Hora de problematizar as séries que a gente ama. Com spoilers.

Metade de mim está feliz porque temos uma representação LGBT maior na atual geração de séries animadas, permitindo que as crianças de hoje possam receber aquela representação que não tivemos enquanto crescíamos. Séries como Voltron e Steven Universe, com sua grande base de fãs e popularidade poderiam fazer uma grande diferença pouco tempo atrás. Porém, a outra metade sabe que tudo isso representa apenas pequenos passos e não grandes avanços em direção a representatividade LGBT nas animações, como precisamos.

Vamos começar a desenvolver essa ideia com um dos mais famosos shows da última geração:

Voltron: O Defensor Lendário

Antes mesmo de ouvir falar sobre a série, eu já sabia que Klance era um dos maiores ships do tumblr – o pareamento dos dois protagonistas da série, Keith e Lance. Com algumas cenas da série indicando o possível envolvimento e algumas provocações dos criadores da série, muitos foram levados a crer que o relacionamento poderia de fato se tornar canon.

O que eu quero dizer é que algo assim seria grande, certo? Infelizmente, isso não apenas continuou como um doce sonho para muitos, como os criadores acabaram incorrendo em uma prática bem chata que chamamos de queer-baiting. Para quem não sabe, a expressão se refere a situações em que os criadores de mídia insinuam para os fãs que certos personagens são canonicamente LGBT e que serão uma representação positiva, mas falham em cumprir essa promessa.

E isso não se limitou ao “Klance”.

Na sétima temporada, Adam foi introduzido na série como o namorado de Shiro, único personagem até o momento confirmado como protagonista homossexual, e os fãs da série ficaram empolgados com a perspectiva de alguma representação… Até que o rosto de Adam foi parar na parede memorial. Sim. Voltron, no ano de 2018, fez o que chamamos de “enterrar seus gays”, um tropo nesse meio de mídia em que os personagens gays são mortos. Resumindo a problemática nesse tropo, é fácil perceber como ele implica que pessoas da comunidade LGBT tem como única função morrer tragicamente, o que é uma coisa nojenta de se insinuar.

Além da morte desnecessária de Adam, o relacionamento entre ele e Shiro nunca foi apresentado explicitamente na série, e alguém que não tivesse visto no Twitter, provavelmente sequer perceberia que eles estavam em um relacionamento. Já não aprendemos com a J.K. Rowling que confirmar as coisas no Twitter não conta como algo progressista? lol

Voltron ainda arriscou uma última tentativa de representatividade LGBT no episódio final da série, por meio do casamento de Shiro com um homem sem nome ou desenvolvimento, mas isso aconteceu muito tarde e foi muito pouco. Para quem afirmava querer representatividade na série, os criadores fizeram muito pouco ao longo de oito (não uma ou duas, mas oito) temporadas.

adam-and-shiro-in-voltron-legendary-defender
Imagem: Netflix

Steven Universe

A série tem sido desde seu lançamento considerada pioneira na onda de representatividade LGBT, e não podemos negar que tenha dados passos importantes, mas não devemos colocar a série sobre um pedestal.

Voltando a 2015, a revelação de que Garnet, uma das protagonistas, era a fusão de duas outras personagens, as gems Ruby e Sapphire. No universo da série, isso acontece quando duas ou mais gems se combinam para criar outra gem. Fusão normalmente simboliza um relacionamento, então não é surpreendente que os fãs se sentiram atraídos pelo relacionamento entre Ruby e Sapphire, especialmente pelo fato de alguns dos melhores episódios terem as personagens como centro.

Porém, novamente isso aconteceu pouquíssimas vezes, e contando com mais de 160 episódios, a falta de tempo não é desculpa válida.

Outro problema é que as fusões são personagens diferentes dos casais, então Ruby e Sapphire somente aparecem quando separadas, algo que acontece em ocasiões especiais ao longo da série. Steven Universe merece reconhecimento por apresentar um dos primeiros beijos lésbicos em um desenho infantil, mas falha com a segunda parte do mesmo episódio que leva a conclusão do tipo “vamos simpatizar com os fascistas espaciais que tentaram matar o casal de lésbicas”. Falaremos mais sobre isso outra hora.

Continuando, vamos dar uma olhada no relacionamento entre Pearl e Rose/Pink Diamond, ou melhor, no amor de Pearl por Rose/Pink. Entrando na história da série e revelações, Pearl era a “Pearl da Pink Diamond”, o que é basicamente uma escrava da casta superior de Homeworld. Isso já coloca o relacionamento entre elas em um campo pouco saudável, pelo fato que Pink Diamond era literalmente a dona de Pearl, e que Rose/Pink apenas se satisfaz com esse relacionamento e deixa Pearl seguir desta forma. Em outras palavras, meio difícil de não concluir que é um relacionamento unilateral e abusivo.

Seria interessante para a série falar sobre abuso em representação LGBT, mas esse momento nunca surge em Steven Universe, uma vez que a série insiste em mascarar essa situação.

Um elemento crucial de representatividade LGBT positiva é como a série apresenta relacionamentos saudáveis para quebrar o estigma que os relacionamentos LGBT são uma coisa ruim. Apresentar relacionamentos não saudáveis não é algo intrinsecamente ruim, mas para que isso seja efetivo, você deve pelo menos (1) demonstrar que se trata de um relacionamento não saudável por meio da narrativa, e (2) contrapor esse relacionamento com exemplos positivos, de forma a não contribuir com o estereótipo já discutido aqui.

Porém, Steven Universe não faz nem um nem outro.

Steven-Universe-We_Need_To_Talk_Pearl_and_Rose
Imagem: Cartoon Network

Já em termos de representação para pessoas não-binárias, Steven Universe oferece algum brilho por meio de Stevonnie, a fusão entre Connie e Steven. Infelizmente, isso passa por algo similar a Garnet, de forma que raramente eles se fundem, salvo em ocasiões especiais, e eles não podem existir como eles mesmos na série.

Outras séries

Falando em outras animações, The Loud House, da Nickelodeon, mostrou mais com os dois pais de Clyde como personagens recorrentes em um relacionamento claramente estabelecido, e ao revelar que Luna Loud era bissexual.

She-ra e as Princesas do Poder mostrou algum potencial ao codificar vários dos personagens como LGBT, mas mesmo lá não foi o suficiente. A série manteve a revelação de que Bow tem dois pais na categoria “personagens LGBT que seriam spoiler” e Spinerella e Netossa são personagens secundárias e que não adicionam representatividade clara na série.

Hora de Aventura foi um pouco mais positiva por meio do romance entre a Princesa Jujuba e Marceline, que tiveram alguns episódios dedicados ao desenvolvimento de seu relacionamento e que se beijaram em um final feliz no episódio final da série. Porém, isso ainda cai naquela tendência de confirmação de última hora de um relacionamento. Esse post da Medium fala detalhadamente a respeito.

Imagem: Cartoon Network
Imagem: Cartoon Network

Mais recentemente, O Príncipe Dragão, da Netflix, adicionou um casal de Rainhas Lésbicas, Annika e Neha, mas infelizmente seguiu a linha de Voltron e enterrou as duas em incríveis dois episódios.

Enfim…

Apesar de o fato dos criadores quererem introduzir representatividade positiva LGBT ser algo muito bom, não basta fazer com que isso aconteça em breves aparições, papéis secundários ou repetição de tropos negativos.

O fato é que o fandom LGBT foi injustamente privado de conteúdo por muito tempo e também que não têm culpa alguma na forma como os produtores os têm representado.

E é extremamente irritante quando reclamamos sobre isso e recebemos respostas do tipo “ah, vocês deveriam estar felizes por, pelo menos, terem alguma representatividade”. É como dizer a uma pessoa morrendo de fome que ela deveria se contentar com as migalhas dos outros. O padrão de representatividade LGBT nas séries animadas subiu um pouco nos últimos anos, mas ainda não deixou de tocar o chão até o momento.

Sempre dá pra melhorar.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

Compartilhe: