Animatrix parecem ser aqueles raros momentos em que animes se conectam a uma gigantesca obra ocidental.

Shinichirō Watanabe, o renomado criador de Cowboy Bebop, era um grande fã do filme Matrix. E não apenas pelo fato dos personagens compartilharem seu carinho pela individualidade e óculos escuros estilosos. Matrix foi um filme que mudou o cinema do dia pra noite, e cerca de apenas um ano após a estreia de Bebop no Japão. A obra-prima pós-moderna de Wanatabe depois veio a se tornar um marco para os fãs de anime do ocidente, após a Adult Swim transmitir a série em setembro de 2001. Cowboy Bebop, assim como Matrix, era uma anacrônica mistura de estilos e gêneros, reunidos pelos criadores que possuíam uma devoção às culturas estrangeiras. Então fazia total sentido que Watanabe participasse da melhor consequência surgida da antologia de 2003, a “Animatrix”.

Lançada diretamente para DVD entre Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, a Animatrix reuniu nove curtas, todas no mundo criado por Lana e Lilly Wachowski. Sob a direção de alguns dos nomes mais respeitados no mundo da animação, o grupo incluía Yoshiaki Kawajiri, Takeshi Koike, Peter Chung, o artista de efeitos visuais Andrew Jones e Mahiro Maeda.

Wanatabe dirigiu dois dos curtas da antologia: “Era uma vez um garoto” (Kid’s Story, no original) – o único a se passar entre o primeiro e o segundo filme de Matrix – e “Uma História de Detetive” (A Detective Story), um prelúdio ao primeiro filme da trilogia.

À primeira vista, “Era uma vez um garoto”, escrita pelas irmãs Wachowski, parece não ser muito o estilo de Watanabe. Não há batalhas espaciais, trocas de tiro ou referências ao cinema clássico e ao jazz em qualquer dos quinze minutos do curta. O garoto em questão (Clayton Watson) é um aluno do ensino médio que, após receber uma ligação de Neo, salta do telhado de sua escola para evitar ser capturado por Agentes. A queda é um evento que vemos no início do curta, enquanto o garoto sonha com isso na noite anterior. Para todos ainda presos na Matrix, o jovem problemático teria encontrado seu fim. Mas na verdade, ele fez algo considerado impossível: escapar da Matrix – nas palavras de Trinity para Neo – “se auto substanciando”. Sem pílula vermelha ou conversas cheias de analogias a Alice no País das Maravilhas.

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Imagem: Warner Bros.

De acordo com as informações de bastidores presentes no DVD de Animatrix, rascunhos iniciais deste curta apenas envolviam cenas da segunda metade do filme. O sonho de abertura, uma conversa com seu computador e a criança na escola são todas criações de Watanabe. Ele pega um personagem criado pelas Wachowski e torna em algo dele. Esses ajustes acabam tornando o garoto próximo aos protagonistas das séries anteriores e futuras de Watanabe.

Assim como o grupo de Bebop, o trio em Samurai Champloo e os jovens músicos de jazz de Sakamichi no Apollon, o garoto se encontra sem lugar na sociedade. Antes de seu salto de fé, Watanabe nos deixa perceber que aquele personagem aparentemente comum tem algo diferente de todos aqueles ao seu redor. Em seu trajeto, enquanto todo mundo caminha a pé ou de carro, o garoto se move livremente em seu skate. A caminho da aula, ele para em seu armário, absolutamente branco, impossível de não se destacar naquela longa fileira de armários vermelhos ao seu redor.

Na sala de aula, a câmera passa pelos rostos dos estudantes, e todos olham diretamente para o quadro, exceto pelo garoto. Cabisbaixo, rabiscando seu caderno, ele claramente não está focado na lição do dia, estando mais interessado em aprender sobre Neo, Trinity e o que é a Matrix. Seus últimos momentos não são apenas uma declaração de fé para Neo, mas algo que o fazem parecer com Spike ao final de Bebop, alguém disposto a arriscar tudo, não para morrer, mas para descobrir se de fato está vivo.

E características ao personagem não foram a única contribuição de Watanabe para “Era uma vez um garoto”. Ele trouxe outra coisa que já seria esperada do ex-diretor de episódios da Sunrise: visuais eletrizantes.

Incomodado com o visual da animação na época, Watanabe queria ter uma pegada diferente com relação a “Era uma vez um garoto”. Shinji Hashimoto, diretor de curtas de animação, designer de personagens e animador-chave, sugeriu que eles adotassem uma abordagem mais rústica, com um estilo desenhado a mão mais naturalista. E os resultados foram imaculados. Em cada cena fechada no garoto, você consegue ver cada movimento do lápis que veio a trazer a vida o personagem.

“Desde que comecei a trabalhar como animador, eu nunca senti que havia distinção demais entre animação e live action”, afirma Watanabe. “Assistindo Matrix, eu senti fortemente que as duas coisas estavam se aproximando. Então eu espero que possa continuar trabalhando para apagar essa fronteira.”

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Imagem: Warner Bros.

A fim de tornar essas fronteiras menos visíveis, Watanabe filmou Watson atuando em todas as cenas de diálogos. Então os animadores transferiram seus maneirismos e movimentos faciais do vídeo para o papel, fazendo a ilustração parecer mais natural.

Esse naturalismo acaba no momento em que a perseguição dos agentes ao garoto começa. Quando ele está sobre seu skate, seu corpo muda, se retorce e transforma quando ele passa pelos agentes, assim como pelos seus colegas de escola. Os movimentos tanto do personagem quanto do cenário são tão suaves e bem dirigidos, com Watanabe sabendo exatamente onde queria que a próxima cena se passasse, de forma que não nos perdêssemos ou tivéssemos um momento para retomar o fôlego. É uma das suas maiores e mais cheias de energia cenas de ação. Ela pode até ser comparada às melhores cenas de Champloo, Bebop e até mesmo Space Dandy.

Já “Uma História de Detetive” começa no final. Ash, um detetive particular, está em um trem em movimento em uma situação difícil. Ele acaba de levar um tiro de Trinity, a mulher que ele foi pago para encontrar. Alguns dias antes, ele estava a segundos de deixar essa vida para trás, fazendo uma aposta com seu gato que se a chamada que ele estava recebendo fosse de outro marido paranoico, ele se aposentaria. Infelizmente para ele, era um trabalho de verdade, “um caso para encerrar todos os casos”.

Em uma antologia repleta de estilos de animação diferentes, “Uma História de Detetive” é escrito por Watanabe, e se destaca pelo visual familiar de filme noir. “Eu sempre amei o estilo de filmagem de ‘Fervura Máxima’”, afirmou Watanabe no conteúdo de bastidores. “E então decidi misturar o estilo com uma história sobre Trinity”.

A influência noir de Watanabe só surgiu de forma completa quando Bebop mostrou cenas do passado de Spike e Jet antes de se tornarem caçadores de recompensas. Mas diferente desses flashbacks, o visual monocromático utilizado em “Uma História de Detetive” é granulado, lembrando um jornal antigo (pedacinhos de cor aparecem, mas esporadicamente). Outros tropos do estilo incluem a narração, o cenário urbano e uma “femme fatale” na forma de Trinity, que apesar de estar tentando salvar Ash, acaba o executando a queima-roupa enquanto um agente absorve seu corpo.

Imagem: Warner Bros.
Imagem: Warner Bros.

Faíscas de uma iconografia de ficção científica mantém “Uma História de Detetive” um pouco distante de ser completamente noir. Apesar de Ash se vestir como Bogart, carregar um revólver e receber chamadas em um telefone de fisco, ele usa de tecnologias para encontrar Trinity que só viriam a surgir gerações após a época a que Watanabe parece homenagear. Quando Ash finalmente a encontra, ela usa um dispositivo similar a aquele aplicado em Neo para remover um bug, que foi implantado no olho de Ash. É uma mistura de dois elementos aparentemente opostos – ficção científica e filmes noir dos anos 1940 – para criar algo único e similar aos animes pelos quais Watanabe é famoso.

Cowboy Bebop é amplamente considerado um “faroeste espacial”, mas em todos os episódios Watanabe injeta elementos e tropos de blaxploitation, terror, melodrama e até do cinema de ação de John Woo. Champloo misturou a era Edo com a cultura hip-hop dos anos 1980. E apesar de Dandy ser a série mais “episódica” de Watanabe até esse ponto, ela entregou mais homenagens e referências a ficção científica e ao cinema das décadas de 60, 70 e 80 em um único episódio do que a maioria das séries fez em sua integralidade.

Watanabe se consolidou como um dos mais conhecidos autores de anime, mas seus experimentos em Animatrix parecem ser aqueles raros momentos em que animes se conectam a uma gigantesca obra ocidental. Desde 2003, os DVDs tomaram o mesmo caminho do Agente Smith, e apesar de a antologia animada de David Fincher e Tim Miller para a Netflix, “Love, Death & Robots” ter chamado a atenção, é difícil imaginar que algo do tipo possa acontecer com grandes marcas como Vingadores ou Star Wars. Ao mesmo tempo, um filme de Dragon Ball Z excedeu as expectativas e arrecadou 30 milhões de dólares na América do Norte. Versões em live-action ocidentais de Boku no Hero Academia e Shingeki no Kyojin também estão sendo desenvolvidas. E com isso, as “fronteiras” citadas por Watanabe parecem estar de fato se tornando a cada dia, menos visíveis do que costumavam ser.


Texto traduzido da Polygon.

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