Uma análise trekker detalhada.

*** O texto abaixo é uma tradução de uma entrevista da redatora Eleanor Tremeer para o site io9.***

No quarto episódio de Star Trek: Picard, um rosto familiar surge em cena. Com diversos personagens clássicos, esse poderia ser apenas mais um dia de trabalho no espaço. Mas estamos falando de Sete de Nove, a amada, marcante e ainda mais fodona personagem do que ela era durante seu tempo em Star Trek: Voyager – e ela sempre foi fodona. “Você me deve uma nave, Picard”, ela afirma, após salvar a equipe em uma batalha espacial e o episódio cortar para o final.

Após mais de 20 anos do retorno do USS Voyager para o Quadrante Alfa, em Picard, Sete agora é uma vigilante endurecida, que joga whisky para dentro enquanto xinga baixinho. E ela tem um traje que combina com a personalidade, composto de botas de combate, jeans, uma camisa larga, e é claro, uma jaqueta de couro. Ou seja, finalmente o traje a vácuo foi descartado, em um claro convite para enxergar Sete como uma pessoa primeiro, e depois como mulher – em um contraste claro com aquele espartilho destruidor de costelas de antes.

Quando confrontamos a Sete de Picard com a sua encarnação dos anos 1990, acabamos sendo forçados a encarar os erros do passado da série. E o que podemos aprender em 2020 olhando para a jornada do passado? Com todos os esforços feitos pela série em busca de representatividade feminina, podemos considerá-la ainda assim machista?

Uma nova fronteira para mulheres

As mulheres sempre foram presença constante em Star Trek, com caracterizações complexas, e foram tratadas (majoritariamente) de forma igualitária tanto por seus pares quanto pela sociedade utópica existente ao seu redor. O que faz sentido, afinal a representatividade e igualdade serem foram pilares centrais dessa história espacial. Quando o primeiro Star Trek foi lançado, a visão utópica de Gene Roddenberry fez com que ele colocasse uma mulher na ponte de comando – e originalmente não era sequer Uhura.

O primeiro piloto da série foi produzido em 1965, e apresentava uma mulher como oficial comandante. Conhecida apenas como “Número Um”, a personagem de Majel Barrett era uma presença poderosa na ponte de comando… Poderosa demais para o público de teste e para a NBC. De acordo com Roddenberry, foram as mulheres no público de teste que reagiram mal à presença da Número Um, achando que ela era assertiva demais. Quando a série original foi reimaginada com Kirk no comando, a Número Um não estava mais lá. Levaria duas séries e três décadas para que Star Trek voltasse a escalar uma mulher como Primeira Oficial.

Sem a Número Um, as mulheres de Star Trek eram muito parecidas com aquelas da época em que foi produzido. A enfermeira Chapel (novo papel de Barrett) era subserviente ao Dr. McCoy, e Uhura (Nichelle Nichols), uma pioneira da representatividade afro-americana, ainda assim tinha muito menos diálogos do que os personagens masculinos. Em entrevista ao io9, Marina Sirtis (Deanna Troi, de The Next Generation) foi franca em seu comentário sobre a representatividade feminina na série: “O fato de que ela estava na Ponte como uma mulher negra foi esse. Eles haviam derrubado tantas paredes para colocar Uhura na Ponte. Ela não tinha muito o que fazer, mas estava lá”.

É claro, Star Trek não ficou preso nos anos 1960. Em 1986, a franquia ganhou um sopro de vida com a série The Next Generation, cuja tripulação não possuía apenas uma ou duas, mas três mulheres. Estamos falando da apaixonada conselheira Troi, da humanista Dra. Beverly Crusher e da ousada Tenente Tasha Yar, que era particularmente diferente das personagens anteriores. Tomando o papel tradicionalmente masculino de chefe da segurança, Tasha foi inspirada na personagem Vasquez, de Alien, para dar vida a uma mulher moderna.

“Foi um período interessante, os anos 80”, afirmou Denise Crosby, intérprete de Yar, de forma nostálgica ao descrever o que fez de sua personagem um marco cinematográfico de sua época.

“Mulheres estavam se definindo não em termos de como deveriam ser percebidas, mas como elas queriam ser percebidas”

Crosby se identificava com esse movimento, que Gene Roddenberry achava renovador. “Ali estava eu, com esse corte de cabelo de garoto, que não deveria estar na TV, e ele disse ‘Eu gosto disso! Esse é um visual excelente!’, então eu era parte de uma onda de mudanças. E eu acho que foi impactante!”

E é fácil encontrar ecos de Tasha Yar em outras mulheres marcantes da ficção científica. De Sam Carter em Stargate a Kara “Starbuck” Thrace de web, marcas de Yar puderam ser encontradas na ficção científica dos anos seguintes. Mas ainda assim, existe uma ponta de aspereza no porquê dela ser tão importante. Claro, ela causou impacto como uma mulher direta em um papel masculino, mas o impacto de sua personagem foi enterrado e cortado subitamente por sua morte – cujas circunstâncias serão abordadas posteriormente.

Com o fim de Yar, as mulheres de The Next Generation voltaram a se acomodar em moldes classicamente femininos, como lembra Marina Sirtis:

Eles haviam feito isso certo, eles haviam escalado uma mulher como chefe da segurança. Mas Denise foi embora e as duas mulheres restantes estavam em profissões de cuidado. Então tudo bem estar em uma nave espacial como mulher, mas você deveria apenas cuidar dos outros.

Também em entrevista ao io9, Gates McFadden (Crusher) reclamou sobre a forma como os raros momentos em que as mulheres se reuniam não eram para trabalhar juntas, mas para fofocar. “Se as garotas tinham uma cena juntar, eram vestidas com roupas coladas para falar sobre homens. Nós sequer trocávamos opiniões sobre questões médicas!”

Com o passar dos anos, Troi e Crusher lentamente começaram a ganhar mais tempo de tela, uma vez que suas personagens se tornavam mais cheias de nuances, mas elas raramente tinham alguma chance de escapar do molde de cuidadora. E com a saída de Crosby, a chefia da segurança não era a única posição que precisava ser preenchida. “Eu nunca deveria ter sido a garota da série, a va-va-voom. Essa era para ser a Denise”, afirmou Sirtis.

Por mais que a série tentasse ser progressista com suas mulheres, Star Trek tinha algo em comum com todas as séries: sempre precisava ter uma garota sexy.

A “gata” de Star Trek

Você pode não esperar algo do tipo vindo de uma série renomada por sua atitude socialmente progressista – mas ainda assim, toda série possui sua “sex symbol”. “Era uma série de ação e aventura! Você precisa ter uma garota para os garotos olharem enquanto não estão explodindo outras naves espaciais”, afirmou Sirtis de forma seca.

E quem seria a “gata” de Star Trek? Ela tinha de ser jovem, magra e bonita. Sua roupa seria muito mais colada do que a dos outros personagens, para destacar as suas curvas. E é claro, ela tinha de ser melhor do que todas as outras. Essa era a Sete de Nove, uma ex-Borg que se uniu a tripulação do Voyager ao final da terceira temporada. No alto dos 10cm de saltos, Jeri Ryan era colocada diariamente em seu traje a vácuo, que consistia em um espartilho desossado com destaque para os seios. Praticamente um feito da engenharia.

Mesmo naquela época, o traje de Sete causou muita discussão – o que era exatamente o objetivo da rede de televisão. “Sete de Nove era provavelmente uma das personagens mais sexy que já vi na TV”. Essa foi a forma como Conan O’Brien apresentou Ryan em seu show, em 1998, abordando exatamente o motivo dela se unir à tripulação. Enquanto o público aplaudia, Conan perguntou como é que a sua personagem conseguia usar aquela roupa. “É medicinal”, ela afirmou de maneira irônica. E ele respondeu “É medicinal para mim!”.

A introdução de Sete em Voyager foi um movimento calculado. Sob a sombra do altamente influente The Next Generation, e competindo com Deep Space Nine, o mais novo spin-off da série não estava indo tão bem quando a rede esperava. Apesar de ter atingido 13 milhões de espectadores na estreia, a série já havia perdido metade do público em sua primeira temporada, e os números continuavam caindo. No início da terceira temporada, a média era de 4,6 milhões. E esse era um mergulho muito mais rápido do que o de Deep Space Nine, que havia mantido uma média de 8 milhões por suas quatro primeiras temporadas. A CBS queria mais de Voyager, e com a inclusão da personagem, eles viram não apenas uma chance de melhorar os números, mas também de entrar no cenário mainstream.

Nos anos seguintes, Ryan descreveu os cenários das reuniões publicitárias que foram feitas sobre Sete de Nove. Ela foi entrevistada dezenas de vezes pela mídia, com suas fotos promocionais pin-up espalhadas pelas capas de revistas e jornais – inclusive uma particularmente memorável em uma espécie de crossover com sua colega Lucy Lawless, de Xena. “Foi sempre em busca de público. E o número de espectadores aumentou bastante após adicionarem a Sete”, afirmou Ryan.

Apesar do traje de Sete continuar sendo o principal assunto – basta digitar o seu nome no Google e vocês podem encontrar milhares de textos discutindo limites éticos para esse tipo de traje – Ryan afirma que existem outros motivos pelos quais a personagem aumentou a aprovação de Voyager:

Ela é brilhantemente escrita. Eu acho que a qualidade da série melhorou porque ela trouxe também histórias ricas para serem exploradas com outros personagens. E isso deu uma vida nova à série.

Sete de Nove é uma perfeita tempestade. Uma personagem que atraiu atenção por sua aparência, mas prendeu o público com sua história. E isso funcionou. Mesmo hoje, episódios com foco nela atraem mais público. De acordo com a Netflix, os episódios mais reassistidos da franquia são aqueles que focavam em Voyager. Desses episódios, apenas dois não focam na jornada de Sete – “Scorpion” é a sua introdução, “The Gift” mostra seu confronto com Janeway, “Dark Frontier” conta sobre a sua conexão com os Borgs. E mesmo “Endgame”, episódio final da série, apresenta Sete em um papel central.

E esse era o motivo porque Ryan não se incomodava com o traje:

“Eu não tive problemas com sua aparência excessivamente sexy, que muitos achavam desnecessária, porque isso era a completa antítese da personagem. Ela mesma não percebia isso.”

Ainda assim, existe algo bem perturbador em separar Sete de seu apelo sexual, uma vez que isso rouba sua autonomia pela atenção sexual causada pelo traje.

O que poderia ser diferente se ela fosse um ser sexual, que utilizava o traje para ser intencionalmente provocadora? Ela ainda assim seria amada?

Na realidade, a falta de preocupação de Sete com a sua aparência permitia que o público aproveitasse a “visão” da personagem sem se sentir desconfortável. Não se preocupe, público, ela só se veste assim porque não faz ideia do que é sexo… O traje é medicinal, lembra? Sete, uma inativa e ignorante participante em sua própria sexualização, caminha através da nave em um traje tão apertado que a atriz precisava deitar entre a gravação das cenas para recuperar o fôlego.

E foram os homens em sua vida, tanto na ficção quanto por trás das cenas de Voyager, que decidiram isso por ela.

Os efeitos indiretos do machismo

Tudo isso parece um tanto paradoxal. Afinal de contas, o roteiro de Star Trek claramente melhorou de The Next Generation para frente. As mulheres de Deep Space Nine se libertaram dos papéis tradicionalmente femininos: Kira Nerys (Nana Visitor) teve bastante tempo de tela enquanto a série trabalhava seu arco de desenvolvimento, enquanto Jadzia Dax (Terry Farrell) desafiou as convenções sociais sendo, claramente, a primeira personagem canonicamente queer da franquia. Mas foi Voyager que levou a representação feminina um pouco além, finalmente apresentando uma capitã mulher, no papel principal. Então, por que Voyager também foi a série que apresentou uma mulher tão objetificada que ainda falamos sobre isso décadas após o seu encerramento? Talvez o machismo da série não surja “apesar” da abordagem tecnicamente feminista em outros aspectos, mas exatamente por causa dela.

No início, a publicidade sobre Voyager focava na novidade de uma comandante mulher, mas conforme os números caiam, os produtores começaram a se preocupar que isso não seria o suficiente para prender o interesse do público – e que talvez isso inclusive estivesse afastando o público. Entrevistado pela The Television Academy, em 2006, o produtor-executivo da série, Rick Berman, explicou os motivos pelos quais Sete foi adicionada à série:

Queríamos que Janeway fosse capitã de uma frota estelar, mas também queríamos que ela fosse feminina. E essas coisas não combinam. Se você procurar mulheres oficiais militares que chegam à patente de Almirante, elas tendem a não ser bonitas. Nós escalamos uma mulher nos seus 40… mas ainda queríamos uma mulher feminina.

A adição de uma “gata” para afastar o feminismo de Voyager pode ter melhorado os números, mas colocou uma significativa pressão sobre o elenco, criando um ambiente de trabalho cheio de tensão. Até a apresentação de Sete, Janeway era claramente a estrela da série, com Kate Mulgrew concedendo dezenas de entrevistas e aparecendo na capa de revistas. Ainda assim, com a chegada de Ryan, veio uma mudança sísmica. Agora, todos queriam saber sobre essa jovem e sexy mulher, que havia ganhado os holofotes como se fosse a protagonista da série – afinal, Lucy Lawless era a protagonista de sua série, e a TV Guide de 1999 colocou Lawless e Ryan lado-a-lado em sua capa, e não Lawless e Mulgrew. Isso causou uma forte tensão dentro do elenco da série.

“No começo, a raiva de Kate não era direcionada a Jeri Ryan, mas sim à personagem”, afirmou Garret Wang (Harry Kim) para a Closer, em 2018. “Quando os produtores disseram que não iriam se livrar de Sete, Kate continuou reclamando. Finalmente sua raiva se virou contra a atriz. E foi aí que as coisas ficaram horríveis”. A conduta de Mulgrew se tornou tão estressante que Ryan afirmou para a revista que sentia “náuseas” antes de chegar no set de filmagem diariamente. “Eu entendo completamente os motivos. Eu entendo, pode acreditar, mas era muito difícil. No final das contas, essa não foi minha experiência de trabalho favorita por causa disso”.

Mesmo sem as ações de Mulgrew, Ryan já tinha muito para lidar apenas por causa de seu traje. “Se eu precisava ir ao banheiro, precisávamos de uma pausa de 20 minutos na produção. Todo mundo ficava sabendo pelo rádio. Alguém precisava me ajudar a me despir e a me vestir”. E isso não afetava apenas Ryan, mas todos no set, como um dos colegas de elenco afirmou de maneira anônima para a Closer.“Em um momento, Kate puxou o produtor de linha para o canto e falou ‘Jeri Ryan não pode usar o banheiro senão antes ou depois do trabalho, mas não durante. Leva muito tempo para colocar ela para dentro e para fora daquele traje”. Com isso a jornada de trabalho costumava ultrapassar 15 horas diárias, o que obviamente não era praticável.

Apesar de figurinos muitas vezes serem difíceis de lidar, quando um traje é feito para ampliar o apelo sexual, existe uma dificuldade ainda maior para a vida profissional da atriz.

E ninguém sabe disso melhor do que Marina Sirtis. Sobrevivente de anorexia e outros distúrbios alimentares, ela esteve sob grande pressão para perder peso para que pudesse manter sua posição como “gata” em The Next Generation. Em entrevista ao io9, ela afirmou que recebia ligações dos produtores dizendo que ela estava gorda, e que eles pagavam muito dinheiro para ela parecer bonita, o que levou ela a ter a aparência de um “bicho palito”, em suas palavras.

Para parte do elenco, o ambiente tóxico começou mesmo antes das filmagens, como foi o caso de Terry Farrell, intérprete de Jadzia Dax, em Deep Space Nine. Entrevistada por causa do livro The Fifty‑Year Mission, ela revelou que sua experiência de figurino com Rick Berman foi bastante desconfortável:

Ele comentava sobre o tamanho do sutiã não ser ‘voluptuoso’. Ele falava coisas como ‘Bem, você é reta. Olhe a Christine ali, ela tem seios perfeitos’.

Com a sua insatisfação sobre o corpo de Farrell, ele então chamou o departamento de figurino para “consertar o problema”:

Eu tive de usar enchimento para que Dax tivesse seios maiores. E então tive de ir ao escritório de Berman.

E se as experiências de Sirtis, Ryan e Farrel nos ensinam algo, é que a objetificação das personagens femininas de Star Trek não apenas manchou a sua reputação ostensivamente progressista, mas também criou um ambiente de trabalho muito complicado.

Então, para realmente julgar Star Trek como machista ou não, precisamos olhar por detrás das cenas – e descobrir qual tipo de cultura levou a essas decisões.

O “Clube do Bolinha”

Se a indústria do entretenimento é dominada por homens hoje, isso era ainda mais grave décadas atrás. Star Trek teve poucas escritoras e produtoras mulheres através dos anos. DC Fontana escreveu para a série original, The Next Generation e Deep Space Nine; Jeri Taylor começou produzindo The Next Generation antes de ser co-criadora de Voyager, e esses são os dois grandes exemplos de integrantes da equipe com alguma influência. Como apontado por Sirtis, Star Trek é uma franquia criada por homens:

Ainda que estivéssemos escrevendo uma série sobre o século XXIV, tirando Jeri Taylor e Melinda Snodgrass (outra roteirista), os escritores e produtores eram todos homens. Homens do século XX. Então não dava pra ser tão avançado assim.

Podemos argumentar, é claro, que a série era um produto de sua época, mas os atores já sabiam naquele momento, que a série poderia ser muito melhor. Isso incomodou Gates McFadden, já no início da primeira temporada de The Next Generation, como ela revelou para o io9:

Eu me perguntei, as mulheres só existem para causar alguma reação nos homens? Mesmo Wesley apenas reagiu à sua mãe, sem buscar aconselhamento com ela – em busca de conselhos ele foi atrás dos homens da nave.

Chegando da academia, McFadden estava acostumada a um ambiente criativo colaborativo, mas ela não encontrou isso por detrás das cenas de The Next Generation. “Jonathan Frakes podia entrar na sala da produção e colocar os pés pra cima, mas eu não podia. Isso não era aceitável”.

As opiniões de McFadden causaram conflito com um produtor em particular, especialmente quando ela fez cobranças sobre Wesley (Wil Wheaton). “Foi então que eu irritei os roteiristas. Eu disse ‘Olha, ele só procura os homens em busca de conselhos e nunca fala com ela’. Eu era apaixonada com relação a isso e alienei aquele produtor”, afirmou ela. Rick Berman posteriormente apontou Maurice Hurley como o produtor em questão – e a tensão entre Hurley e McFadden chegou ao auge próximo ao fim da primeira temporada.

“Eu ouvi dizer que ele disse algo do tipo ‘ou ela sai ou saio eu’”. Como revelado na entrevista, McFadden nunca foi informada oficialmente sobre os motivos de sua demissão, mas veio a descobrir a verdade posteriormente. “Então a escolha foi feita e eu saí”. Quando questionado sobre a saída de McFadden, Crosby se posicionou sobre o assunto afirmando que “No final das contas, é sobre a frustração de não ser vista ou ouvida. Sem dúvidas é uma dinâmica de gêneros, e que continua acontecendo”.

E McFadden não foi a única cujo conflito com produtores levou a uma demissão precoce. Próximo ao fim da sexta temporada de Deep Space Nine, o contrato de Terry Farrell estava acabando. Em busca de outros projetos, a atriz tentou abrir negociações para ter um papel menor na temporada final – um contrato similar ao que Colm Meaney (Miles O’Brien) tinha para o restante da série. Mas isso virou um conflito com Berman, como ela comentou na entrevista sobre “The Fifth Year Mission”.

Ele estava tentando me forçar a dizer sim. Ele estava convencido que minhas cartas iam acabar e eu iria assinar. Ele fez com que outro produtor me procurasse para dizer que ‘se eu não estivesse ali, eu sabia que poderia estar trabalhando no Kmart’.

Relembrando o problema para o documentário “What We Left Behind”, Ferrell protestou com os olhos marejados sobre a saída de sua personagem: “Eu não queria morrer! Mas chegou a um ponto em que era tipo ‘Não me demita! Fale comigo!’”. No final da história, ela não teve a possibilidade de renegociar seu contrato, e então deixou a série – deixando a sua personagem brutalmente assassinada na fonte Bajoran de Deep Space Nine.

E é claro que essa não foi a única vez em que o pedido de renegociação de contrato de uma mulher levou sua personagem a morrer.

O mesmo aconteceu com Denise Crosby, que estava frustrada com a falta de envolvimento de Tasha Yar durante a primeira temporada de The Next Generation:

Havia vários episódios em que eu simplesmente ficava parada no meu posto de segurança sem falar nada. Sem interagir com ninguém. E eu pensei que ia perder a cabeça fazendo isso por outros seis anos.

A atriz então procurou Gene Roddenberry, mas conforme relatou ao io9, ele era contra a ideia de linhas de história que não fossem a do personagem capitão. “Gene não queria mudar isso, ele não estava disposto a ceder”. Em vez disso, Roddenberry “liberou” Crosby de seu contrato de várias temporadas.

Isso pelo menos foi bom por parte dele. Ele disse ‘Eu já tive a sua idade, estava faminto e ambicioso e entendo totalmente. Você deveria procurar outra coisa’.

Liberar um ator de seu contrato é uma coisa. Matar seu personagem para que não possa retornar é outra.

E foi isso que aconteceu com Yar – e quase, mas por muito pouco, não aconteceu com outra personagem. “Gene achava que tínhamos mulheres demais na série”, revelou Sirtis, dizendo ter certeza que seria demitida no final da primeira temporada. Com Troi aparecendo cada vez menos nos episódios, ela diz lembrar que os produtores a evitavam. “Meu agente ligou para Roddenberry e perguntou ‘o que podemos fazer?’, e ele respondeu ‘olha, eu tenho de fazer o que é melhor para a série’”.

Antes que Troi fosse cortada, Crosby deixou a série. “A saída de Denise é o motivo pelo qual estamos conversando agora. Ela salvou meu trabalho”, disse Sirtis. Se Crosby não tivesse deixado The Next Generation, a série teria sido bastante diferente – e é possível que nem Troi ou tampouco Crusher tivessem sobrevivido ao final da primeira temporada. De acordo com Crosby, Roddenberry estava ansioso para matar Yar a partir do momento em que soube que ela sairia da série.

Ele nunca havia feito isso com nenhum dos personagens regulares. Seria chocante porque seria inesperado e sem motivos.

Com Sirtis nas cordas antes da saída de Crosby, iria Roddenberry matar Troi no lugar dela? Ou seria Crusher morta quando Maurice Hurley deu seu ultimato sobre Roddenberry pedindo a demissão de McFadden? Essas perguntas jamais serão respondidas, mas existe algo extremamente desconfortável em todas essas histórias contadas por Crosby, Sirtis, McFadden e Ferrell, e isso tem a ver com mulheres enfrentando clubinhos masculinos. E com isso tendo suas personagens mortas ou lançadas para fora.

Como as coisas estão mudando

As coisas eram assim. Então o que mudou nessas últimas décadas? Bem, ao menos uma coisa, já que Sete de Nove não está mais usando roupas a vácuo – e isso deixou Ryan feliz:

Estou alegre além das palavras por não ter mais trajes envolvidos [em Picard]! Eu acho que é muito mais apropriada a forma como a personagem se veste agora, e é perfeito depois de tudo que ela passou.

Algo extremamente distante de seu traje inadequado em Voyager, a caracterização de Sete em Picard é confortável e pronta para ação.

E assim como fez quando surgiu em Voyager, a inclusão de Sete em Picard levou a um pico de interesse e mudança na publicidade da série. Mas é muito satisfatório saber que ela não precisa estar vestida em um traje a vácuo para isso acontecer.

Boa parte disso se deve ao sucesso de sua personagem em Voyager, mas isso também prova como a nossa ideia de representação feminina mudou. Agora os produtores não podem mais se livrar com ideias como o traje em que Sete era enfiada, ou com a publicidade pin-up que convidava apresentadores a apresentarem Ryan de forma lasciva ao público, a constrangendo em sua apresentação.

Ainda sobre as mudanças na indústria, Ryan disse que “Naquela época a indústria era diferente, e nós evoluímos. Graças a deus! Não o suficiente, mas estamos chegando lá”. E McFadden concorda com isso: “Quando eu penso em Discovery e Picard, as mulheres evoluíram tanto”. Tendo lutado em busca de representatividade desde The Next Generation, McFadden parece estar bem feliz com a forma como as coisas mudaram em Picard:

“Essas mulheres são personagens muito além de seu gênero. E isso é um progresso maravilhoso!”

Sirtis, que se uniu à serie do CBS por um episódio parece estar igualmente impressionada.

“Com Picard, nós temos igualdade. Velhinho careca, desculpa, Sr. Velhinho Careca, ele pode ser o primeiro na chamada, mas tirando isso somos todos iguais. Temos homens e mulheres, e não há o predomínio de um gênero sobre o outro”.

E ainda que a série seja protagonizada por um homem, Picard é realmente bastante dirigido por mulheres. No elenco principal, temos quatro homens e três mulheres, mas entre os personagens recorrentes, temos quatro mulheres para dois homens. E além disso, para completar o cenário de igualdade, a série conta com completa paridade de tempo de tela – pendendo um pouco mais para o tempo de tela de mulheres do que para o de homens.

Isa Briones – novata na série e na televisão – afirmou para a io9 que acha essa abordagem revitalizante. Ainda que inicialmente ela estivesse preocupada que sua personagem, Soji, fosse surgir no padrão sexy de antigamente. E disse:

Nós poderíamos ter tão facilmente caído naquele tropo, fazendo com que ela fosse aquela garota infantil que não sabe de nada, que só segue os homens.

É verdade que Sete de Nove cai nesse estereótipo em Voyager, como a estranha infantil que precisa ser ensinada sobre o que é “ser humano”. Briones então continuou:

Soji está seguindo sua própria jornada para descobrir quem ela é, da sua maneira. Eu acho que é bonito que você possa pegar uma personagem como ela agora e não tenha que colocar em trajes ridículos, a transformando em um objeto sexual.

E não foi apenas uma mudança na percepção social que levou a essa mudança na representação feminina. Hoje temos também melhores oportunidades para mulheres na indústria, como McFadden apontou:

Temos muito mais mentoras para jovens mulheres hoje em dia. Eu queria dirigir, tanto, mas tanto, e eu cheguei a pedir isso em minha primeira temporada. E não consegui.

Ela eventualmente chegou a dirigir um episódio em The Next Generation, enquanto seus colegas homens dirigiram vários. Frakes, por exemplo, utilizou essa experiência para se lançar em uma longa carreira como diretor, provando o quão grandes podem ser essas oportunidades.

Briones, porém, já encontrou várias mentoras no set de Picard, em particular com Sirtis, que colocou a jovem atriz sob sua proteção. “Eu só estava dando algumas dicas”, disse ela rindo. “Algumas coisinhas que eu tive que aprender e ninguém me ensinou”. E isso é muito adequado para manter a tradição de empoderamento de personagens femininas da série, que podemos ver até mesmo fora dos sets de Star Trek. McFadden, por exemplo, comentou sobre como várias mulheres a procuraram para dizer que Beverly Crusher havia as inspirado a perseguir seus objetivos.

Eu falei com tantas cirurgiãs que disseram que Beverly as inspirou a perseguir uma carreira na medicina. Obviamente foi a perseverança delas que fez acontecer, mas ver que Beverly fez alguma diferença… Ela mostrou que isso era possível.

Não é só a entrada no mercado de trabalho, como Ryan deixou claro:

“Eu ouvi de tanta gente, pessoas no espectro autista, na comunidade LGBTQIA, sobreviventes de situações traumáticas, diversas pessoas que se conectaram com a Sete. Elas apreciavam tanto o sentimento de ver a si mesmas na tela, por terem se sentido como estranhas. Eu amo que a Sete tenha ajudado pessoas a não se sentir sozinhas”.

Antes de Voyager apresentar Sete, Tasha Yar era considerada um marco para representatividade queer, como afirmou alegremente Crosby:

As pessoas sempre me perguntaram, sabe, ‘Tasha era gay?’, e eu acho que naquele século era algo que realmente deveríamos estar falando sobre? Então eu sempre dei uma piscadinha em resposta sobre isso, e nunca respondi diretamente. Hétero, gay, bi… Escuta, ela estava com uma androide, como você chama isso?

Apesar de Star Trek ter uma história feia a respeito de representatividade LGBT, ficou implícito ao final da primeira temporada de Picard que Sete de Nove é queer. E Ryan está completamente feliz com essa escolha, pelas mesmas razões que Crosby costumava dar a sua piscadinha. “Faz total sentido”, disse ela sobre a sexualidade de Sete.

Porque vindo dos Borgs, essa é a personagem perfeita para explorar, porque ela não cresceu em uma sociedade que a influenciaria para um lado ou para outro. Isso é o que é, esse é quem você ama, você é atraído por quem é atraído, que seja.

Nova na franquia e empolgada com o potencial de sua personagem, Briones espera que Soji seja similarmente um marco para pessoas marginalizadas.

Eu realmente me identifico com Soji, porque sou birracial. E como uma criança birracial, você ouve bastante que ‘você não é isso, você não é aquilo’. E Soji se sentiu humana por toda sua vida, então como alguém pode dizer que ela não é?

Briones acredita que é importante para pessoas jovens verem como Soji está passando pelo que está passando “no elevado ambiente do espaço”.

É claro que não é só Picard que está lutando a boa luta em termos de representatividade em Star Trek. Ainda que tenha que melhorar a forma de representação LGBT, Discovery desbravou outra trilha através das estrelas com Sonequa Martin-Green no comando. Aqui e ali novamente, nós encontramos a tradição das mulheres inspiradoras de Star Trek em inspirar outras mulheres, como Crosby disse em sua mais recente reunião com Martin-Green.

Sonequa disse para mim, ‘Tasha foi a janela para a personagem que estou interpretando em Discovery. Você realmente me deu uma visão sobre como interpretar essa personagem’. E eu fui profundamente tocada.

Levando em consideração a morte de Tasha, seu legado é importante.

“Não estamos deixando isso no passado. Estamos levando para o futuro, essa linhagem de mulheres. Ela continuará a crescer”.

Enquanto refletimos sobre a história de representação feminina em Star Trek, podemos ver tanto objetificação quanto representações inspiradoras.

E agora, conforme mais mulheres escrevem personagens femininas, lado a lado com homens, mais isso se torna uma história sobre pessoas escrevendo sobre pessoas.

Isso mostra que quanto mais inclusivos nós somos enquanto sociedade, mais nos tornamos capazes de imaginar e construir um futuro melhor.

E não é isso que Star Trek tenta nos dizer desde o início?


Texto traduzido e adaptado da io9. Imagem de capa: Elena Scotti

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