Essa não deveria ser uma série sobre shipps. Nem toda história precisa de romance.

***ALERTA DE SPOILER: O texto a seguir discute a trama do episódio 7 da quarta temporada de The Handmaid’s Tale***

Poucas séries para televisão são tão brutais e sombrias quanto a premiada série da Hulu, The Handmaid’s Tale. A marcante obra, baseada no clássico de Margaret Atwood, nunca evitou abordar violência (sexual, física ou mental) e o quão desumana é a vida sob o regime autoritário e fanático de Gilead. E de acordo com parte da crítica, talvez ela devesse. A série tem sido criticada ultimamente por sua brutalidade excessiva, que por vezes cruza o limite do que seria considerado território da exploração de pornô de tortura.

Muitos fãs focam menos na alegoria social e política que é a série. Para eles, o foco da série e a razão pela qual continuam a assistir aos episódios, é um shipp criado por eles entre os personagens June Osborne (Elisabeth Moss) e Nick Blaine (Max Minghella). O shipp, conhecido pelos fãs como Osblaine (para ficar mais parecido com OfBlaine), começou quando Serena Joy forçou seu motorista Nick e a relutante aia June a transarem para que ela engravidasse. Esse encontro acabou rapidamente, mas deu liberdade para os dois terem mais encontros sexuais, o que culminou no nascimento da bebê Nichole. Com o decorrer das quatro temporadas, June progrediu de uma aia rebelde para uma heroína popular revolucionária e agora se tornou uma refugiada política buscando asilo no Canadá. Nick progrediu de guardião/motorista para espião disfarçado, um “Olho”, e agora é o Comandante Militar de Gilead, em Chicago.

Agora que June está a salvo no Canadá, ela reencontrou seu marido, Luke (O. T. Fagbenle) e a bebê Nichole. Ela foi uma prisioneira de Gilead por 7 anos, submetida a inúmeros abusos sexuais, espancamentos e tortura. Estamos falando de quase uma década de traumas, cujos resultados são as explosões de June em direção a aquelas pessoas que ela ama.

June (Elisabeth Moss) e Luke (O-T Fagbenle) se reencontrando. Créditos de imagem: Sophie Giraud/Hulu.

E os shippers de Osblaine rapidamente começaram a apontar que June e Luke não são mais compatíveis… O que provavelmente é verdade, afinal June é uma pessoa completamente diferente agora. E levando em consideração o que ela fez com Luke no episódio anterior, eles certamente ficariam melhor separados.

Nick entende o sofrimento de June melhor do que a maioria, pois presenciou seu sofrimento ao seu lado. Mas não podemos esquecer que Nick, apesar de suas tentativas de salvá-la, escondê-la e defendê-la, ainda é um membro ativo de Gilead. Como Comandante, ele executa a lei de Gilead e lidera os esforços para massacrar os rebeldes nas zonas de guerra de Chicago. E como Comandante, ele ajuda a manter o uso de estupro e gravidez forçada de mulheres em Gilead, a fim de expandir a população do planeta.

Ele é um soldado voluntário para todos os fins de Gilead, mas os shippers parecem preferir focar em sua aparência e química com June, e não nas questões éticas que envolvem um shipp com um personagem que é um insurrecionista e terrorista.

É claro que os shipps problemáticos não são novidade para um fandom, e podemos apontar diversos níveis de “problema”, que vão de Draco/Hermione, passando por Rey/Kylo Ren e vão até Coringa/Arlequina. Mas poucos desses shipps possuíam relações tão estreitas com o momento atual quanto este. E ainda existe um elemento étnico-racial com o triângulo entre Nick/June/Luke. Tanto Fagbenle quanto Minghella possuem ascendência multirracial, mas Minghella possui fenótipo branco. E para uma série que ignora amplamente a questão do racismo, o mesmo não pode ser dito sobre o seu público.

Os EUA ainda estão se recuperando da violenta insurreição no Capitólio, em que fanáticos conspiracionistas de direita, radicalizados pelo QAnon e pelo ex-presidente Donald Trump, tentaram impedir a certificação da eleição de Joe Biden. Os republicanos obstruíram o projeto que determinava uma investigação independente do caso, preparando terreno para novas insurreições. E após a derrota nas eleições de 2020, o partido está sistematicamente buscando formas de reduzir os direitos eleitorais, enquanto aparelham as instituições com oficiais simpáticos à sua causa nos estados que controlam. E mesmo com a real e sensível radicalização do partido republicano, com a enxurrada de leis anti-aborto ao redor do país e com ataques diretos ao sistema eleitoral, essas mulheres continuam firmes em seu shipp OfBlaine, mergulhadas cegamente no romance entre atores que gostam.

No Brasil, não estamos muito distantes com um governo como de Bolsonaro e quase nenhum direito reprodutivo garantido e ainda assim, muita gente torcendo pelo mesmo shipp.

Mas, novamente, não podemos esquecer que Nick é parte de um grupo que subjuga, estupra e desumaniza as mulheres. E ainda que ele possa se sentir mal por suas ações, ele não está fazendo nada para destruir Gilead por dentro. Ele pode ser pintado como um garoto triste sensível, mas repetidamente ele já demonstrou que só se importa com June. Todas as outras podem sofrer.

Talvez os fãs estejam presos a esse ship porque ele oferece um alívio do clima sombrio que domina a série. O “romance” dos dois é um dos poucos pontos de luz em uma série opressivamente traumática, então não podemos guardar rancor de quem encontra alguma alegria onde pode. Mas não podemos fingir que Nick é uma espécie de herói silencioso. Ele é um dos arquitetos da dor não apenas de June, mas de todas as vítimas de Gilead.

Então talvez fosse bom pararmos de tratá-lo como uma espécie de herói byroniano e começar a chamá-lo do que ele realmente é.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

Leia mais sobre The Handmaid’s Tale aqui no site!

Compartilhe: