E ela tem razão.

O texto a seguir é a reprodução de uma entrevista concedida pela pesquisadora e professora Moya Bailey para a página Bitch Media. Desta forma, mantivemos a pessoalidade e expressões utilizadas no texto original, a fim de alcançar a maior fidelidade possível.

Hoje a palavra “misogynoir” (traduzida no Brasil como misoginia preta) – utilizada para descrever a intersecção específica entre o racismo e o machismo enfrentados por mulheres negras diariamente – é utilizada de forma coloquial em todos os meios acadêmicos, culturais e de comunicação casual. Mas quando Moya Bailey, pesquisadora e professora assistente da Northeastern University cunhou o termo pela primeira vez em sua dissertação publicada em 2008, e posteriormente utilizou o termo escrevendo para o blog Crunk Feminist Collective, em meados de 2010, ela não poderia ter previsto a popularidade que o termo viria a alcançar.

Em seu novo livro, Misogynoir Transformed: Black Women’s Digital Resistance (Misogynoir Transformada: A Resistência Digital da Mulher Negra, em tradução direta), Bailey analisa a fundo as histórias e manifestações contemporâneas da misoginia racista contra mulheres negras nos meios modernos de mídia, de séries online no YouTube e arquivos do Tumblr até os filmes de Hollywood. Através de uma combinação de minuciosa pesquisa e crítica cultural cheia de nuances, Bailey analisa as várias formas pelas quais a mídia manteve, criticou e transformou o fenômeno do mysogynoir. A autora concedeu entrevista ao portal Bitch Media falando sobre seu novo livro, mulheres na mídia e sobre se é possível ou não tornar o debate sobre o misogynoir em algo significativo.

Esta entrevista pode ser conferida abaixo:

A primeira vez que você utilizou a palavra “misogynoir” foi em sua dissertação. Como você se sentiu ao perceber que o termo viralizou? Como ter uma palavra para descrever a interseção entre racismo e misoginia mudou o seu estudo e as conversas sobre racismo e machismo?

Quando eu escrevi “misogynoir” na minha dissertação, parecia algo necessário para tentar descrever representações negativas direcionadas unicamente a mulheres negras. Eu não estava pensando sobre isso além da dissertação, per se. Eu apenas a usei casualmente no blog Crunk Feminist Collective quando eu era membro daquele coletivo, e outros membros do coletivo realmente pegaram isso e seguiram daí. Quando o termo viralizou, eu fiquei muito surpresa. Foi essa sensação estranha de sentimentos mistos de empolgação que as pessoas acharam a palavra útil, e também de tristeza extrema que a palavra tenha de ser usada tão frequentemente. Como aluna de graduação, eu realmente tinha a impressão de que o estudo real acontece quando você é um professor. Eu me senti tão empoderada de algumas maneiras ao descobrir que o estudo, em termos de criação de coisas úteis para as pessoas, nem sempre vem da academia ou da torre de marfim. Eu espero que isso forneça às pessoas a sensação de que elas podem criar os termos e linguagem que elas precisam, também.

 Cada capítulo do livro aborda uma forma diferente de mídia social, como o Twitter, Youtube e Tumblr. Por que você decidiu examinar o misogynoir através desses meios?

Eu fui uma adepta precoce de várias plataformas; eu estava no Twitter quando muito poucas pessoas estavam por lá. E por ser um grupo tão pequeno, ele permitia que muitas mulheres negras do Twitter, que eram usuárias regulares, pudessem se conectar umas com as outras. Eu era uma amiga antiga e seguidora no Twitter de Janet Mock, então eu vi o #GirlsLikeUs se desenvolver e acontecer em tempo real. Sendo também uma pessoa negra e queer em Atlanta, eu conheci algumas das pessoas que estavam nas séries do YouTube que eu analisei para o livro. Tudo isso criou uma oportunidade para que eu mergulhasse de uma forma que eu poderia me sentir menos confortável de fazer, caso estivesse trabalhando com comunidades em que tinha menos acesso ou conexão.

No texto, você fala sobre o uso das redes sociais por mulheres negras como uma forma de redução de danos. Você sente que plataformas como o Twitter ainda funcionam como redução de danos da mesma forma que faziam quando você entrou nas redes, anos atrás?

Absolutamente não. É incrível para mim como as coisas mudaram em um espaço relativamente curto de tempo. Não existe o senso de comunidade no Twitter, ou na maioria das redes sociais e espaços na internet como havia antes. Socialmente, nós estamos nos movendo em um ritmo cada vez mais acelerado, e não parece haver mais o tipo de reflexão que existia alguns anos atrás. As redes sociais ainda podem funcionar como redução de danos para mulheres negras hoje, mas não da forma como costumava ser, e tampouco tão consistentemente. Eu acho que existe algo realmente maravilhoso em poder se conectar com pessoas que você não poderia por outros meios, que possuem valores similares aos seus. Essa é uma das coisas que eu amava sobre o Tumblr: Era um site em que você poderia ter muita afinidade com alguém sobre séries diferentes, e sobre todas as coisas que pudesse imaginar. Sempre havia espaço para encontrar alguém que gostava de algo que você também gostava.

No capítulo sobre o Tumblr, você escreveu que as pessoas usando aquela plataforma “eram capazes de ter uma conversa que criava redes necessárias para abordar essa misoginia racista anti-negros, tanto on quanto off-line”. Por que você acha que isso acontecia especificamente no Tumblr?

Em diversas plataformas de redes sociais, tudo é tão selecionado que as pessoas não têm a experiência de lidar com conflitos e crescer ao superá-los. Uma vez que o Tumblr era um site um pouco mais antigo, esse não era tanto o seu caso. Uma das narrativas no texto é uma conversa com Danielle Cole, que era dona de um Tumblr intitulado “Lutando para ser ouvida”. Uma das coisas que elu falava era sobre ser acusade de aproveitar o seu privilégio de pele clara, e que ter essa conversa pela primeira vez no Tumblr foi o que ajudou a realmente aprender sobre o tema e entendê-lo. Naquela época, existia essa ideia de que as pessoas poderiam entrar em conflito, e que as coisas poderiam até começar a escalar, mas que as pessoas poderiam voltar atrás e aprender com isso. As pessoas podiam se desculpar. Havia mais espaço para formas diferentes de interagir com os outros que vinham de um senso de comunidade pequena na internet onde todos nos sentíamos conectados. Infelizmente esse tipo de conversa não acontece mais tão frequentemente nas plataformas de redes sociais do momento. Parece que as pessoas são muito mais menosprezadas do que antes, e que a ideia de quem é incluído em nossa comunidade é muito mais dura.

Você faz uma distinção muito mais dura entre mulheres negras e feministas negras em seu livro, e usa Lena Waithe como um exemplo de mulher negra que frequentemente aceita papéis ou cria filmes que perpetuam o misogynoir. Você acha que introduzir mais feministas negras em Hollywood poderia ajudar a combater o misogynoir?

Nós precisamos de mais mulheres negras e feministas em todo lugar. Hollywood e outras indústrias possuem problemas muito enraizados, e feministas negras não vão ser capazes de derrubar completamente o sistema de Hollywood até que tenhamos uma conversa sobre derrubar completamente o capitalismo e meios de produção. Mas um aumento nas feministas negras em Hollywood poderia definitivamente mudar o que vemos nas telonas. Com uma política feminista negra, temos várias coisas específicas que se tornam importantes para o trabalho, e outras coisas que não seriam toleradas em uma narrativa. Por exemplo, existe essa antiga ideia de um teste de Bechdel que é usado para decidir se existe alguma qualidade redentora em um filme: Duas mulheres falam entre si sobre algo que não é um homem? Esse é um padrão muito baixo, e feministas negras poderiam elevar esse padrão. Uma feminista negra poderia perguntar: Existem personagens feministas com relacionamentos que não envolvem homens? Que estão interessadas em questões que vão além de amor romântico? Que vivem fora de um modelo heteronormativo, ou mesmo homonormativo de sucesso e ainda assim são sucedidas? Feministas negras em Hollywood criariam a oportunidade para possíveis modelos que iriam muito além do que é hoje aceito como status quo.

Moya Bailey. Foto: Matthew Modoono/Northeastern University

Você escreveu um capítulo particularmente interessante sobre construção de mundo em séries online queer para o Youtube. Por que você acha que uma construção de mundo tão efetiva está sendo feita no Youtube?

Isso tem tudo a ver com os baixos padrões para participar. No Youtube, não custa nada para publicar a sua web-série na plataforma, e você pode fazer a produção e edição por conta própria. Essas séries realmente acumulam um público significativo porque as pessoas desejam tanto ver a si próprias nas telinhas. Nós temos que tomar cuidado para não romantizar as coisas que fazemos por conta própria. Só porque experimentamos misogynoir não quer dizer que somos imunes a reproduzir esses padrões. Nessas séries para o Youtube, eu vejo diversas maneiras lindas de confrontar o misogynoir em termos dos tipos corporais apresentados como belos, enfrentamentos indiretos ao colorismo, e discussões sobre tópicos como violência doméstica. Ao mesmo tempo, podemos ver tropos problemáticos de masculinidade tóxica que ainda aparecem, e o misogynoir pode ser reencenado na forma como as personagens femininas são tratadas nessas séries. No Youtube, o misogynoir é tanto enfrentado quanto mantido.

Temos um potencial enorme para o que acontece online. Eu vou falar algo que talvez seja controverso: Misadventures of Awkward Black Girl é melhor do que Insecur”. Existe algo que se tornou possível com o Youtube como caminho que não é a mesma coisa que Hollywood, aina que eles tenham um orçamento e plataforma maiores. Coisas se perdem na tradução. E mesmo que Hollywood dê aos criadores negros mais acesso, sempre existem restrições que são impostas criativamente.

Seu livro é intitulado Misogynoir Transformado. Por que você decidiu escrever sobre transformar o misogynoir e não sobre destruí-lo? O que seria transformar o misogynoir?

Eu estava pensando muito sobre energia. Existe tanta energia no ódio contra mulheres negras; é algo ativo e muito poderoso. Eu tenho um histórico com a ciência, e eu realmente aprecio a ideia de que energia não é criada ou destruída. Não é como se o misogynoir fosse embora, porque eu não acho que é possível destruir essa energia. Mas eu estou pensando sobre como você pode transformá-la, para que se torne algo realmente útil. Como você transforma todo esse ódio em alguma coisa diferente? Eu diria que o subvertendo, sublimando, e fazendo todas essas coisas diferentes. O misogynoir é transformado porque a atenção das pessoas está as levando a criar coisas significativas para elas.


Fonte: Bitch Media

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