E por que nós devemos apoiar mais as mulheres que se dedicam à profissão.

O Garotas Geeks recebeu um convite da Riot Games para acompanhar a etapa final da competição do VCT Game Changers Brasil – um torneio oficial de Valorant exclusivamente feminino (cis, trans e não-bináries) da Riot no Brasil.

Aqui, preciso reconhecer que a Riot, no Brasil, tem de fato se empenhado, como a própria afirma, a “estimular o crescimento das oportunidades de torneios para jogadoras amadoras e semiprofissionais, ampliando a experiência competitiva”. Todos os meses, organizadoras de torneio parceiras da Riot Games realizam torneios independentes, com prêmios em dinheiro – as partidas que acompanhei definiram distribuição de R$100 mil entre as equipes, sendo que a primeira colocada recebeu a quantia de R$35 mil. Por causa do Game Changers, a empresa afirma que vai estender investimento e foco no cenário feminino, fortalecendo projetos já existentes.

Aceitei o convite da empresa e decidi que meu objetivo seria entrevistar as participantes e tentar, como resultado final, incentivar outras mulheres, gamers ou não, a acompanhar (ou começar a acompanhar) e participar mais do cenário feminino de eSports. Isso porque ganhamos mais voz ativa quando somos participantes mais atuantes – o que quer dizer, basicamente: quanto mais de perto acompanhamos esse cenário, mais chances temos de poder oferecer sugestões ou exigir medidas que contribuam para o bem-estar de outras mulheres no universo dos games.

Antes de passar por algumas das perguntas feitas para as equipes Team Liquid Brasil e a B4 Angels e para a própria Riot, acho importante explicar um pouco sobre o cenário competitivo de Valorant e sobre o cenário dos eSports no geral.

A presença feminina nos jogos

De acordo com a 9ª edição da Pesquisa Games Brasil, as mulheres representam 51% dos jogadores brasileiros. Segundo o relatório de 2022, o relatório afirma que “ao longo dos anos, a PGB demonstrou que as mulheres são maioria entre jogos digitais, com uma pequena dominância do público feminino entre jogadores”.

Pesquisa Games Brasil. Foto: Divulgação

As jogadoras preferem mais os smartphones – e antes que isso seja transformado em discurso para depreciar mulheres (como se só jogos de console ou PC fossem válidos nessa conta), vale dizer também que a pesquisa mostra que os smartphones são a plataforma preferida do público brasileiro no geral.

Pesquisa Games Brasil. Foto: Divulgação

+ Vale a leitura: “Mulher não joga” e outras mentiras do meio de Esports

A PGB também afirma que, apesar desses números acima apresentados, apenas 45,1% criou identidade com o termo “gamer” ou um envolvimento maior com jogos digitais. Isso tem também conexão com o fato de que, na edição de 2010, a pesquisa apontou que apenas 33,9% das mulheres costumavam jogar online com outras pessoas. Isso porque a maioria do público masculino não entende que esse é um espaço coletivo, e o resultado é um ambiente tóxico, machista, racista, misógino e perigoso se você não é um homem branco.  

As dificuldades nos eSports

Se as mulheres têm dificuldade de se identificar como gamers ou “hardcore gamers” e apenas uma minoria joga online, obviamente as que decidem competir profissionalmente são uma minoria muito expressiva. No entanto, segundo a UOL, “mesmo com o claro investimento das marcas no universo dos esportes eletrônicos, nota-se ainda uma defasagem quando o assunto é mulheres inseridas nas grandes competições de e-Sports. Essa falta, todavia, não é dada pelo não interesse desse público, mas sim pela escassez de investimento e credibilidade”. Isso faz com que haja uma predominância masculina no cenário competitivo, apesar do engajamento feminino com jogos ser maior.

Quando conseguem competir, as jogadoras enfrentam acusações de uso de hacks e cheats, de estarem deixando “o namorado” jogar no lugar – em 2019, o Garotas Geeks recebeu denúncias do primeiro festival de eSports de LoL e CS:GO obrigando as competidoras a usar softwares de reconhecimento de voz para provarem que eram mulheres; que no final se transformaram num compilado de problemas que expliquei aqui, variando entre o comum machismo, transfobia e assédio. Essas matérias servem para ilustrar que são variados os problemas que as mulheres enfrentam quando decidem participar do cenário competitivo de eSports, o que aprofunda ainda mais a predominância masculina.

Por causa disso, estava bem difícil retirar aquela primeira impressão de que campeonatos de grande porte assim eram feitos pensando apenas no público assistindo e nos lucros provindos disso, não nas jogadoras. Felizmente, acompanhar de perto as chaves finais para o Game Changers mudou bastante a minha perspectiva e minhas esperanças com esse cenário.

Entrevistando a Liquid e a B4

O Game Changers se destacou e acertou onde os torneios antigos que acompanhei pareciam errar mais: o evento teve uma organização muito criteriosa, as competidoras receberam auxílio para viajarem até São Paulo e participar dos torneios no estúdio da Riot, com uma LAN própria. E, acima de tudo, era visível que haviam muitas mulheres participando do evento além das jogadoras: todo o trabalho de análise, narração, entrevista e apresentação foi feito exclusivamente por mulheres, como vocês podem conferir aqui. Ver de perto o trabalho de narração foi super bacana!

Foto: Flickr/ValeSports/Riot Games
Foto: Flickr/ValeSports/Riot Games
Foto: Flickr/ValeSports/Riot Games

Após conhecer o estúdio e ver as competidoras jogando ao vivo, tive a oportunidade de conversar um pouco com duas das finalistas. Perguntei sobre o background de cada uma, sobre as partes mais difíceis e mais fáceis de competir, sobre equilibrar tempo de stream com treino competitivo e sobre métodos de treinamento. Separo abaixo algumas das respostas que acho que melhor contribuem para um debate que nós, como expectadoras, deveríamos prestar mais atenção.

Garotas Geeks: Como a atmosfera dos eSports mudou ao longo dos anos para você como mulher? Vocês sentem que agora é um cenário mais acolhedor do que quando vocês começaram?

  • Liquid (representada pela capitã, Nat1): Na época que eu jogava CS, até 2017, 2018 no máximo, era um cenário muito difícil, muito atrasado mesmo, com muitos casos de machismo. Eu fiquei um tempo sem jogar e depois fui pro Valorant e quando eu fui pro Valorant, desde o começo eu sinto que é bem diferente, é bem mais acolhedor sim. Às vezes eu troco umas ideias com as pessoas e elas perguntam ‘por que você acha que a comunidade do Valorant é muito menos tóxica, menos machista e etc’ e eu costumo dizer que o cenário do jogo é um reflexo da sociedade. Valorant nasceu agora, em 2020 – 20 anos depois de CS. Então, as pessoas que hoje estão jogando já têm outra cabeça, e isso ajuda a construir um cenário bem mais acolhedor.
  • B4: O time diz que com certeza mudou. Tayhuhu, a capitã, completa: A primeira LAN que eu fui tinha uns caras muito machistas, usando palavras que [me deixaram] humilhada, então a gente que é mulher sente que não é o nosso espaço, que a gente não pode estar ali. Mas conforme o tempo, eu vejo que as mulheres vão se impondo mais e vão falando ‘olha, aqui é o nosso lugar também, a gente também merece’ e com o lançamento de Valorant, num tempo como esse que as mulheres estão se impondo bastante, já ajudou muito. A Riot quis valorizar nós mulheres, então eu sinto que a cada dia que passa está mais fácil mostrar que esse é o nosso lugar.

GG: Falando de Valorant competitivo, quais são as maiores dificuldades que as equipes femininas normalmente encontram pra participar de torneios e como vocês estão conseguindo superá-las?

  • Liquid: Não dá pra negar que os times femininos são naturalmente desencorajados de jogar em torneios mistos. Mas a gente está aqui pra bater o pé e falar que esse é o nosso espaço sim. Mas não dá pra negar que os times femininos são menosprezados e que as meninas se sentem um pouco com medo, com receio de tentar [competir]. Mas o nosso papel aqui também é mostrar pra elas que dá e que se é o sonho delas, elas têm que ir em busca mesmo.
  • B4: Para as meninas que estão entrando agora, talvez seja desafiador tentar entrar num time e se destacar, acho que essa é a parte mais difícil. Para quem já está fazendo torneios a mais tempo, o mais desafiador é se manter no topo.

GG: Como a equipe se motiva para participar desses torneios?

  • Liquid: A gente joga todos os campeonatos femininos, obviamente, porque é um cenário pra gente. Mas eu acho que hoje em dia, neste momento que a gente está, encontramos muita motivação no cenário misto. A gente quer muito. Se perguntar cada uma delas [as demais jogadoras da equipe] é, além do mundial é conseguir o nosso espaço no misto. A gente provar pra todo mundo e pra nós mesmas que realmente é o nosso lugar e que a gente consegue. Estamos bem perto.
  • B4: Competir é uma delícia. Enquanto você tem vontade de competir e tiver campeonato, essa é a nossa maior motivação. Mas no dia a dia eu consigo me motivar bastante vendo as meninas, como elas se dedicam, como elas têm vontade e isso me faz querer me dedicar também.

GG: Agora, a pergunta que várias leitoras gamers queriam saber: como é estar jogando pela primeira vez numa LAN com zero ping? Vocês notaram alguma diferença?

  • Liquid: Com certeza você nota diferença de tudo! Você está num stage, é completamente diferente. A gente estava muito ansiosa pra ter essa experiência aqui na Riot. E cara, tá sendo incrível. A gente sobre naquele palco e é aquela atmosfera ali com time, todo mundo se apoiando, olhando uma no rosto da outra pra comemorar um round, aquele grito de LAN, grito de lá, grito de cá… É incrível mesmo. 
Foto: Flickr/ValeSports/Riot Games
Foto: Flickr/ValeSports/Riot Games
Foto: Flickr/ValeSports/Riot Games

GG: O que vocês já realizaram ou esperam ainda realizar aqui no Game Changers?

  • Liquid: Eu não sei se a palavra é exatamente essa [realizar], mas… a Daiki [colega de equipe] já deu entrevista em algum lugar que ela falou sobre a gente ter conseguido se manter estável no topo no cenário brasileiro feminino, então não foi questão de ganhar um, dois, três campeonatos, a gente está estável faz muito tempo. É meio clichê, mas parece ser a verdade: chegar uma vez no topo é difícil, você passa a ser mais visado, as pessoas fazem mudanças nos próprios times desde line até estilo de jogo pra tentar ganhar da gente, então se manter no topo acaba sendo bem mais difícil.
  • B4: A nossa união aumentou, parece que a nossa sinergia, a meta de cada uma está na mesma página.

GG: Se alguém leigo te perguntasse se existe alguma diferença entre competir num torneio misto e num torneio exclusivamente feminino, o que vocês diriam?

  • Liquid: A maior diferença é que o cenário feminino é um setor pra gente. Quando vamos jogar no misto, temos o nosso time, nossa estrutura e tem a mais, que é a pressão de estar se provando para todo mundo que você pode. Você está adentrando um espaço que a sociedade diz que não é seu.
  • B4: Bom, a única diferença na verdade que eu via antigamente era o respeito que as pessoas tinham quando jogavam contra times femininos, mas hoje eu vejo que isso mudou bastante, porque desde o início do Valorant, nós mulheres, conseguimos chegar numa partida e mostrar que também é bom o suficiente e colocar respeito nessas pessoas. Quando eu vou no cenário misto eu sempre vejo o time adversário respeitando a gente, não todos, mas a grande maioria. Acho que vai ser no Valorant que um time feminino vai conseguir chegar no topo.

GG: Que conselho você teria para outras meninas que querem seguir seus passos e entrar no mercado de eSports ou começar a streamar? O que você acha que precisa pra essas meninas conseguirem transformar o hobby de jogar em algo profissional?

  • Liquid: Eu costumo dizer que se você realmente tem essa vontade, se você realmente quer, [o segredo] é não se deixar assustar. Não é fácil, mas não se sinta desestimulada a tentar vendo que tem times que são melhores que você hoje. Qualquer menina que estiver realmente determinada a chegar lá, tem total chance.
  • B4: Monte um time com as suas amigas, sempre tem menina procurando time. Monta um timezinho, joga CAMP e vá jogar ranked pra ir se destacando aos poucos pra conseguir entrar no cenário competitivo.

Perguntas para a Riot Games

Quem responde é Carlos Antunes, líder de Esports da Riot Games no Brasil.

GG: O público e as equipes participantes questionaram bastante o fato do Brasil ter apenas 1 vaga no mundial feminino de VALORANT quando essa informação foi divulgada. A Riot tem algo a comentar sobre isso?

Carlos Antunes: Este é o primeiro ano que elevamos o campeonato de VALORANT feminino à esfera mundial e estamos apostando forte no crescimento e proliferação da competência e alto nível de competitividade das mulheres no cenário de VALORANT, que acreditamos que será um movimento natural para os próximos anos. Temos muita confiança no crescimento e potencial do cenário feminino no Brasil e na sua marca cada vez mais forte em cenários internacionais.

GG: Além do Game Changers e do mundial feminino, quais outras iniciativas a Riot tem como foco para que a participação das mulheres nos campeonatos de VALORANT evolua cada vez mais no que diz respeito a igualdade de gênero nos eSports ?

CA: As iniciativas da Riot Games em busca de um ambiente mais justo e de igualdade de gênero nos Esports são contínuas. Além do Game Changers, que já está em seu segundo ano de existência, este é um ano em que pilotaremos o evento mundial de VALORANT feminino para continuarmos com os investimentos e crescimento deste cenário.

Em paralelo, outras iniciativas são destacadas, como o Game Changers Academy, organizado por nossos parceiros mensalmente com o objetivo de fomentar o desenvolvimento do cenário amador feminino e proporcionar a elas mais oportunidades dentro do ecossistema de eSports; a Elite Cup, torneio que une todas as equipes profissionais do cenário de VALORANT em um único torneio, como um primeiro encontro oficial do cenário feminino com o VCT-BR e as demais equipes do cenário independente – para que cada vez mais tenhamos um cenário único; suporte na organização de torneios de comunidade dedicados; e a constante busca por diversidade na seleção de casters para todos os torneios – no Game Changers, tivemos a equipe toda de apresentação do campeonato composta por mulheres.

Além disso, em outros cenários competitivos, como o de League of Legends (LOL), anunciamos este ano que vamos trabalhar com parceiros para incentivar o cenário feminino, algo que a gente queria fazer há muito tempo. E todas as experiências positivas que a gente teve com o Game Changers no VALORANT mostram o quanto a explosão desse interesse pode causar uma mudança muito rápida e cada vez mais forte.

***

O Game Changers é uma injeção de ânimo no cenário feminino de eSports e as iniciativas da Riot em apoiar jogadoras competitivas é um ótimo começo para que mulheres consigam alcançar igualdade nesse ramo. Todas as equipes se demonstraram preparadas para mostrar para o mundo que brasileiras são competitivas e precisam de mais espaço e visibilidade.

Fico um pouco aliviada de ver torneios assim acontecendo, pra falar a verdade. É apenas um começo, como disse, mas dá esperança para espaços mais inclusivos e mais pra frente, como é o objetivo das duas equipes entrevistadas na matéria, espaços mistos – onde players homens e mulheres podem se enfrentar de igual pra igual.

O que podemos fazer, do lado de cá, é procurar acompanhar as jogadoras e seus times, assistir os torneios, entender e dar voz para as reclamações das jogadoras. Elas merecem muito e estão aqui para provar que conseguem chegar longe.

Mal posso esperar pra ver o mundial!


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