TIA LYDIA X COMANDANTE LAWRENCE

Tia Lydia, assim como todas as Tias, são as únicas mulheres de Gilead que podem escrever e ler algumas coisas, especialmente para manter registros. Até onde a série mostrou, os tipos de leituras permitidas para Tias são apenas aquelas que dão conhecimentos para o treinamento das Aias. Por essa e por outras “liberdades”, muitas vezes as Tias parecem ter mais poder até mesmo que Esposas – até porque elas não respondem ordens diretas de Esposas, inclusive monitoram o tratamento que elas dão às Aias. Afinal, ninguém quer que a fonte reprodutiva de Gilead seque.

Tia Lydia é uma instrutora e tutora brutal e o maior exemplo de crente que segue incondicionalmente as ordens que recebe. Ela é totalmente dedicada à missão de Gilead e vê isso como o caminho certo para ela e o resto do país. A série não nos deu qualquer introspectiva do passado da personagem ou de qualquer outra Tia, então é difícil explicar a forma como elas agem ou suas reais motivações, mas é difícil acreditar que foram forçadas ao trabalho que exercem pela intensidade da dedicação que demonstram.

Sempre tive muita dúvida das reais intenções da personagem ou do que raios se passava dentro de sua cabeça. A princípio, Tia Lydia parecia uma mulher impiedosa e perversa com lapsos de simpatia, mas não dava pra ter certeza se ela era só uma louca com boas intenções ou se ela era uma louca ultra religiosa sem nenhuma noção de humanidade. Ela pune com castigos físicos apavorantes (como choques, olhos e membros arrancados ou mutilados e múltiplas torturas que duravam horas) ou castigos emocionais apavorantes (como um quase enforcamento para “ensinar uma lição”, como obrigar as Aias a matarem outras pessoas ou como criar uma cultura de culpabilização e depreciação nas Aias e seus subconscientes). O que mais confundia na personagem era que ela, de certa forma, tratava aquelas pecadoras a quem ela chamava de “abominação” e toda sorte de xingamentos como suas protegidas: ninguém além dela poderia ferir ou causar qualquer dano às Aias, e ela era feroz nesse assunto. E isso confundia até mesmo algumas Aias, que a consideravam como uma espécie de guardiã e se apegavam a ela emocionalmente.

As temporadas foram passando e meu entendimento sobre a Tia Lydia foi se alterando aos poucos. A segunda temporada continuou mostrando apenas esse lado monstruoso da personagem – até que ela fosse esfaqueada por Emily. Na terceira temporada, finalmente demonstram o baque que a facada gerou em sua compostura aparentemente inabalável. Ela se altera, deixa o emocional vir à tona, chora pelos seus próprios erros. No episódio mais recente, “Household“, vemos um lado da Tia Lydia que certamente não esperávamos. Ela demonstra espanto e até mesmo um pouco de pavor do que é feito às Aias na capital de Gilead. Isso porque ela acredita em seu trabalho coercitivo e punitivo como uma forma de salvação para as almas perdidas das mulheres que ela instrui, e acredita piamente que as Aias de alguma forma se redimem ou pagam por seus “pecados” de suas vidas passadas sendo reprodutoras; no sentido bíblico, sendo Bilas de suas Raquéis. Ela já fez muita coisa terrível, no entanto ver Aias com anéis metálicos “costurando” suas bocas parece atingir seu limite ético. Seu comportamento já estava abalado pela traição de Emily, e agora parece que sua fé no sistema segue o mesmo caminho.

Em “Household“, numa cena rara da série, June e Lydia compartilham um momento de verdadeira comoção. June questiona se ela queria que as Aias que treinava fossem silenciadas daquela forma, o que Tia Lydia nega, com visível demonstração de cansaço e estarrecimento. Diz que mal pode esperar até voltar para casa. As duas se sentam juntas na cama e se apoiam com a cabeça. A cena faz questionar ali se existe a possibilidade da Tia Lydia começar a mudar, mas suas frases seguintes reforçam o que já sabemos da personagem: ela continua repetindo sua crença, como se aquilo fosse a única coisa que amparasse sua sanidade.

Aqui entramos num ponto crucial, talvez não sobre todas as Tias, mas sobre a maior representante delas na série: o carrasco pode ser o único culpado pela pessoa que pune? Sua mão é um instrumento. Seus atos são de fato abomináveis mas, o carrasco, além de ser quem executa a pena, é quem segue ordens. Assim são as Tias, por mais que sejam iludidas a pensar que fazem um trabalho divino. Elas são o instrumento do trabalho sujo dos homens.

Sobre isso, como já foi bem descrito e explicado no Farofa Geek, deixo citado abaixo:

Pode ser que Tia Lydia não acredita tão fielmente assim nas bases ideológicas deste novo governo teocrático, mas tenha sido levada a cometer atrocidades pois este comportamento seria um Mal naturalizado e institucionalizado neste novo contexto político. A filósofa e escritora alemã Hannah Arendt abordou esta questão por meio do conceito de “banalidade do mal”, mostrando através da análise do julgamento de Adolf Eichmann, tenente-coronel da SS na Alemanha Nazista, como o ser humano é capaz de executar crimes terríveis apenas por estar cumprindo ordens para crescer em sua carreira profissional, assim como qualquer indivíduo em uma lógica empresarial burocrática.

Por se tratar de um governo fascista, são inúmeros os paralelos entre a sociedade de The Handmaid’s Tale e o governo nazista, e neste ponto específico entre as Tias e a Schutzstaffel, a temida SS: organização paramilitar instituída pelo governo de Adolf Hitler, cuja lema era “meine ehre heißt treue”, ou “minha honra chama-se lealdade”.

Tia Lydia tem um ódio internalizado por mulheres “pecadoras” e acredita que o que faz está salvando suas almas. Ela é cruel, mas não é totalmente insensível ao sofrimento das Aias.  Até ela tem limites.

Por outro lado e por fim, temos o Comandante Lawrence. Ele introduz sua presença na série como personagem enigmático, mas demonstrou bem rápido que suas intenções nunca foram muito humanas. Se alguns Comandantes já demonstraram qualquer senso crítico ou remorso em relação à maldade praticada em Gilead, nesta lista com quase toda certeza não se inclui o Comandante Lawrence. Suas primeiras aparições foram ajudando Aias a escapar de Gilead. No entanto, com um pouco mais de história, muitas dúvidas sobre a bondade do personagem são destruídas. Joseph Lawrence foi o “visionário” de toda a estrutura de Gilead. Ele é descrito como o cabeça por trás da parte financeira, urbana e administrativa de Gilead – todos os problemas socioculturais, ambientais e governamentais vieram de sua mente. Seus livros fundamentaram as engrenagens que movimentam boa parte de Gilead. O diretor já o comparou com o “Oppenheimer”, conhecido por ser o pai da bomba atômica. Então muitos de nós assumimos que Lawrence poderia ser um indivíduo que cometeu erros mas percebeu seus crimes e então passou a tentar corrigi-los… E nada parece estar mais longe da realidade. Pelo menos até aqui.

Lawrence projetou as colônias. E embora ele zombe de alguns dos costumes religiosos de Gilead, ele ainda é extremamente poderoso. Ele ajudou Emily a escapar do país – não porque ele se sentisse mal por ela, mas porque ele valorizava sua inteligência. Ele gosta de músicas dos anos 1960. Ele é super protetor de sua esposa. Ele ama um jogo mental. Ele pode falar sarcasticamente sobre este novo mundo que projetou, ironizando que não pode “aumentar salários” para motivar seus funcionários, mas ele ainda está morando lá, aparentemente desfrutando de seu privilégio na forma de obras de arte de valor inestimável (como aquele Basquiat na escada) e cerveja artesanal.

No episódio três da terceira temporada, nomeado “Useful”, as garras do personagem são mostradas com uma assustadora clareza, numa velocidade de desenvolvimento de personalidade também assustadora.

Primeiro com os constantes “testes” aos quais June foi submetida. Em especial a cena com os Comandantes, quando June é levada a crer que seu entendimento sobre equidade feminina seria, de alguma forma, levado em consideração, quando na verdade era só uma sessão de humilhação e misoginia. June pega o livro de Darwin na estante e caminha para fora da sala respirando puro ódio enquanto ouve que “mulheres servem pra alguma coisa, afinal”. Essa cena foi um golpe em especial tanto em June quanto em qualquer mulher com pensamento progressista (se você não vive e defende uma teocracia, pode se considerar uma), porque foi uma demonstração absurdamente clara do machismo de Gilead e o desprezo pelas mulheres como June: escritoras, pensadoras, críticas. Mesmo ela, que tinha uma vida um tanto quanto convencional antes de Gilead – à contragosto da mãe, feminista convicta, que tinha pensamentos bem claros sobre o quanto o papel de mãe e esposa reduziam a participação social da mulher.

Quando Fred diz para June que Lawrence “não gosta de ficar entediado”, nos faz imaginar que talvez seja por isso que Lawrence é tão mal-humorado. Talvez ele esteja realmente entediado. Porque, como mostra sua estante, Lawrence costumava ser um escritor prolífico. Nós temos um breve vislumbre dos livros que ele escreveu depois que Lawrence instrui June a pegar “A Descendência do Homem” na prateleira.

Vamos examinar os títulos de seus livros: Capital no século XXI”. À Beira da Extinção”. A Genealogia Religiosa da Economia Ocidental”. O Caso para o Relançamento da Economia Mercantil em Nações em Desenvolvimento”. Populismo Problemático: Transtorno Durante a Crise da Fertilidade e os Efeitos a Longo Prazo na Prosperidade Americana” (note que este livro é muito longo!). Efeitos Econômicos do Renascimento Religioso Durante a Crise de Fertilidade”. Trabalho Feminino e Café”. O que podemos entender da obra de Lawrence? Claramente, muito antes de Gilead ser formada, Lawrence estava tentando resolver uma América do Norte em turbulência do ponto de vista econômico. E, claramente, a solução a que ele chegou foi estabelecer Gilead. Ao contrário do comandante Waterford, que tinha motivação religiosa, Lawrence é mais analítico (mas não menos frio). Os EUA estavam no meio de uma crise de fertilidade. O país estava à beira da “extinção”. A resposta de Lawrence para esses problemas? Reverter radicalmente o curso da sociedade. Primeiro tire o poder das pessoas – veja a palavra “problemática” no livro Populismo Problemático”. Então olhe para o passado – A Genealogia Religiosa da Economia” – para se inspirar no planejamento desse novo futuro. O que resulta é uma teocracia religiosa arregimentada que remove as liberdades individuais. Como o cara é um vilão, seu plano também inclui um novo tipo de colonialismo. O livro “O Caso para o Relançamento da Economia Mercantil nas Nações em Desenvolvimento” oferece uma pista de como a Gilead se tornaria uma potência mundial através do comércio. Como indicado na visita da delegação mexicana na primeira temporada, Gilead tem o que outros países preferem não fazer. Enquanto outros países estão lutando na era do colapso ambiental, as lojas da Gilead estão cheias e sua população estável. Mesmo que outros países desaprovem os métodos da Gilead, eles podem eventualmente precisar das exportações da Gilead (mulheres férteis e outros produtos).

Se Lawrence tem alguma opinião, então Gilead pode se tornar ainda mais poderosa do que os norte-americanos jamais foram. Para Lawrence, a religião é um meio para um fim, e os fins estão prosperando através do colapso ambiental. O ponto das Colônias é duplo: limpar o lixo radioativo e eliminar as mulheres que não são mais consideradas “úteis”, já que não podem se adaptar a um papel. As Colônias reforçam a estrutura de Gilead através do medo e também permitem que Gilead prospere.

A segunda cena em destaque, claro, é quando Lawrence obriga June a selecionar cinco mulheres de Chicago para servirem como “Marthas” – e todas as demais (e eram MUITAS as restantes) seriam sentenciadas a morrer nas Colônias. Apesar de não querer ser cúmplice dos crimes de Lawrence, June eventualmente escolhe cinco Marthas que seriam boas recrutas para seu futuro movimento de resistência: uma engenheira, uma técnica de informática, uma jornalista, uma advogada e uma ladra.

Vamos entrar em detalhes nessas duas cenas para explicar a infâmia do personagem. A começar que a série implica que ele é, de certa forma, imune às leis de Gilead. Sua casa é a única com pinturas pagãs na parede e livros de toda sorte nas estantes. Comandantes têm livros, mas não imagino que entre eles existam exemplares como “O Capital”, de Marx. Lawrence tem uma liberdade e, acima de tudo, uma aparente sensação de liberdade muito maior, já que ele próprio se envolve nos esquemas que um dia na série foram entendidos como o movimento do MayDay, organizado principalmente por Marthas. Para um Comandante comum, isso significaria um crime inescusável e traria hesitação, temor. Para ele, parece pouco mais que uma pequena aventura. Ele diz que está “se envolvendo em uma merda profunda” no primeiro episódio da terceira temporada, mas não recusa levar June até a casa dos Mackenzie. Ele deixa Marthas se organizarem escondidas em sua casa, mas fica super irritado por deixarem uma mulher estranha entrar em sua casa.

Lawrence é um personagem extremamente duvidoso. Muitas vezes suas falas geram a ambiguidade sobre seu pensamento ser só curioso ou puramente maldoso e masoquista. Ele age como se estivesse, nas palavras do diretor da série, numa fábrica de brinquedos desajustados. E ele brinca, usa e descarta esses brinquedos da forma como bem entende. Ele é um daqueles caras cujo cérebro genial destruiu suas noções de humanidade. Bradley Whitford deu uma entrevista à Vanity Fair afirmando que seu personagem é frustrante porque ele centra uma fantasia que as pessoas geralmente esperam de personagens como o dele, de que em algum momento ele vai sofrer uma epifania e se tornar um aliado, um herói. E não é o caso.

Ele parece ser alguém que está “ajudando” June a se tornar mais forte enquanto a frustra e desafia – da mesma forma que fez com Emily na temporada passada –  mas daí as garras aparecem e novamente nos faz questionar se por acaso ele está se divertindo com tudo isso. Ele ajuda as mulheres oprimidas pelo sistema a escaparem dele, mas ao mesmo tempo está ajudando o sistema. Explico.

O raciocínio do personagem é puramente utilitarista e sádico: para ele, como já afirmado anteriormente, os fins justificam os meios. A princípio parece uma lógica justa, mas é só colocá-la um pouco mais à luz da ética que percebemos a controvérsia. Quando June questiona os motivos de Lawrence para ajudar Marthas a se organizarem e Aias a escaparem de Gilead, a resposta dele é um soco no estômago: se as engenharias do sistema não tiverem focos de alívio da pressão, toda a máquina explode.  Deixar que mulheres escapem de Gilead é uma mera estratégia pra que elas não se revoltem. Todas as suas ações são assim, todas se revolvem a fazer com que ele mantenha o controle, o status quo, o poder.

Ele aparenta ser um completo sociopata.

Até o momento, Lawrence parece ser o maior vilão da série. E o homem com a mais abominável mentalidade de todos os personagens apresentados na trama. 

Pode ser que a série mostre mais de sua personalidade ou desenvolva o enredo para que ele tenha uma função que se destoe do seu comportamento até aqui. Mas pelo apresentado, Lawrence até agora não tem muito de Oppenheimer.

Se June tivesse a chance de ler seus livros, teria ainda mais medo de Lawrence. Suas idéias são os blocos da construção de Gilead. Eles mantêm o funcionamento de Gilead. Os outros Comandantes acreditam em Deus, Lawrence acredita em Gilead.

 

***

Em suma, mesmo mulheres poderosas como Lydia e Serena são, no final, apenas ferramentas. Nós, como fãs da série, temos que ficar atentos para não cair em machismos quando evitamos criticar ou compreender as atitudes e motivações das personagens. Casos como o da personagem Éden deixaram ainda mais claro que a tendência das pessoas em geral é culpar uma mulher, seja ela uma criança perdida ou uma adulta iludida.

Em Gilead, nem todas as mulheres são boas, mas todas são oprimidas. Homens, por sua vez, são quem controlam o sistema – não com propósitos compreensíveis, mas por motivos torpes e por ganância pelo poder.

No final das contas, as únicas pessoas em quem June pode realmente confiar são as mulheres.


Créditos de imagem da capa: Cristian Fowlie

REFERÊNCIAS:

LANIER, Liz. What Can We Learn About Feminism From Hulu’s The Handmaid’s Tale?

WEISS, Sabrina Rojas.  What’s Really Up With Handmaid’s Tale Enigma Commander Lawrence?

NICOLAOU, Elena. We Figured Out Commander Lawrence, The Handmaid’s Tale’s Biggest Mystery


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