A indústria de anime lucra cifras milionárias, mas seus artistas ganham apenas o suficiente para sobreviver.

O raios elétricos do Pikachu atingiram os EUA em 1998 e mudaram a vida de uma geração.

A febre de anime dos EUA para o resto do mundo começou na virada do século com as garotas mágicas de Sailor Moon, salvando a Terra com nomes de planetas e satélites distantes; com os piratas, ciborgues e peixes-humanos de One Piece procurando um tesouro lendário; e, claro, com Pokémon, Ash Ketchum e a busca para “catch’em all“.

Esses animes clássicos e muitos outros levaram o legado das animações japonesas para algumas partes do mundo e, entre 2002 e 2017, a indústria de anime dobrou de tamanho para mais de US$19 bilhões por ano. Um dos animes mais influentes e renomados da área, Neon Genesis Evangelion, finalmente estreou na Netflix, marcando o começo de um alcance global definitivo dos animes.

Mas o sucesso do anime fora das ilhas nipônicas esconde uma realidade econômica subjacente de fato perturbadora: muitos dos animadores por trás da mágica das telinhas estão falidos e enfrentam condições de trabalho que podem levar ao esgotamento e até ao suicídio.

A tensão entre uma implacável estrutura industrial e o idealismo artístico do anime obriga os animadores a sofrerem a exploração em prol da arte, sem solução à vista.

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O problema do trabalho análogo à escravidão na indústria de anime

Animes são quase inteiramente desenhados à mão, na maior parte das vezes. E é preciso habilidade para criar animação desenhada à mão, além da experiência para fazê-lo rapidamente.

Shingo Adachi, animador e designer de personagens da popular série de anime Sword Art Online, disse que a escassez de talentos é um problema sério – com quase 200 séries de TV animadas feitas no Japão todos os anos, e não há animadores qualificados sobrando por aí para essa tarefa. Então os estúdios contam com um grande grupo de freelancers essencialmente não remunerados que são apaixonados por anime.

No nível inicial da indústria estão “animadores intermediários“, que geralmente são freelancers. São eles que fazem todos os desenhos individuais depois que os diretores de nível superior criam os storyboards e os “animadores-chave” desenham os quadros importantes em cada cena.

Animadores intermediários ganham cerca de 200 ienes por desenho – menos de 2 dólares. Isso não seria tão ruim se cada artista pudesse produzir 200 desenhos por dia, mas um único desenho pode levar mais de uma hora. Isso sem mencionar a atenção meticulosa dos animes a detalhes que são em geral ignorados pela animação no Ocidente, como detalhes na comida,  na arquitetura e na paisagem, que podem levar quatro ou cinco vezes mais do que a média para desenhar.

Mary and The Witch’s Flower

Sobre isso, Adachi desabafou:

Mesmo que você suba a escada hierárquica e se torne um animador-chave, não vai ganhar muito. E mesmo que o seu título seja um grande sucesso, como Shingeki no Kyojin, você não lucrará nada disso… É um problema estrutural na indústria de anime. Não é nenhum sonho [trabalhar como animador].

As condições de trabalho são sombrias. Animadores muitas vezes adormecem em suas mesas. Henry Thurlow, um animador americano que vive e trabalha no Japão, disse ao BuzzFeed News que ele foi hospitalizado várias vezes devido a doenças causadas pelo cansaço.

O estúdio Madhouse foi recentemente acusado de violar o código de trabalho: os funcionários estavam trabalhando quase 400 horas por mês e passaram 37 dias consecutivos sem um único dia de folga. O suicídio de um animador em 2014 foi classificado como um incidente relacionado ao trabalho depois que os investigadores descobriram que ele havia trabalhado mais de 600 horas no mês anterior à sua morte.

Parte da razão pela qual os estúdios usam freelancers é que eles não precisam se preocupar com códigos legais de trabalho. Uma vez que freelancers são contratados de forma independente, as empresas podem impor prazos extenuantes, poupando dinheiro por não fornecer benefícios.

“O problema com anime é que ele leva muito tempo para ser feito”, disse Zakoani, animador do Studio Yuraki e Douga Kobo.

É algo extremamente meticuloso. Um único corte – uma cena – teria de três a quatro animadores trabalhando nele. Eu faço os rascunhos iniciais, e depois duas outras pessoas revisam, um animador mais experiente e o diretor. Então ele é enviado de volta para mim e eu limpo tudo. Em seguida, ele é enviado para outra pessoa, o intermediário, que faz os detalhes finais.

Segundo a Associação Japonesa de Criadores de Animação, um animador no Japão ganha em média 1,1 milhão de ienes (US$10.000/aproximadamente R$40.000) por ano em seus 20 anos, 2,1 milhões de ienes (US$19.000/aproximadamente R$75.000) em seus 30 anos, e um meritíssimo 3,5 milhões (US$31.000/aproximadamente R$120.000) em seus 40 e 50 anos. E a linha da pobreza no Japão é de 2,2 milhões de ienes anuais.

Animadores dão seus jeitos de pagar suas despesas de qualquer maneira, muitas vezes trabalhando por fora. Terumi Nishii, animadora freelancer e designer de jogos, ganha a maior parte de sua renda com animação de videogames porque precisa cuidar de seus pais. No salário de um animador, ela teria pouca chance de se alimentar sozinha.

Outro animador e designer de personagens, que não queria ser identificado mais do que pela sigla C.K., falou um pouco sobre também:

Quando eu era jovem, eu sofria, sinceramente. Felizmente, minha família é de Tóquio, então eu pude viver com meus pais e de alguma forma sobreviver. Como animador intermediário, eu ganhava ¥70.000 ienes (aproximadamente U$650 e R$2.500) por mês.

As iniquidades estruturais da indústria de anime remontam a época de Osamu Tezuka, o criador de Astro Boy, considerado o “deus do mangá”. Tezuka foi responsável por um catálogo interminável de inovações e precedentes em mangás, quadrinhos japoneses e animes, animação televisiva. “No início dos anos 1960, com redes de TV pouco dispostas a assumir o risco em uma série animada, Tezuka vendeu Astro Boy para colocá-lo no ar. Basicamente, Tezuka e sua empresa estavam tendo uma perda financeira para arriscar um campo novo” – disse Michael Crandol, professor assistente de estudos japoneses na Universidade de Leiden. “Eles planejaram compensar a perda com a venda de brinquedos e figures do Astro Boy, com mercadorias, doces… E como esse cenário específico funcionou para Tezuka e para as emissoras, isso acabou se tornando o status quo da indústria”.

Exibição do Astro Boy em um shopping de Shanghai I VCG/VCG via Getty Images

A empresa de Tezuka compensou o déficit e o anime foi um sucesso, mas ele sem saber estabeleceu um precedente perigoso: tornar impossível para aqueles que seguiram seus passos ganhar um salário digno.

Diane Wei Lewis aponta em um estudo recente que as mulheres japonesas, que muitas vezes trabalhavam com animação em casa, eram especialmente vulneráveis ​​à exploração e recebiam ainda menos.

Hoje em dia, quando os comitês de produção definem o orçamento para os animes, existe um precedente há muito estabelecido para manter os custos baixos. A receita é dividida entre as redes de televisão, editores de mangá e empresas de brinquedos. “As empresas-mãe ganham dinheiro com os acordos de merchandising”, disse Crandol, “mas o orçamento para os animadores de base é separado”.

Henry Thurlow continua:

Esses preços são tão ridículos porque ainda estão baseados no que Tezuka criou. E naquela época, os desenhos eram muito simples… você tinha uma cabeça de círculo e olhos pontilhados, e talvez você pudesse desenhar um meio-termo em 10 minutos. Eu poderia ganhar algum dinheiro nesse ritmo… mas anime japonês [atual], é um desenho detalhado. Você trabalha por uma hora por dois dólares.

Thurlow acrescentou que há uma expectativa de que você saia do mercado quando se casa. “Porque se você é casado, precisa passar algum tempo com seu cônjuge. Você não pode trabalhar o tempo todo e não ganhar nada”.

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O preço da arte

Os resultados artísticos não decepcionam. Your Name, um romance encantador que virou o maior sucesso de bilheteria da história do anime quando transformado em filme, apresenta um catálogo de paisagens maravilhosamente renderizadas dignas de uma galeria de arte.

Só as representações de comida são dignas de uma lista de “Top 10 melhores comidas de Tóquio”: um ramen com carne de porco e ovo cozido; panquecas fofas regadas com xarope e generosamente cobertas com abacaxi e pêssego; uma caixa artesanal de bento cheia de omelete japonesa doce, salsichas, tomates e cerejas maduros e ameixa em conserva.

Um print do filme Your Name, de 2016, mostrando de forma detalhada e linda uma panqueca de mirtilo com manteiga e xarope | CoMix Wave Films

Crandol aponta que você pode identificar todos os prédios em locais reais em Tóquio, assim como todos os cenários foram baseados em cenários existentes, com muita fidelidade.

A parte artística é um recurso fundamental do anime. Ian Condry identifica vários outros em seu livro The Soul of Anime: temas adultos, conteúdo gráfico, fusão inovadora do remix de samurai-hip-hop de Samurai Champloo, e o espírito democrático do anime, onde os fãs participam fazendo arte através de legendas de fãs, fan art e fanfiction.

Historicamente, merchandising gerava mais receita do que a TV ou os filmes, mas como a popularidade do anime disparou no exterior, o próprio anime  em si compõe uma parcela muito maior da receita atual da indústria. Só o lucro de animes no exterior representou cerca de metade da receita global da indústria em 2017. No entanto, os orçamentos e os salários inaceitáveis ​​permanecem.

Quando empresas ocidentais como a Netflix entram no mercado, elas conseguem pagar preços baratos e bem estabelecidos. Estações de TV, empresas de mercadorias e serviços de streaming estrangeiros saem com os lucros, deixando não apenas os animadores individuais em dificuldade financeira, mas estúdios inteiros lutando por orçamentos apertados.

A solução não é tão simples como dizer que os animadores devem exigem salários mais altos. Um relatório do Teikoku Databank de 2016 revelou que a receita caiu 40% em 10 anos para os 230 principais estúdios de animação japonesa. A fim de alcançar um maior desenvolvimento da indústria de animação, há uma necessidade urgente de melhorar a base econômica dos animadores e reformar radicalmente a estrutura de lucro de toda a indústria, afirmou o relatório.

Como fundador de um pequeno estúdio, D’art Shtajio, Thurlow explicou que impor salários mais altos sem uma mudança maior na estrutura do setor faria com que ele e a maioria dos outros estúdios fossem à falência devido a restrições orçamentárias. A indústria se consolidaria com “Animes Grandes”, um mundo em que alguns mega estúdios produzem hits ao estilo de Hollywood, com marketing de massa e conteúdo genérico sob medida para o menor denominador comum.

Com os animadores de nível iniciante sendo empurrados para fora do mercado, o espírito criativo e apaixonado do anime vai apodrecendo. Afinal de contas, não há razão para se tornar um animador a não ser porque você ama isso.

“É uma paixão”, disse Zakoani.

Porque não há retornos trabalhando. É só porque eu realmente gosto de fazer isso. Eu sinto que preciso fazer isso. Porque quando você vê o seu programa sendo transmitido e sabe que trabalhou nisso, é o maior sentimento de todos os tempos.

Thurlow largou tudo para ir ao Japão para desenhar os animes que ele amava. A experiência foi muito diferente de sua vida como animador nos EUA, onde trabalhou em animações que não tinham a mesma complexidade em arte, história e temas: Dora, a Aventureira e Beavis e Butt-Head, se ele tivesse sorte. E disse:

Os artistas estão se arrebentando por seus sonhos.

Nishii falou no Twitter com uma recomendação firme:

[Não importa o quanto você goste de anime, não é recomendável vir para o Japão e ter anime como trabalho. Porque a indústria de animação japonesa é geralmente sobrecarregada (mal paga)]

Adachi concordou.

Honestamente, eu não recomendaria isso… é uma estrutura piramidal, onde muitos na parte inferior trabalham para apoiar alguns no topo. Eu não vejo um futuro brilhante.

O debate sobre a economia da indústria continua, muitas vezes no Twitter.

Uma solução parcial poderia ser estúdios internacionais contrariar a norma cultural estabelecida e fornecer aos estúdios de anime os mesmos orçamentos que os estúdios ocidentais. Outro modelo poderia permitir que os animadores retivessem os direitos sobre seus desenhos e ganhassem royalties.

Uma organização, o projeto New Anime Making System, arrecada dinheiro para fornecer uma rede de segurança e reduzir o desgaste para animadores em ascensão. O projeto forneceu acomodações acessíveis para os animadores que dirigiram partes de Naruto, Attack on Titan e outros animes top de linha.

Jun Sugawara, o fundador, disse que ele começou o projeto como um designer gráfico que queria apoiar outros artistas. É preciso ser genial para criar belas animações desenhadas à mão, e as habilidades dos animadores não são valorizadas, disse ele. A organização está se expandindo com o “Anime Grand Prix“, um concurso de filmes curtos de anime e videoclipes com financiamento coletivo encomendados com um salário mínimo.

Os animadores estão carregando um fardo quase intolerável em prol da animação de televisão, lindamente desenhada à mão. E sofrem por causa de panquecas fofas, exuberantes paisagens do pôr-do-sol e aventuras através do tempo, espaço, gênero e cultura. Por tudo que você assiste e ama, os animadores pagam o preço.

Ainda assim, eles continuam desenhando.

Um storyboard do filme Attack on Titan, do diretor Shinji Higuchi, é retratado no Toho Studios em 11 de julho de 2014, em Tóquio. Yuriko Nakao | Getty Images

C.K. passou alguns anos na Inglaterra devido ao trabalho de seu pai. Sem falar em inglês, ele passava os dias desenhando mangá, folheando as páginas de seu caderno entre o indicador e o polegar, observando os desenhos ganharem vida.

Eu nunca poderia esquecer esse sentimento. Quando você anima um personagem parado em uma página, você pode vê-los se mover, rir, chorar, ficar com raiva… esse é o charme da animação. Quando vejo meu trabalho feito à mão compartilhado e visto não apenas em meu país, mas em todo o mundo, sinto a felicidade.


Texto traduzido e adaptado da Vox.

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