O autor pisou feio na bola, e muitos fãs protestaram.

Boku no Hero Academia (traduzido em inglês para My Hero Academia) é uma das franquias de anime e mangá mais populares da atualidade. Sua trama se passa em um universo alternativo em que a maior parte dos humanos manifesta algum tipo de superpoder chamado de “individualidade”, e o protagonista, Izuku “Deku” Midoriya, é um fofinho jovem em sua jornada para se tornar um herói e o maior símbolo da paz. O autor da obra, Kohei Horikoshi, gosta de utilizar trocadilhos e referências em boa parte dos nomes dos personagens. Só que, desta vez, o nome dado a um dos mais recentes vilões da história causou uma polêmica recheada de implicações histórias profundamente problemáticas.

O texto a seguir contém spoilers sobre o mangá de Boku no Hero Academia!!!

Em um dos últimos capítulos publicados do mangá, foi revelado o nome real do personagem “Ujiko”: Maruta Shiga, um cientista da Liga dos Vilões, responsável pela criação dos golens chamados “Nomus”.

Imagem: Shonen Jump/Twitter

Essa revelação causou enorme constrangimento e uma pesada reação do público chinês e coreano,  principalmente, que passou a exigir a mudança do nome do personagem e, claro, um pedido de desculpas. O motivo? A palavra “maruta” (que pode ser traduzida como “registro”). Maruta foi um termo utilizado para se referir a vítimas asiáticas (entre eles chineses, coreanos, mongóis e russos) de experimentos realizados secretamente pelo governo japonês com armas biológicas durante a Segunda Guerra Mundial, por meio de um grupo de pesquisa conhecido por “Unidade 731”.

Mas vamos explicar com calma: nas décadas de 1930 a 1940, o Império Japonês cometeu atrocidades por toda a Ásia, como o Massacre de Nanquim.

Crimes alemães, como testes médicos humanos cometidos em campos de concentração, tendem a receber mais atenção do que os crimes japoneses contra a humanidade, à medida que mais pesquisas foram feitas e mais historiadores passaram tempo olhando para trás e estudando esses atos horríveis. No entanto, japoneses também realizaram testes médicos em humanos – especialmente durante a operação secreta “Unidade 731”.

A Unidade 731 realizou experimentos em humanos (aproximadamente 4 mil pessoas) que incluíram “pesquisa química, vivissecção e testes utilizando armas tradicionais e biológicas”, muitos deles muito próximos e algumas vezes piores do que os experimentos realizados no Holocausto judeu.

E o problema é que as “cobaias” dessa unidade eram intituladas de Maruta (Registro), de forma a tentar esconder as informações sobre os experimentos.

O jornalista Nicholas D. Kristoff escreveu um artigo para o The New York Times em 1995, apresentando algumas das primeiras informações descobertas, e o mínimo que podemos falar é que os experimentos eram simplesmente aterrorizantes.

Imagem: Xinhua | Getty Images

Colocando em foco que o personagem do mangá é um geneticista sem conduta moral, não levou muito tempo para que as pessoas percebessem as conotações desse nome e personagem. E, logicamente, não pegou nada bem que um vilão fosse nomeado como eram nomeadas as vítimas dessa tragédia.

Ainda hoje, em terras ocidentais, boa parte do terror causado pelos soldados japoneses em diversas ocupações orientais ainda é desconhecido. Apesar de a obra de Iris Chang, “O Estupro de Nanquim”, ter ajudado a mudar um pouco esse cenário, pouco se ouve falar sobre a Unidade 731 por aqui. É algo arrepiante.

Após a imensa repercussão, a Weekly Shonen Jump e o criador do mangá publicaram pedidos de desculpas acerca da “escolha” do nome, respectivamente publicados abaixo:

Tradução: “Com relação ao personagem Shiga Maruta, que teve seu nome revelado na décima edição da Shonen Jump (publicada em 03/02), chegou a nossa atenção que pessoas acreditam fazer referência a ‘eventos históricos passados’. Ao nomear o personagem, o autor e o departamento editorial não tinham essa intenção. Porém, a fim de que não sejam associados o trabalho com uma história sem qualquer conexão, após consulta ao autor, ficou decidido que o nome será alterado em publicação futura”.

Tradução: “Com relação a revelação do personagem Shiga Maruta na última Jump, aparentemente muitos tiveram a impressão de que ele está relacionado a eventos históricos. Essa não era a minha intenção quando nomeei o personagem. Levamos seus comentários em consideração e alteraremos o nome do personagem no futuro”.

Muitos fãs não ficaram satisfeitos com os pedidos de desculpas, alegando que foram palavras vagas e sem consciência da gravidade da situação. No Twitter, grande parte de quem discute o assunto não acredita que a ignorância nessa situação seja possível (até porque o mangá passa da mão do autor para várias outras na editora e por vários funcionários antes do processo final de publicação) e que a maneira como o nome do personagem foi escrito (丸太) é uma referência muito específica às experiências da guerra.

Tradução: “GanTa pode ser usado como um nome comum mas MaRuTa é uma designação especial somente aplicável às vítimas dos experimentos da unidade 731”.

Tradução: “Ok, para as  pessoas que não falam japonês dizendo que ‘é só um nome’, NÃO, NÃO É. Aquela forma de escrever Maruta tem TODO um histórico negativo por trás. Coreanos e chineses têm o direito de estarem bravos com isso”.

É uma resposta totalmente compreensível e bem argumentada, principalmente quando se leva em consideração que o autor tem de fato um hábito recorrente de usar “metáforas” reais nos nomes e datas de nascimento dos personagens do mangá.

Afinal de contas, utilizar em um vilão tão baixo o nome de vítimas tão sofridas de guerra pode ser visto como uma maneira de desumanizar os afetados e banalizar o assunto.

Como consequência, a China moveu ações de banimento de BNHA, alegando a problemática de se utilizar o nome de um crime de guerra. Diversos aplicativos e sites da China (por exemplo, sites de grandes conglomerados multinacionais como a Tencent e a Bilibili) decidiram remover temporariamente o mangá de suas plataformas – o que significará um prejuízo enorme para a Jump, já que a China tem uma influência inquestionável nos lucros de reprodução de obra. O anime, ainda disponível em algumas plataformas de streaming chinesas, recebeu bombardeios de avaliação negativa. Além disso, o novo jogo mobile do mangá, que inclusive estava sendo desenvolvido por chineses, foi excluído das lojas de aplicativos.

Para fãs não-asiáticos de anime, que talvez não estejam tão conscientes das implicações culturais de certos momentos históricos do oriente, é sempre importante lembrar que esse tipo de discussão é extremamente necessária.

No Brasil, muitos dos fãs pareceram compreender e muitos outros um bando de otacu fedido se comportaram de maneira racista em resposta, pra surpresa de absolutamente ninguém. Mas o assunto tem de ser tratado e visto de maneira séria.

Se trata de um atrito histórico real e extremamente prejudicial, ainda mais quando se analisa quanto revisionismo histórico ainda ocorre no Japão – a começar pelo fato de que nunca houve um pedido de desculpas oficial do país a nenhum dos países afetados pelas operações da Unidade 731 e nem mesmo pelos efeitos da guerra em geral nas regiões asiáticas, onde a colonização japonesa também foi responsável por imensos massacres.

E o importante aqui é ter em mente que mangakás não são entidades divinas intangíveis. São pessoas comuns, criaturas humanas, e como tais, são passíveis de erros humanos. O autor de BNHA precisa se educar – e nós, como ocidentais, também. Não dá pra culpar quem se sentiu incomodado, até porque não dá pra saber quantos desses fãs tiveram suas famílias ou amigos e conhecidos prejudicados pessoalmente por esse problema, ainda mais quando se lembra que a Segunda Guerra Mundial terminou não faz nem 80 anos. Os sentimentos dessas pessoas não devem ser descartados!

Não acho necessariamente que remover a série do mercado chinês seja a solução ou a forma mais pedagógica do autor compreender o problema, mas definitivamente não posso culpar os fãs que decidirem se afastar da série. Não podemos aceitar erros que ofendam ou desumanizem outras pessoas – e devemos aprender a aceitar que nem todo mundo é obrigado a gostar das mesmas coisas que nós gostamos, pois elas têm seus motivos e muitas vezes eles são motivos mais que válidos.

LEIAM MANGÁ DE FORMA CRÍTICA. Aprendam a criticar, pois só assim as coisas podem mudar, e muitas vezes mudar para melhor.


Fontes: TheMarySue | Atomic Heritage Foundation

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