Conversa séria.

Esse é o tipo de artigo difícil de escrever, não apenas porque o tópico é incômodo, mas porque a quantidade de conteúdo e alegações que precisam ser discutidas é absurda. Apenas na última semana, a quantidade de acusações de aliciamento, cobranças por sexo em troca de promoções, assédio, contatos inadequados e outros tipos de comportamentos nojentos por parte de homens influentes nos meios dos quadrinhos, jogos, ficção (e outros espaços geeks) foram incontáveis.

Existem tantos relatos e confissões por dia que é impossível falar sobre apenas alguns em específico. E isso é porque o contínuo assédio em espaços geeks ao redor do mundo é doentio e enfurecedor, mas deprimentemente… esperado.

Parece que estamos falando sobre isso desde sempre. Por tanto tempo as mulheres no mundo geek foram obrigadas a criar seus próprios espaços, construir seus próprios fandoms e nichos em gêneros e fantasia.

Nós tivemos que criar nossos próprios mundos, mas eles sempre foram considerados inferiores.

Existia (e ainda existe) tanto gatekeeping (prática de impedir que pessoas participem de grupos anteriormente estabelecidos) e misoginia no cenário “mainstream” (leia-se “masculino”) da cultura geek que as mulheres jamais se sentiram bem-vindas.

Mesmo nós, autoproclamadas Garotas Geeks, sentimos isso. Apesar de sempre amarmos alguns fandoms, os mundos dominados por homens dos quadrinhos e jogos nunca foram acolhedores para nós mulheres. Sempre que exploramos quadrinhos, encontramos mulheres hiper sexualizadas em poses irrealistas e seios que desafiam a gravidade, enquanto seus corpos contorcidos só agradavam o olhar masculino. Quando o escândalo do GamerGate estourou, todas ficamos sabendo como as mulheres eram tratadas no campo dos jogos, e não era nem um pouco diferente dos outros “mundos” geeks.

Muitas mulheres corajosas resolveram enfrentar isso. Elas olharam além do machismo e decidiram mudar esse cenário, criando seus próprios espaços geeks. E especialmente nas últimas décadas, elas conseguiram. Criadoras, programadoras, jogadoras, fãs e artistas conquistaram seu espaço na indústria e seu trabalho é divertido, inteligente, legal e progressista.

Mesmo que tenhamos que lembrar que muitas delas tiveram de encarar homens nojentos as assediando, chantageando, manipulando, agredindo e abusando de seu poder nesses espaços que ainda excluem mulheres e as tratam como meras “conquistas”.

Isso é revoltante porque é um problema muito mais profundo. Existem sistemas enraizados e uma cultura de misoginia nessas indústrias. Em convenções e negócios, nos trabalhos e em casa. Esses homens produzem uma cultura que diz que se eles possuem qualquer tipo de poder e influência, eles devem usar para conseguir sexo, especialmente com mulheres jovens. Além é claro, da clássica narrativa “nerd” que tanto vemos nos filmes: se torne poderoso o suficiente para que possa ser sexualmente triunfante.

Mesmo fora dos quadrinhos e jogos, é fácil ver isso acontecendo. Em pequenos fandoms, quando um homem subitamente ganha um pouco de fama, ele normalmente começa a pedir nudes para as suas jovens fãs. Isso acontece em todo lugar, na comédia, televisão, quadrinhos, e é algo nojento, predatório e terrivelmente comum. E essa é apenas uma das várias maneiras que homens assediam mulheres nos espaços geeks, nos causando a sensação de insegurança e desconforto.

E se você acha que teríamos superado isso depois de tanta exposição ao longo dos anos, está enganado. Se a recente avalanche de acusações nas redes sociais contra homens nos quadrinhos, jogos, livros e filmes indicam alguma coisa, é que as coisas ainda estão horríveis.

A maior mudança é que agora os homens não atacam apenas jovens fãs, mas também criadoras que tentam entrar no mercado.

Espaços geeks não deveriam ser “campos de caça” para predadores que acham ser apenas “caras legais e nerds”, acreditando que seu nome na capa de um quadrinho é suficiente para que possam fazer o que quiserem.

Parte disso acontece porque normalmente não há consequências para esses homens. Como a lenda dos quadrinhos Gail Simone afirmou em uma thread recente, esse comportamento é tratado como um “segredo aberto” que nunca recebe tratamento porque as comunidades são clubes do bolinha que não levam assédio a sério.

[Eu vi várias dessas pessoas mantendo seus empregos, com a sua “punição” sendo a proibição de fechar as portas do seu escritório. Ou que não podem mais trabalhar com mulheres.

O que pune as mulheres, porque subitamente não podem mais trabalhar em Superman ou algo do tipo.

Isso não é punição, e sim uma piada.]

Todos perdem quando esse é o tipo de cultura em uma comunidade como a dos quadrinhos, ou de algum fandom, ou qualquer espaço de nicho. A linha entre verdadeiros predadores e pessoas apenas nojentas é tênue, e além disso, o comportamento inadequado se torna ruim, e posteriormente pior, quando ninguém fala sobre isso. Mulheres geralmente tem medo de falar abertamente sobre isso, porque isso nega oportunidades e as categoriza como “vadias” ou “beatas” ou, às vezes, algo pior. E muitos homens parecem apenas não ligar. As coisas sempre foram assim e funcionam bem, não é?

E nós precisamos falar sobre isso enquanto essas indústrias não pararem pra pensar por um bom tempo sobre os homens que criam seus conteúdos, e que sem isso o cenário nunca vai melhorar.

Nós temos toneladas de mulheres incríveis, inteligentes, empolgadas e melhor, que não são predadoras sexuais em busca de algum espaço para trabalhar.

É bem fácil.

E aos outros homens, se não estiverem em posições de poder, vocês podem canalizar a sua energia para combater o assédio em vez de criticar mulheres no Twitter por errarem uma citação de Star Wars. É função de vocês, também, cobrar que os seus compatriotas respondam de verdade por seus erros e reforçar que esse tipo de comportamento NUNCA é aceitável.

Falar sobre esse tipo de comportamento abertamente parece ter sido responsável por trazer à tona esses importantes e difíceis debates raciais que estamos enfrentando agora. Um exame sincero sobre questões étnicas e racismo levou a um maior esclarecimento e abertura sobre o tema também.

Assim como vivemos em uma sociedade racista, construída com instituições e atitudes que oprimem pessoas negras, indígenas e outras etnias não brancas, nós também vivemos em uma sociedade machista que – AINDA – silencia mulheres e as reduz a objetos que só servem para sexo, reprodução e tarefas domésticas.

É isso. Não tem uma conclusão. Apenas um desespero e repulsa frequentes após anos de discussões sobre o #MeToo e inclusão, além da valorização das conquistas. Mas ainda estamos aqui. Ainda temos de debater isso, reforçar a simples ideia que “mulheres não existem apenas para uso sexual”. Será que é tão difícil de entender?


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

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