Me fez me sentir como Wanda em Dinastia M (2005): vítima de gaslighting e atormentada por tudo ao meu redor.

O texto a seguir contém spoilers do filme Doutor Estranho no Multiverso da Loucura.

Desde a sua introdução no Universo Cinematográfico Marvel, em Vingadores: A Era de Ultron, a personagem de Wanda tem sido muito diferente de sua contraparte dos quadrinhos, por diversos motivos. Um deles claramente é o fato da Marvel não deter os direitos para filmes dos títulos da saga X-Men. Seus poderes, indefinidos por muito tempo, eram uma forma de habilidade telepática e a capacidade de influenciar a mente das pessoas.

Apenas em Wandavision é que o MCU começou a utilizar aspectos de diversas histórias de Wanda nos quadrinhos, especialmente do combo Visão/Feiticeira Escarlate de Vision Quest, com uma pitada de Dinastia M e Vingadores: A Queda, em que Wanda se torna uma força de destruição antagonista no universo da Marvel.

Ao abordar a transformação de Wanda, que não foi tão bem recebida assim, o roteirista Michael Waldron disse que “Bem, antes de tudo, é fiel à versão da personagem nos quadrinhos e ao que ela faz nesses quadrinhos”. Certo. Mas o negócio é que as pessoas estão apontando essa mudança como errada há muito tempo. Vamos recapitular:

Nos quadrinhos, Wanda e Pietro são apresentados como vilões, mas como membro relutante da irmandade dos mutantes, ela se tornou uma Vingadora em menos de um ano. De fato, ela foi a segunda Vingadora mulher, após a Vespa. Nesse momento nos quadrinhos, as mulheres eram personagens passivas. De fato, Wanda foi um possível interesse amoroso de vários Vingadores por um momento – é claro… – até que oficialmente terminou ficando com o Visão.

A primeira pessoa a realmente humanizar e dar personalidade à Wanda foi o escritor Steve Engleheart. Ele fez Wanda ser mais assertiva como personagem, jogou Mercúrio e sua personalidade superprotetora de volta para os X-Men, tornou Magneto o pai dos gêmeos Maximoff e fez com que Agatha Harkness ensinasse Wanda a utilizar magia.

Como mostra a imagem acima, Wanda e Visão eventualmente se casaram. Na minissérie Visão e a Feiticeira Escarlate, Wanda e Visão compram uma casa em Nova Jersey, a fim de impedir que ele fosse manipulado pelo governo. Eles acabam sendo sequestrados pelos residentes de Nova Salem, que também mataram recentemente Agatha Harkness.

Durante uma cerimônia mágica, a líder de Nova Salem é derrotada e o excesso de magia é liberado. Utilizando as lições de Agatha, Wanda toca o excesso de energia e o canaliza de maneira segura. O espírito de Agatha diz que ela pode utilizar o poder mágico enquanto ainda está conectada com ele, e Wanda o utiliza para ficar grávida. Posteriormente, ela dá a luz a Tommy e Billy. Tudo está perfeito e ela se muda para Los Angeles.

E então tudo mudou quando Engleheart parou de escrever Os Vingadores.

John Byrne é um nome gigante na indústria dos quadrinhos, e trabalhou por várias vezes com Chris Claremont, considerado o maior de todos os tempos. Eles trabalharam juntos em X-Men, Quarteto Fantástico, e são cocriadores de Kitty Pride/Lince Negra, Emma Frost, Dentes de Sabre, Rei das Sombras, Scott Lang, entre outros. Ele voltou para a Marvel em 1989 e basicamente começou toda a história de “Wanda sofre de lavagem cerebral” e com os traumas que disso derivam.

Primeiro, ele escreveu Vision Quest, que é uma linha de história em que toda a personalidade de Visão é removida. Os gêmeos não são mais resultado da própria magia de Wanda, mas sim partes da alma do demônio Mefisto. Então, Wanda sofre lavagem cerebral por três vezes, se tornando uma vilã sempre que isso acontecia. Os escritores Roy e Dann Thomas então assumiram Avengers: West Coast, e definiram que o aumento do poder de Wanda aconteceu devido à manipulação pelo vilão Immortus.

Ótimo. E a cada vez que isso acontecia, o estado mental de Wanda piorava mais, o que levou até a história de 2004, Vingadores: A Queda, escrita por Brian Michael Bendis, com arte de David Finch. Vespa faz um comentário que ativa um gatilho de Wanda sobre suas crianças (sem qualquer explicação, ela havia perdido a memória de novo, mas tudo bem).

Ela então é atingida pelo trauma da perda, repetidamente, e por um sentimento de traição por parte dos Vingadores, que não foram capazes de salvar os seus filhos, e permitiram que suas memórias fossem apagadas. Wanda mata Agatha e faz com que os Vingadores passem “por seu pior dia”, o que leva à morte de diversos personagens e a destruição da Mansão Vingadores.

Wanda então entra em coma, e o Dr. Estranho utiliza uma de suas mais poderosas habilidades mágicas, a retrospectiva, para explicar que o verdadeiro poder mutante de Wanda é o de reescrever a realidade. Em Dinastia M, sob a manipulação de seu irmão, Pietro, que quer evitar a sua morte, Wanda é convencida a criar uma versão alternativa da Terra, em que os desejos de todos se tornem realidade. Mas devido ao fato de Logan permanecer com a memória intacta, ele consegue acordar outros heróis do feitiço e derrota Wanda. Após Pietro ser morto por Magneto, uma Wanda dominada pelo luto causa o “Dia M”, ao dizer “sem mais mutantes”, o que remove os poderes de quase todos os mutantes da Terra – um ato que a persegue até hoje.

Em 2017, Englehart escreveu uma resposta que foi compartilhada no site Women in Refrigerators (Mulheres na Geladeira), sobre o que ele achava das mudanças feitas nas personagens femininas após ele sair dos projetos:

Essas são as personagens que eu escrevi que encontraram seu destino final depois que as deixei:

Arísia (morta)

Katma Tui (morta)

Mulher Gavião (perdeu os poderes)

Electrocute (morta)

Nova [Frankie Raye] (morta)

Jato [Celia Windward], dos novos Guardiões (morreu em batalha depois de contrair HIV)

Felina (morta)

Harpia (morta)

Mantis (morta, se não me engano)

Feiticeira Escarlate (filhos mortos/desaparecida/filhos desaparecidos por serem apenas parte de sua imaginação)

Essas são as personagens que eu escrevi o destino final:

Ms. Marvel II (se tornou um monstro em Quarteto Fantástico)

E eu gostaria de ressaltar que a Ms. Marvel gostou da mudança, pois se tornou poderosa; já o Coisa não gostou porque acreditava que ninguém conseguiria gostar disso.

Então a resposta para a sua pergunta é bem simples: Desde o lançamento do Capitão Marvel/Superman original, a maior parte dos personagens de quadrinhos foram homens adolescentes, porque boa parte dos leitores são homens adolescentes. E homens adolescentes têm medo de mulheres fortes.

Eu gosto de todo tipo de personagem, inclusive mulheres fortes (e mulheres fracas, homens fracos, gays, androides, monstros verdes gigantes, e todas as possibilidades que surgem daí). Então eu fiquei tão chateado quanto todo mundo com a forma como mataram as minhas personagens fortes, assim que as deixei. Foi realmente chocante. Nenhuma dessas que listei acima teria sofrido este destino se eu continuasse escrevendo. Eu particularmente sinto falta de Arísia, Katma Tui, Mantis, e dos gêmeos da Feiticeira Escarlate.

Eu esperava ser um agente da mudança nesses anos – trazendo uma perspectiva mais saudável sobre as mulheres no campo – mas obviamente não tive muito sucesso.

Todas essas informações servem para comprovar que, sim, apesar de Wanda ser tratada constantemente neste ciclo de vilã/heroína/anti-heroína/vítima nos quadrinhos, as pessoas sempre teceram críticas sobre o machismo e capacitismo que envolveram a sua escrita. Pessoas como Lia Williamson, que escreveu no ano passado ao debater a história de Dinastia M:

A linhagem de Wanda Maximoff mudou um pouco com o passar dos anos, mas em 2005, já estava bastante consolidada: seu pai era Magneto e sua mãe era Magda Eisenhardt, dois sobreviventes do holocausto. Então fazer uma mulher romani-judia, descendente de sobreviventes do holocausto, ser a responsável pelo genocídio de heróis nesse universo fictício? É algo ruim. Culpar a sua condição de saúde mental por isso então? É algo ainda pior.

O colapso de Wanda deveria ser o pior momento da sua vida, uma expressão do imenso luto que ela está sofrendo naquele momento. Como uma mulher que convive com problemas de saúde mental, eu não posso ser resumida a pessoa que sou durante uma crise – esses são os meus piores momentos. Apesar de ser responsável pelas minhas ações e pela forma como posso ferir as pessoas nesses momentos, isso não é um reflexo de quem sou em minha vida cotidiana. Dinastia M não deveria ser o reflexo de Wanda, da mesma forma.

Desde a sua introdução como uma pessoa “estranha” no MCU, o medo que eu tinha era que em vez de entender as críticas sofridas por Dinastia M, que os produtores simplesmente tomassem a obra como base. E foi exatamente isso que Doutor Estranho 2 fez. Eles aceleraram a queda de uma personagem complexa, sem aprender nada. Novamente possuída por uma força que aumenta seu poder. Apresentada como “louca” e “sem limites”. Definida apenas por sua perda, e não por tudo que podia fazer com os seus poderes.

Desde o momento em que Stephen fala para Wanda ser “razoável”, já dava para saber o que estava chegando. Dinastia M pode ser uma das histórias de maior impacto de Wanda no universo da Marvel, mas isso foi feito sacrificando a personagem, para depois tentar desfazer o estrago. Wanda poderia ser uma ótima vilã, mas ser apenas super poderosa não é a única coisa que torna uma vilã boa.


Texto traduzido e adaptado da The Mary Sue.

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