Subtextos importam e, nesse caso, criminalizam um movimento legítimo.

A Ubisoft, gigante empresa francesa de jogos, afirma em seu site oficial que Tom Clancy’s Elite Squad é um novo mobile de RPG gratuito da Owlient, um estúdio da própria Ubisoft. Nele, o player poderá, pela primeira vez na franquia de videogames de Tom Clancy, montar todos os heróis e vilões mais icônicos do jogo em batalhas de tiro.

Mas eis o problema: no Elite Squad, os jogadores enfrentam o grupo anarquista UMBRA, que se traduz como “sombra” ou “escuridão”. E essa organização tinha como símbolo um punho negro em riste, que é diretamente associado ao movimento Black Lives Matter.

E a situação piora. O vídeo de introdução do jogo começa com a seguinte apresentação:

O mundo está em um estado alarmante. Guerras, corrupção e pobreza o tornaram mais instável do que nunca. À medida que a situação piora, a raiva está crescendo. Entre as rachaduras, uma nova ameaça emergiu para tirar proveito da escalada da agitação civil. Eles são conhecidos como UMBRA, uma organização sem rosto que quer construir uma nova ordem mundial. Eles afirmam promover uma utopia igualitária para obter apoio popular; enquanto nos bastidores, a UMBRA organiza ataques terroristas mortais para gerar ainda mais caos e enfraquecer os governos.

Esse vídeo repete de forma assustadora vários pontos, sublinhados acima, do discurso da extrema-direita estadunidense sobre os manifestantes e defensores do BlackLivesMatter: que militantes são terroristas com interesse único de criar caos, quebrar e queimar carros, destruir lojas de pessoas inocentes e tirar o foco do que realmente interessa: discussões governamentais que não incluem pessoas não-brancas. E deveria ser desnecessário comentar isso, mas é preciso: essa visão é fraca e desinformada. Abordaremos mais adiante sobre isso no post. Se eduquem também sobre o movimento BLM com esse texto.

Intercalados no vídeo estão soldados mirando em uma multidão de civis, o que corrobora bastante com a visão de que queriam igualar o jogo com a situação dos protestos que estão acontecendo atualmente em todo o mundo.

Obviamente, essas informações do jogo se espalharam rapidamente pela internet e muitos começaram a criticar a Ubisoft nas redes sociais pelas imagens ofensivas que alinham o punho do movimento do Poder Negro com uma organização terrorista fictícia, dando a entender que militantes antifascistas do movimento BLM também podem ser vistos como vilões.

Em seguida, a empresa lançou uma curta nota de desculpas:

A inclusão da iconografia foi certamente um detalhe preocupante no trailer, mas estava longe de ser a única peça problemática deste quebra-cabeça. A premissa do jogo, pelo menos como descrito até aqui, é que os protestos e a agitação ao redor do mundo estão sendo controlados e manipulados por uma organização sombria voltada para a dominação mundial.

Este é um tropo clássico da extrema-direita levantado em um esforço para deslegitimar protestos populares, frequentemente tingidos de anti-semitismo e referências a George Soros. Lançar um jogo que depende desse tropo seria irresponsável em qualquer momento, mas parece especialmente perigoso agora.

E daí surge outro problema ainda maior: vários redatores do projeto tweetaram que foram informados de que a Umbra era mais parecida com James Bond ou uma organização no estilo SPECTRE, e que não tinham ideia de que ela seria estruturada dessa forma:

Trad.: [Irritado com o uso do punho do poder negro aqui. Eu trabalhei na biografia dos personagens e fui informado que a UMBRA era supostamente uma organização de vilões estilo James Bond, não algo parecido com o que as pessoas conspiracionistas da QAnon pensam que está acontecendo. Ótica irresponsavelmente ruim.]

Brenden Gibbons continua a discussão em sua thread, que traduzimos aqui:

Só para esclarecer, eu fui um dos vários escritores externos que fizeram algumas das biografias dos personagens, e pelo menos nenhum de nós viu essa cutscene. Porque se alguém tivesse me mostrado, eu teria exposto essa merda.

Nota final: fico feliz que outros estejam zangados com isso. Essa coisa é uma tremenda porcaria e, em última análise, é uma falha sistêmica massiva que não foi detectada por ninguém que estava trabalhando nisso. Também não acredito que houve intenção de malícia. No entanto, isso não desculpa o erro.

Este problema é emblemático de como o sistema está ruim atualmente. Isso é o que você obtém com a falta de comunicação, sensibilidade e diversidade. Os jogos podem ter um desempenho melhor e precisam parar de ser tão ignorantes culturalmente.

Então algumas pessoas apontaram para o fato de que o trailer anterior do jogo, lançado na E3 de 2019, era totalmente genérico. E isso dá a entender que a parte da UMBRA e todo o discurso anti-militância foi adicionado depois, possivelmente já em 2020.

Enquanto isso, a empresa insiste em dizer que seus jogos evitam mensagens políticas, mesmo quando esses jogos dançam desajeitadamente em torno de questões da vida real.

É importante notar que a premissa do jogo não está completamente fora do normal para um título de nome “Tom Clancy”, que foi um romancista conhecido por suas histórias militares e de espionagem ambientadas durante e após a era da Guerra Fria, e também conhecido por suas opiniões de direita conservadora.

Mas o ponto principal a discutir aqui é que, apesar do pedido de desculpas da empresa sobre o “uso insensível da imagem do movimento BLM“, as críticas ao Elite Squad permanecem válidas: o enquadramento do jogo como um todo é igualmente insensível e prejudicial. Os EUA estão mesmo em um estado de convulsão social, mas é graças a séculos de racismo sistêmico.

Lançar um jogo que sugere que ações de protesto são na verdade apenas cobertura para o terrorismo em meio à nossa realidade atual parece a própria definição de insensitividade. Tão insensível quanto lançar um jogo que é literalmente uma glorificação da atuação de “unidades fantasmas” da polícia que operam à margem da lei como se elas fossem os verdadeiros heróis, esbanjando violência na suposta tentativa de “proteger a população do mal invisível”, baseados em nada além de teoria da conspiração.

É também, como muitos críticos apontaram, a capitalização grosseira de uma manifestação real.

A comparação disso pode ser feita também nacionalmente se considerarmos a “Caveira”, que é uma personagem brasileira inspirada na força de operações especiais da polícia do Rio, o BOPE – o que é engraçado, já que considerar um batalhão de operações conhecido e criticado pela truculência policial, pela associação com o crime organizado e também pelo racismo sistêmico que pratica como se ele fosse uma unidade antiterrorista é no mínimo contraditório. Se bem que até hoje as pessoas acham que Tropa de Elite é um filme que elogia a corporação e não que gera uma crítica à corrupção dentro dela…

É fundamental que façamos uma análise do subtexto de todos os jogos que consumimos, se queremos ser conscientes sobre essa forma de entretenimento.

Tudo é político, tudo é influenciado pelo meio social. Tentar se esquivar das críticas legítimas ao jogo com o argumento de que elas são “politicamente corretas” é assinar atestado de ignorância. 

E é bem verdade que todo o imaginário e subtexto do jogo até o momento, como podemos concluir até aqui, possuem de fato um cunho fascista: em um mundo cheio de corrupção, pobreza e guerras, são os vilões que estão por trás dos manifestantes, que são seus fantoches, enquanto o governo é o herói da história. Um governo “forte” que atua com violência e às margens da lei em busca de um “bem maior”.

Se esse fosse um erro cometido por um funcionário apenas, o funcionário em questão deveria ser demitido, visto a gravidade da coisa. Mas ao que parece, toda a mudança foi planejada, como se fosse uma provocação, uma forma de atrair atenção para o jogo, custe o que custar.

E daí resta a dúvida: essas ações da empresa são feitas propositalmente? Por que é sinceramente muito difícil acreditar que essa questão passou por uma equipe inteira até ser lançada ao público sem ninguém apontar a problemática. O processo de desenvolvimento de jogos eletrônicos pode passar por produtores, designers, programadores, artistas, engenheiros de som, testadores… É difícil imaginar que ninguém viu. E como citamos acima, muitos dos funcionários do projeto realmente tinham uma ideia completamente diferente do que seria o jogo.

Vale notar também que o próprio significado da palavra “UMBRA” colabora muito com a ideia de que tudo foi feito com a intenção de que ela fosse associada ao BLM. E levando em consideração o momento em que vivemos, em um dos maiores picos da maior manifestação histórica dos Estados Unidos, é impossível crer que o símbolo utilizado no jogo não seria reconhecido pelo público. Ainda mais sendo uma marca inconfundível que faz parte do repertório de imagens da resistência negra, que vêm sendo usados desde os anos 1700:

O punho erguido foi usado pela primeira vez no início do século 20 como um símbolo de promoção da solidariedade da classe trabalhadora, bem como da oposição antifascista ao partido nazista e às forças nacionalistas durante a Guerra Civil Espanhola. Eventualmente ele foi adotado pelo movimento Black Power nos EUA.

Tendo dito isso, será que a empresa deliberadamente alterou o projeto inicial e divulgou esse tipo de material pensando que um certo nível de risco seria tolerável? Não é difícil acreditar nisso, afinal esta não é a primeira vez que a Ubisoft enfrenta críticas este ano. Vários executivos, incluindo o diretor de criação Serge Hascoët, o vice-presidente de serviços editoriais e criativos Tommy François e o vice-presidente Maxime Beland, renunciaram depois que vários relatos da mídia descobriram que a empresa lidou mal não só com reclamações sobre má conduta sexual e comportamento impróprio, mas também com racismo e outras formas de violência durante anos. Fizemos, inclusive, um post explicativo aqui no site sobre a pressão dessa direção para diminuir o protagonismo feminino nos jogos da franquia de Assassin’s Creed.

Por fim, nossa última dúvida: basta apenas retirar as imagens do jogo? A premissa dele permanece a mesma e o estrago já está feito, com ou sem a intenção de fazer alusão direta ao BLM.


REFERÊNCIAS:

FORBES. Ubisoft To Drop Fist Imagery From ‘Tom Clancy’s Elite Squad’ Over Complaints It Demonizes Black Lives Matter

______. Ubisoft’s ‘Tom Clancy’s Elite Squad’ Appears To Cast Black Lives Matter Protestors As Villains

THE MARY SUE. Ubisoft Apologizes, Removes Black Power Fist From Tom Clancy’s Elite Squad

MASHABLE. Ubisoft facing backlash over new Tom Clancy game’s gross use of Black Power imagery

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