Precisamos falar sobre a constante cobrança de personagens que ainda estão em processo de evolução.

Enquanto aguardamos a próxima temporada de She-Ra e as Princesas do Poder, uma discussão tem sido levantada com certa consistência na internet: uma possível história de redenção para a nossa vilã preferida: Felina (ou Catra, para quem prefere ver no original).

Durante toda a série, Felina foi uma personagem que, por causa de seus traumas, um quadro de síndrome de estresse pós-traumático, e pelo fato de ter sido criada como uma criança soldado sem qualquer demonstração de amor, acaba tomando atitudes irracionais, cruéis, que ferem os outros e por vezes são realmente ruins. Na discussão que cerca a personagem, eu acho que é necessário que nos lembremos de uma coisa: ela não é uma adolescente comum ou uma adulta em uma série aleatória, mas sim uma adolescente que sofreu uma imensa quantidade de abuso.

Essa cena foi emblemática.

Quando eu era uma adolescente, eu me lembro de ter lido o quinto livro de Harry Potter e ter me irritado com o ataque emotivo de Harry a Dumbledore após a morte de Sirius. Para mim, parecia algo melodramático e exagerado para um personagem que raramente tinha chiliques emotivos como ele. Na verdade, esse foi um dos motivos pelo qual parei de gostar de Harry como personagem. E o fato de todas as falas de Harry serem escritas em caps lock soa, em retrospectiva, como mais um sinalzinho de alerta sobre a autora em si do que qualquer outra coisa.

Como adulta, porém – após aprender a lidar com trauma emocional e problemas ignorados por tanto tempo – eu consigo entender a reação de Harry ao sentir o último ponto de segurança que ele tinha no mundo ser arrancado dele, um dos poucos vínculos com seus falecidos pais. Além disso, Dumbledore deveria ter lidado melhor com isso. Eu quando adolescente, esperava que Harry agisse como um adulto, e não como um adolescente que havia sido vítima de abuso.

E a personagem de Felina é alguém que sofreu abuso emocional por sua figura materna. Se voltarmos um pouco na história, podemos ver Sombria explicitamente violentando Felina psicologicamente de forma que não fazia com as outras crianças da Zona do Medo. Eles nunca, Adora inclusive, fizeram nada para ajudá-la a lidar com essa situação.

Isso não quer dizer que Felina não deva ser responsabilizada por seus erros, ou que ela não tenha replicado comportamentos abusivos no passado, mas ela também não teve acesso a nenhuma das ferramentas necessárias para crescer de uma maneira saudável.

Depois de um pouco de leitura, eu percebi que apesar de termos a linguagem da justiça social para apontar os hábitos abusivos dos personagens fictícios, a série em nenhum momento pareceu justificar as ações de Felina. Eles nunca a transformaram em uma vítima, e assim, apesar de devermos responsabilizá-la, não podemos esquecer que estamos falando de uma pessoa completamente traumatizada.

Felina tem o mesmo espaço para redenção que Zuko teve em Avatar. Você pode afirmar que Zuko começou a série em uma posição muito mais privilegiada porque ele pelo menos tinha seu tio Iroh e sua mãe em um certo momento.

Já Felina viu Adora deixar a horda, que em um paralelo seria como ser abandonada por “seu tio Iroh”. E aqueles que apontam que ela ainda tinha pelo menos Scorpia realmente não entendem o que é ter um pensamento de “economia de fome”.

Uma boa definição está no livro “The Ethical Slut”, em que as autoras descrevem como uma crença de que “nossas capacidades de amar, ter intimidade e de se conectar são finitas, que nunca há o suficiente para ‘dar a volta por cima’ e que se você dá algo a alguém, está tirando de outra pessoa”. Elas explicam que você aprende isso de pais que nunca dão atenção suficiente – ou no caso de Felina, nenhuma atenção. Isso leva você a acreditar que todo o amor é cruel e isso também te torna desconfiado de pessoas que te oferecem amor.

Para Felina, quando Scorpia chega e quer ser sua amiga, ela já perdeu sua melhor amiga para “o inimigo”, e não apenas isso, mas Adora a deixou por ter descoberto que a Horda era ruim. Não tendo sido capaz de perceber isso quando Felina sofria abusos, mas sim por causa de dois estranhos. Para alguém que acredita que o amor é finito e passou por isso, não é fácil acreditar no amor de outra pessoa.

Às vezes nós queremos tanto que as pessoas se curem e cresçam que esquecemos que isso não apenas leva tempo, como também precisa de um ambiente apropriado.

Especialmente, se o que você quer é responsabilização e não apenas punição.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

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