“Hello darkness, my old friend”

ALERTA DE SPOILER/AVISO DE GATILHO: Este artigo discute os três primeiros episódios da 4ª temporada, bem como agressão e violência sexual.

Já se passaram 20 meses desde o final da 3ª temporada de The Handmaid’s Tale (conseguem acreditar?), que terminou com June (Elisabeth Moss) ferida e sendo carregada pela floresta por suas companheiras aias. Nesse tempo, muita coisa aconteceu: novos presidentes problemáticos no poder pelo mundo (inclusive aqui no Brasil) e uma pandemia global que mudou de forma irreparável nossas vidas. Quando The Handmaid’s Tale estreou em abril de 2017, coincidiu com os primeiros 100 dias da administração de Donald Trump, oferecendo um paralelo perturbadoramente próximo entre Gilead e o início do regime autoritário e cruel de Trump. No Brasil, esse período (mesmos adjetivos) começou em janeiro de 2019, com muitos fãs da série usando frases marcantes de THT para lidar com a sensação de luto que se alastrou no país, assim como a necessidade de não se deixar abalar.

Agora lidamos com outro cenário bem diferente. Trump perdeu a eleição e Bolsonaro pisa em ovos com a CPI do Covid, que pretende responsabilizá-lo pelas mais de 400 mil mortes no Brasil pela doença.  E depois de um 2020 tão brutal e violento, será que as telespectadoras ainda têm apetite pelo trauma, pela miséria e pela tortura pornográfica que a série usa constantemente na narrativa? – Aqui eu fiz questão de deixar o termo no feminino mesmo, porque obviamente o que sobra nesse fandom é homem banalizando a série ou fazendo cobranças imbecis para que mulheres aguentem tudo e façam maratona de algo contendo um mar de gatilhos.

Imagem: Hulu

Quando a vimos pela última vez, June tinha conseguido organizar o Voo dos Anjos, contrabandeando 86 crianças e um punhado de Marthas para fora de Gilead, em busca de anistia no Canadá. A 4ª temporada, que estreou logo com três episódios na Hulu, começa imediatamente de onde a 3ª temporada parou, com June e as aias renegadas se escondendo em uma fazenda no interior. A fazenda é propriedade do frágil Comandante Keyes, que entregou muitas de suas obrigações para sua esposa de 14 anos, Esther (McKenna Grace), cujas emoções oscilam entre ajudar as aias e abusá-las verbalmente e fisicamente.

Imagem: Hulu

No entanto, Esther idolatra June e confessa para ela que não apenas seu marido a estuprava, como também convidava Guardiões e Anjos para estuprá-la também. A violência sexual é a base da Gilead, e a série nunca se esquivou desse fato. Apresentar Esther como uma filha substituta para June dá à série um novo território bem rico para explorar, especialmente, por causa da missão de June de resgatar sua própria filha Hanna.

Os instintos maternais de June tornam-se violentos quando as aias capturam um dos Guardiões que atacaram Esther. June dá uma faca para a garota e sussurra “me deixe orgulhosa” enquanto deixa a garota livre para se vingar do seu agressor. É uma cena arrepiante, seguida por outra bizarra em que Esther rasteja para a cama com June, coberta de sangue, e a abraça. Num paralelo meio delirante, June a chama de “banana”, seu apelido para Hanna.

E isso nos leva a outra pergunta: será possível que The Handmaid’s Tale está lentamente transformando June em uma vilã? Do tipo “morra como herói ou viva o suficiente pra se tornar um vilão”? Suas cenas com Esther beiram o monstruoso, mas somos continuamente lembradas que Gilead é infinitamente mais cruel e mais violenta do que uma serva renegada – e como June mesmo fala várias vezes na série, esse tipo de lugar leva as pessoas à loucura, as transforma. June pode ser a líder da rebelião, mas ela não está imune de erros, como deixar essa ideia subir a cabeça, ser cruel e acabar causando (não pela primeira vez) a morte de quem a ajuda.

Imagem: Hulu

Existem narrativas ricas e novas a serem retiradas dessas novas dinâmicas de poder e da rebelião que June está criando, incorporando a ideia que o Mayday é quem faz as coisas acontecerem, não um grupo utópico e distante que nem sempre aparece para ajudar. Infelizmente, algumas dessas narrativas acabam desperdiçadas por uma série que não tem outra saída a não ser reciclar pontos da trama através da criação de traumas – mais cenas de abuso sexual, de violência explícita e tortura. Quando June é recapturada no episódio três, somos lançadas em uma hora interminável de tortura, tanto física quanto emocional. O episódio, dirigido pela própria Elisabeth Moss, é brutal de assistir. Mas, graças à imunidade de June (o famoso “protagonista no jutsu”), sabemos que ela não morrerá (embora as pessoas em Gilead tenham sido executadas por muito menos). O resto do elenco, por sua vez, não tem tanta sorte. Aias morrem em todos os episódios, literalmente.

Então, de que adianta tantas cenas recorrentes de tortura? Para reforçar a ideia de que Gilead é horrível? Sim, nós sabemos. Nós tivemos três temporadas disso. Chegou ao ponto de ser mesmo só pornografia de tortura, com objetivo de chocar – como se todos os choques anteriores não fossem o bastante. De toda forma, a série continua impressionante de se assistir: é cinematografia deslumbrante, com iluminação brilhante e performances arrasadoras de um elenco talentoso. O ponto aqui é dizer que ao insistir nos mesmos pontos da trama, a série falha em crescer e evoluir.

The Handmaid’s Tale se encontra no mesmo dilema de The Walking Dead, outra série de longa duração alimentada por uma desolação implacável. Eventualmente, o público se cansará da repetição, da matança sem sentido de personagens favoritos dos fãs. Em uma entrevista recente ao Hollywood Reporter, o showrunner Bruce Miller prometeu “uma experiência catártica” para o público.

Catarse para algo como o The Handmaid’s Tale? Vamos acreditar quando virmos com os nossos próprios olhos.


Texto traduzido e adaptado do The Mary Sue.

Leia mais sobre The Handmaid’s Tale aqui no site!

Compartilhe: