Entenda o caso. E por que comportamentos assim DEVEM sempre ser responsabilizados.

A internet deu voz a muita gente. Infelizmente, nesse pacote entram também pessoas que acham que liberdade de expressão é o mesmo que ser livremente preconceituoso ou que fomentar discursos de ódio é o mesmo que apenas ter uma opinião. Dentro do universo gamer em especial, isso tem sido um problema gigantesco.

Todos sabemos que a comunidade de jogos online pode ser bastante tóxica, e que jogar com pessoas aleatórias pela internet pode ser uma experiência bastante desagradável. Racismo, sexismo, homofobia e ofensas pessoais são uma realidade incômoda e bastante comum que por muito tempo afastaram especialmente mulheres deste cenário.

Assédio com base em raça, religião, habilidade, gênero, identidade de gênero, orientação sexual ou etnia não é o único problema. Existe também a prática de doxxing em jogos onlines, o que significa que suas informações pessoais ou privadas podem ser expostas publicamente contra seus desejos. Mas acontece que esse cenário fica ainda mais preocupante quando se leva em consideração que nem sempre o assédio da vítima acaba após a partida online, que é quando ocorrem casos de assédios mais graves, com ameaças físicas e o stalking – uma forma de violência na qual o sujeito ou sujeitos ativos invadem repetidamente a esfera de privacidade da vítima, empregando táticas de perseguição e meios diversos, tais como ligações telefônicas, envio de mensagens, publicação de fatos ou boatos em sites da internet (cyberstalking) e assim por diante.

E é exatamente por isso que deve haver uma cobrança de punição a esse tipo de comportamento dos usuários para a indústria de games e, dependendo do caso, para vias legais/judiciais ou demais atitudes que transformem esse ambiente em um lugar menos venenoso.

No Brasil, um grupo em específico contribuiu muito pra difundir ainda mais ideias odiosas e ataques a mulheres e minorias dentro do universo dos games: os donos da conta Mil Grau (principalmente no Twitter, Youtube e na Twitch), conhecida previamente por Xbox Mil Grau. E, por consequência, os fãs da conta.

Não é segredo que o Mil Grau vem sendo assim já faz muito tempo. Abaixo, vocês conferem uma pequena lista de tweets da conta que costumam ser utilizados recorrentemente em notícias de portais da área como exemplos da habitual misoginia dos donos do canal (como essa matéria da Vice Brasil ou essa da dislu.do):

Apesar de vários episódios compartilhando esse tipo de “piada” ou de ataques a jogadores/as, os donos da conta nunca tinham sofrido nenhuma punição. Na verdade, pelo contrário: haviam aparentes parcerias – inclusive alguns bordões do Mil Grau já foram vistos sendo utilizados pela conta oficial da XboxBR. Nem mesmo os insistentes pedidos de fãs mais razoáveis da própria Xbox e usuários em geral no Twitter fizeram o Mil Grau ser responsabilizado.

As coisas só mudaram de curso quando começaram os protestos nos EUA em prol dos pedidos de justiça por George Floyd, um afro-americano que morreu em decorrência de violência policial. Em solidariedade, muitas das grandes celebridades e empresas mundiais começaram a se posicionar na internet em favor do movimento anti-racista e da #BlackLivesMatter. Incluso nesse movimento estavam várias empresas de jogos também. Deixamos abaixo alguns exemplos.

[Eventos recentes são um duro lembrete das contínuas injustiças na sociedade, desde a negação de direitos humanos básicos até o impacto do racismo tanto aberto como sutil contra pessoas não-brancas. Nós estamos muito atentos à dor que nossos amigos, familiares, membros de equipe, jogadores e membros da comunidade estão sofrendo. Nós acreditamos em igualdade e justiça, diversidade e inclusão, e que esses fundamentos estão acima de políticas.]

[Agora não é o momento de nenhum de nós ficar em silêncio. Por tempo demasiado muitos sofreram por um problema sistemático na América. Pessoas demais perderam filhos, filhas, irmãos, irmãs, pais e mães. Nós nos manteremos em solidariedade contra o racismo e a injustiça. Agora é o momento de todos nós fazermos a nossa parte e acabar com o racismo anti-negros e a violência. Muitos de nós da Naughty Dog estão doando para organizações nacionais e locais. Por favor, considere fazer uma doação também. Esperamos ver o começo de mudanças efetivas para pessoas não-brancas na América.]

E esse movimento se espalhou em muitos países pelo mundo além dos EUA.

Então foi aí que internautas no Brasil aproveitaram o momento, devidamente apropriado, para pressionar a Microsoft mais uma vez a se posicionar sobre os comportamentos racistas e preconceituosos em geral do Mil Grau – especialmente devido a casos recentes de racismo em lives da conta, que podem ser conferidos numa compilação do tweet abaixo:

Ricardo Regis, o dono do tweet acima, foi quem liderou o movimento de denúncias contra a conta. Foram vários dias compartilhando os vídeos que explicitavam as falas e atitudes preconceituosas dos donos do canal, marcando e cobrando as empresas em que eles tinham plataforma, pedindo apoio de celebridades, fazendo lives pressionando por um posicionamento – e claro, sofrendo ataques pessoais no processo. O movimento de denúncia, aliás, começou exatamente por causa de outro ataque do Mil Grau, explicados na thread abaixo:

Indignado, Ricardo se solidarizou com Luiz e lançou o pedido na internet pela denúncia em massa, usando o tweet abaixo como embasamento extra para que a empresa tomasse alguma medida:

[O que negros estão fazendo hoje / O que brancos estão fazendo hoje.]

Para o Garotas Geeks, Ricardo Regis disse que trocou algumas farpas com os donos e fãs do canal e que o fato dele não se intimidar e responder os deboches foi um fator que desconcertou e irritou ainda mais os agressores; para Regis, ser vocal e não ter medo de denunciar é fundamental. A partir dali, o Mil Grau passou a fazer lives com títulos como “odeio macacos” e semelhantes. E, graças a isso, a denúncia ficou ainda mais fácil – já que os próprios agressores estavam postando o material que os incriminava.

Por três dias as hashtags #TwitchApoiaRacista e #YouTubeApoiaRacista ficou nos trending topics do Twitter, com apoio de pessoas famosas como Mark Hamill e Cory Balrog:

Após a pressão, a Microsoft cedeu e exigiu que a conta do Mil Grau retirasse o título da marca “Xbox” do nome de suas redes e finalmente se posicionou à respeito do conteúdo do canal:

Vários jornais e portais de notícia como o G1, a IGN, opovo ou o TheEnemy repercutiram a notícia. E essa repercussão foi tão grande que chegou até portais internacionais como o portal inglês Games Industry, o portal italiano Multiplayer.it e o norte-americano Vice.

No final das contas, o Mil Grau perdeu o direito ao uso da marca “Xbox” (que pouco depois mudou seu título para XMG, mas uma empresa reclamou o nome), perdeu monetização no YouTube e foi banido da Twitch.

Com as ações de responsabilização finalmente sendo publicadas, vários usuários do Twitter se sentiram mais livres para contribuir com as denúncias, compartilhando casos pessoais de ataques sofridos por causa da conta Mil Grau:

O Garotas Geeks conversou com duas mulheres que também sofreram ataques notórios da própria conta do Mil Grau e de seus seguidores. Tentamos contato com outras mulheres que sabidamente sofreram ataques, sem sucesso.

De toda forma, a primeira vítima, que preferiu ficar em anonimato para evitar mais ataques, explicou como foi o seu episódio: um simples tweet pedindo sugestões de canais gamers que jogassem Halo gerou um ataque completamente gratuito.

Após o tweet, a vítima diz que qualquer crítica que fazia sobre o Mil Grau gerava mais ataques em massa e que a única opção que ela teve foi tentar ignorar.

A segunda vítima foi a Bruna Penilhas, editora assistente especializada em games. Ela narrou o que houve quando foi atacada, e deixamos sua história em livre citação abaixo:

O primeiro e maior ataque aconteceu em 2017, quando publiquei o meu review de Cuphead (na época, o game era exclusivo de Xbox One). O Mil Grau me acusou de não ter jogado o game e disse que não ia ler a análise. Ele e os seguidores encontraram a minha gamertag, que na época era nova e com poucas conquistas porque eu não tinha um console xbox em casa (fui passar a ter em 2019, finalmente). Eles então viram que minha porcentagem de conquistas em Cuphead estava baixa e assumiram que eu não tinha terminado o game (eu joguei na conta da redação, porque faz parte do procedimento). O progresso que estava registrado na minha gamertag era de outra jogatina que comecei após ter terminado o game da conta da redação.

Logo adotaram o discurso de que eu não havia terminado o jogo, que eu não sabia de nada. Daí veio o termo “currículo gamer”, porque o Mil Grau convocou um monte de seguidores para cobrarem a minha Gamertag. Segundo eles, eu devia deixar todas as minhas contas abertas para provar que eu jogo videogame. Minhas redes sociais foram bombardeadas de comentários tóxicos e machistas. Fizeram horas e horas de live me menosprezando e difamando, sem nenhum argumento concreto ou prova. Sempre me acusaram de ser “sonysta”, mas isso eles fazem com todo mundo que vai contra eles.

A perseguição também aconteceu na BGS, presencialmente. Eles foram atrás de mim com cartazes, cobrando a tal da Gamertag. Eu tinha receio de andar pelo evento sozinha e até mesmo de pisar dentro do estande do Xbox, já que eles sempre estavam lá e a Microsoft não faziam nada a respeito. Quando eu gravava vídeos no estande, eles tentavam encontrar um jeito de aparecer atrás para mostrar os cartazes.

Os ataques diminuíram, mas diversos seguidores e perfis atrelados ao Mil Grau continuam cobrando a minha gamertag e me acusando de não jogar até hoje. Sinto que fiquei um pouco estigmatizada, sabe? Mas muitos acabaram conhecendo o meu trabalho por conta de tudo isso.

Certamente, a Bruna não foi a única a sofrer ataques do gênero. Mas como a Bruna, nós que que somos gamers sabemos bem como é ser cobrada da tal “carteirinha gamer”, seja de que modo for.

E é sincera e incrivelmente deprimente que em pleno século 21 tenhamos que ainda estar debatendo o por que dessa cobrança ser ridícula e injusta. Mulheres gostam e sempre foram parte do universo gamer – e crescemos nesse mercado a cada dia. Apesar de marginalizadas na cultura e indústria, as mulheres já representam praticamente metade desse mercado, ultrapassando a marca de 40% dos consumidores. Na verdade, o consumidor médio masculino e feminino são muito mais parecidos do que se imagina. Quem não consegue aceitar esse fato é ignorante e quem não consegue lidar/se sente ameaçado com a presença feminina nesse universo é mais frágil que calcinha de renda.

Piadas de “humor sombrio” não estão à margem da lei. Opinião não dá o direito de ofensa. Quem gosta de brincar com preconceito aprende da pior forma a aguentar as consequências de seus atos criminosos.

Nós não entramos em contato com os responsáveis pela Mil Grau pois acreditamos que os discursos da conta não merecem debate, e sim combate. Suas justificativas para seus comportamentos são execráveis e a única coisa que deveriam receber é o peso da justiça e do ostracismo.


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