realeza – não são respeitadas.

Certamente, as atitudes sexuais mudaram ao longo dos últimos cem anos, mas quanta diferença há entre uma cena de estupro em Game of Thrones versus alguma de um episódio de Law and Order: SVU? A particular objetificação e glorificação da impotência sexual feminina está – longe de ser histórica – particular à nossa era e cultura atuais.

Nada disso significa que o estupro não era pelo menos tão prevalente no período medieval quanto é agora, mas provavelmente não ocorreu de maneira tão difundida e malévola contra todas as mulheres e garotas do jeito que faz com as personagens de Game of Thrones. As mulheres da série, muitas vezes rainhas e damas de alta classe, mas também camponesas, parecem aceitar isso como um fato da vida nesta terra brutal. Na história medieval real, os estupradores podiam ser processados – não que eles fossem condenados com mais regularidade do que no século 21, mas levar um agressor a tribunal era uma opção, particularmente para mulheres com dinheiro para pagar um longo julgamento. É claro que quase metade das mulheres que denunciaram os acusados foram mais tarde acusadas de caluniar os nomes (ou a “honra”) de seus agressores – quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas.

Martin afirmou ao New York Times em 2014 que “o estupro e a violência sexual fizeram parte de todas as guerras já travadas, desde os antigos sumérios até os nossos dias atuais”. Sabe o que mais foi? Disenteria, uma infecção intestinal repulsiva que tendia a se espalhar entre os soldados em campanha, assim como em qualquer pessoa que vivesse em locais onde a água pudesse ser afetada pelo lixo humano. Os homens afetados espalhariam a doença devido à falta de higiene, pois defecavam no chão ao redor das barracas em que dormiam ou bebiam água contaminada. E o engraçado é que a disenteria, junto com outros flagelos da guerra como a cólera e a peste, não aparece quase nunca para oferecer “precisão histórica” às narrativas fictícias. Vá lá uma infecção a la Drogo pra variar.

O parto também era uma experiência medonha e anti-higiênica em que mãe e filho frequentemente morriam – algo bem distante do flashback romântico e nebuloso da última temporada em que a mãe de Jon Snow (Kit Harrington) morreu em tom de sépia em uma torre estilo Rapunzel. Infecções sanguíneas, dentes podres, membros dobrados por causa de ossos quebrados ou mal definidos – todos historicamente precisos, mas não tão animadores quanto mais outra daquelas cenas de uma prostituta nua sendo brutalizada pelo vilão da temporada.

Outra alternativa, se os showrunners não quiserem investir orçamento em uma diarreia bem realista, seria deixar as coisas nas mãos da própria natureza, como por exemplo mostrar qualquer um dos personagens femininos frequentemente nus da série com pelos corporais visíveis – já que naquela época a depilação estava bem longe de ser moda. Para um programa conhecido por sua disposição de fazer enormes esforços para oferecer cenas cada vez mais gráficas de violência e estupro para causar incômodo ou chocar as pessoas com esses tipos de enredos, isso seria fichinha, não? Mas no final das contas, diarreia e sépsis são coisas muito grosseiras, perturbadoras demais, desagradáveis demais para serem transmitidas na HBO em uma noite de domingo mas agressão sexual, aparentemente, está tudo bem, né? T:

A Guerra das Rosas, uma luta de quase 40 anos pelo poder que Martin afirma ter sido a principal inspiração para o seu trabalho foi também a fonte de inspiração para os romances de Philippa Gregory: os livros The White Queen e The White Princess. Como livros, cada um incluiu uma cena de estupro em que suas heroínas protagonistas são agredidas pelos homens que eles amariam mais tarde no enredo. Ao adaptar os livros para a televisão, no entanto, as produtoras Emma Frost e Gina Cronk respeitaram tanto a história real quanto o material de origem – e, crucialmente, o impacto dessas cenas em um público do século XXI. Em The White Princess, Lizzie (Jodie Comer) é estuprada por seu marido, Henry (Jacob Collins-Levy), algo que a própria mãe ordenou que ele o fizesse. Na série, porém, Lizzie o provoca, desafiando-o a tomá-la à força, o que ele faz recuar. Quando o casal faz sexo, é nos termos dela. A história real nos diz que Lizzie deu à luz um bebê apenas oito meses depois de se casar com Henry; o romance presume que deve ter sido devido ao estupro, mas a adaptação encontrou outra maneira de trabalhar isso dentro dos fatos históricos. As versões de TV de Lizzie e Henry compartilham os nomes e as experiências de vida em geral de quatro personagens nobres da vida real e no entanto, apesar de uma maior fidedignidade para reivindicar precisão histórica, a série reimaginou as sequências para provar o mesmo ponto sem precisar retratar cenas de violência. E este é só um entre vários exemplos.

Qualquer peça de mídia mostra tanto sobre o tempo e a cultura de sua criação quanto sobre o mundo que ela inventa. Martin em seus livros, assim como David Benoiff e Daniel Weiss na série de TV, são capazes de criar um mundo cheio de magia, dragões, personagens poderosas e complexas em histórias épicas. Mas eles foram incapazes ou não quiseram imaginar um mundo onde as mulheres são respeitadas, em vez de usar estupro como fator de manutenção de status quo.

A agressão sexual nos livros e na série às vezes é parte importante da narrativa, o que levanta a questão: por que contar essa história tantas vezes? GOT repetiu essas cenas várias vezes! Por que não imaginar um mundo variado como a Europa medieval, mas em que as mulheres são tratadas minimamente como pessoas? Por que não, ao adaptar um livro ao cinema ou à televisão, questionar o uso do estupro pelo autor e subverter ou excluir essas cenas? Martin forneceu um projeto que os produtores da série de Game of Thrones expandiram, não apenas incluindo cada cena de violência sexual dos livros, mas adicionando suas próprias e até mesmo colocando ainda mais reviravoltas de dar náuseas junto daquelas que já existiam.


Traduzido e adaptado do TheMarySue

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